Nas últimas semanas, tenho andado encantado com esta estampa religiosa, que comprei naquela feira de alfarrabistas, junto à Livraria Bertrand. Representa a Nossa Senhora e Jesus, vestidos de pastores a apascentar um rebanho de ovelhas. Apresenta a seguinte legenda Estas imagens do Sr. Pastorinho e da Sra. Pastorinha se venerão em o Convento de Santa Marta de Jezus desta cidade, O Emmo Sr. Cardeal Patriarca concede 40 dias de Indulga q.m rezar huma Ave Maria, e a Jaculatória. Ó may Pastorinha pedi ao Pastor nos de Paz e Concórdia, e nos livre do Tremor.
Através da leitura da legenda percebi de imediato que esta estampa foi impressa necessariamente depois do Terramoto de 1755, por causa da expressão nos livre do tremor. Enfim, como todos podem calcular, os lisboetas da segunda metade do Século XVIII, viviam apavorados com a perspectiva da ocorrência de um novo e terrível sismo e claro, recorriam à religião para os livrar dessa sinistra possibilidade. Por outro lado, o Cristo e a Virgem são representados respectivamente com o Sagrado Coração de Jesus e de Maria, devoções que se tornaram comuns em Portugal durante o reinado de D. Maria I (1777-1816). Portanto esta estampa, tinha que ser coisa datada para os finais do século XVIII.
O Sagrado Coração de Jesus e de Maria são devoções já típicas do Reinado de d. Maria I |
Em todo o caso, fiquei muito intrigado com esta Devoção mariana, da Senhora Pastorinha, de que nunca tinha ouvido falar e fui fazer umas pesquisas na internet.
Descobri na wikipédia em castelhano, que a representação de Nossa Senhora como pastora teve origem em Espanha, no início do Século XVIII, mais propriamente na cidade de Sevilha, com o frade capuchinho espanhol, Frei Isidoro de Sevilha. Na obra La Pastora Coronada, este religioso descreve uma visão que teve de Nossa Senhora, em que a Virgem está sentada numa rocha, com um chapéu de pastora na cabeça e um báculo na mão. Na mão esquerda sustenta o Menino e pousa a sua mão direita sobre um cordeiro, que acolhe no regaço. Algumas ovelhas rodeiam a Virgem formando um rebanho, cada uma com a sua rosa na boca, simbolizando as Ave-maria com que a veneram. Este Frei Isidoro de Sevilha encomendou inclusive ao artista espanhol Alonso Miguel de Tovar, uma tela, representando com precisão a sua visão da Divina Pastora. Esse quadro faz hoje parte da colecção do Museo Carmen Thyssen de Málaga.
A Divina Pastora. Alonso Miguel de Tovar. Colecção do Museo Carmen Thyssen de Málaga |
Na iconografia Cristã, a representação de Cristo com bom pastor é antiquíssima, data ainda do tempo das Catacumbas. A associação de ideias é óbvia. Cristo é o pastor, que conduz o seu rebanho, isto é, a comunidade de fiéis ao bom caminho e à salvação. Já mais estranha poderá ser a representação de Maria como boa Pastora, já que a mãe de Cristo na sua vida terrena nunca foi uma profetisa ou uma líder de uma comunidade. Mas no Catolicismo, há a partir de certa altura, uma tendência em atribuir a Maria as mesmas qualidades e sentimentos de Cristo. Nossa Senhora é como um espelho de Jesus. Assim, por exemplo, paralelamente à imagem do Cristo Crucificado, existe uma Nossa Senhora das Dores, com sete espadas espetadas no coração, mostrando ao crente que Maria sofreu no seu coração todos os flagelos infligidos a Cristo. O mesmo fenómeno de associação se observa nesta iconografia da Senhora Pastorinha. À semelhança de Cristo, Maria é transformada numa pastora dos homens, como uma mãe que cuida dos seus filhos e intercede por eles junto a Deus.
Mas, voltando à origem da devoção, o culto da Divina Pastora tornou-se desde logo muito popular em Sevilha, estendeu-se ao resto da Espanha alcançou Portugal ainda no século XVIII e chegou as Américas, nomeadamente o Brasil e à Venezuela.
Maquineta representando a Divina Pastora. Museu Nacional de Arte Antiga. Foto http://www.matrizpix.dgpc.pt/ |
Aqui em Portugal, encontrei no catálogo Crowning glory : images of the virgin in the arts of Portugal. - Lisboa : Gabinete das Relações Internacionais, 1997 uma maquineta, pertencente ao Museu Nacional de Arte Antiga, datada dos finais do Século XVIII, com uma escultura em Barro representando a Divina Pastora, Inv. 17189 TC e que proveio do Antigo Convento do Sacramento.
A minha estampa representará uma pintura que existiu no antigo Convento das Clarissas, onde hoje é o Hospital de Santa Marta. Foto www.monumentos.PT |
Aliás esta minha estampa será a reprodução de um conjunto de imagens ou mais provavelmente de um quadro, que em tempos existiu também numa casa religiosa de Lisboa, o Convento de Jesus, em Santa Marta, onde hoje é o Hospital de Santa Marta. De fundação jesuítica, esta casa que passou em 1583 a convento de religiosas Clarissas, era um dos muitos edifícios religiosos que abundavam em Lisboa e que estavam cheios de obras de arte, que iam desde esculturas, a ourivesaria, passando por quadros, talhas e paramentária. Em 1834, com o Liberalismo foram todos extintos e mal morresse a última freira os bens passavam para o Estado. No site, monumentos, da antiga Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, que descreve este antigo convento, encontrei transcrito um inventário das pinturas, feito em 1888 pela Fazenda Nacional, em que se refere, que na capela do dormitório do segundo pavimento existia um quadro com uma pintura de Nossa Senhora como Pastora. A minha estampa será talvez uma reprodução desse quadro da Divina Pastora referido no inventário de 1888. Quem sabe?
Em todo o caso fiquei rendido a estas imagens de Nossa Senhora como Divina Pastora. Não é uma pastora pobre e esfarrapada, pois traja com uma simplicidade elegante. Os chapéus que usa, enfeitados com flores, tem qualquer coisa da coquetterie da Rainha Maria Antonieta de França, quando se vestia de pastora e brincava no hameau de la Reine, uma pequena aldeia rústica, que mandou construir perto do Petit Trianon, em Versalhes e para a qual convidava apenas o seu círculo mais intimo e onde todos se divertiam imensamente a ordenhar vaquinhas, a regar legumes ou a colher flores. Estas imagens da nossa Senhora como Divina Pastora são um bom exemplo do bucolismo pastoril, mas elegante, que é um tema muito comum da arte dos finais do XVIII.
Os chapéus à pastora estavam na moda na Corte de Luís XVI e de Maria Antonieta. Auto retrato de Madame Vigée Le Brun, pintora oficial da corte |
Alguma bibliografia sobre a estampa:
Inventário da colecção de registos de santos / org. e pref. Ernesto Soares. - Lisboa : Biblioteca Nacional, 1955, p. 443 e 445 http://purl.pt/700.
Luís, adoro estas estampas que vai descobrindo e partilhando! Esta particularmente acho um primor!
ResponderEliminarE continuo a achar ótimas as suas pesquisas, a forma como interpretou a legenda, as histórias que conseguiu desvendar à volta deste registo, as referências a figuras históricas, sempre enriquecendo os nossos conhecimentos sobre estas coisas...
Também não sabia da existência de uma Nossa Senhora Pastora, mas é uma imagem deliciosa, com uma feminilidade muito mundana, que não lhe escapou!
Por coincidência, soube ontem mesmo da existência do Museo Carmen Thyssen de Málaga, onde está esse quadro da Divina Pastora, mas estava convencida que era mais de pintura contemporânea.
E ao ler este texto, lembrando-me de vários outros sobre o mesmo tema, fiquei a pensar que o Luís um dia devia compilá-los e fazer uma publicação sobre estas pequenas imagens sacras, algumas tão ligadas a devoções na cidade de Lisboa. Estou convencida que não haverá muitos trabalhos do género e eu acho o tema muito aliciante!
Pense nisso... e tenha um bom fim de semana!
Maria Andrade
ResponderEliminarA cena pastoril é ao mesmo tempo elegante e ingénua. Se não fosse dos finais do XVIII dir-se-ia quase que as figurinhas poderiam ser da Josefa. Mas julgo que essa impressão se deve mais ao facto de que a pintura, que deu origem a esta esta estampa, corresponde ao mesmo gosto freirático do tempo da Josefa, que se comprazia em vestir os santinhos com trajes galantes da época.
A iconografia cristã encanta-me e gostaria de fazer qualquer de mais sistemático nesta área, mas faz-me falta um enquadramento académico.
Bjos
Caro Luís,
ResponderEliminarComo sempre consegue surpreender-nos. Gosto imenso dessas estampas antigas. Desconhecia por completo a existência dessa Sra Pastorinha.
Deixou-me com água na boca para revisitar a capital, em particular essa feira que refere, a qual nunca vi. Quando se realiza? Em tempos ia à Feira da Ladra e cheguei a adquirir uns postais antigos giríssimos a preço quase dado...mas actualmente deve ser tudo a preço de ouro.
Outro local que gostaria de visitar é o Hospital das Bonecas, mas vai passando, passando e outras coisas se vão metendo na frente. Há uns dias atrás passou na RTP uma reportagem acerca dos residentes na Praça da Figueira (pouquíssimos) e achei muito giro porque uma das pessoas entrevistadas foi justamente a dona do Hospital das Bonecas, a qual embora actualmente já lá não resida, aí viveu muitos anos.
Enfim, às vezes tenho a impressão de que o tempo me escapa das mãos e não faço nada daquilo que realmente gostaria...
Creio que um dos meus problemas é o da dispersão. Interesso-me por demasiadas coisas,e acabo por não conseguir ser especialista em nada...
Quem muitos burros toca...
Beijinho
Alexandra Roldão
Cara Alexandra.
ResponderEliminarEste universo de devoções passou um pouco à história. Os conventos femininos acabaram quase todos, as suas colecções foram dispersas e hoje vivemos numa sociedade descristianizada. A própria Igreja Católica modernizou-se, tende a esquecer estas devoções aos milhares de santinhos e às nossas senhoras disto e daquilo, que povoavam as igrejas do País. O Catolicismo tende para uma religião mariana, concentrada em grandes devoções, como a Nossa Senhora de Fátima, aquela imagem de gosto duvidoso, mas enfim, a fé não se discute. Acredita-se ou não se acredita.
Também tenho o mesmo problema da Alexandra. Interesso-me um pouco por tudo e não me especializo em nada.
Quanto a esta feira de albarrabistas entre a Livraria Bertrand e a Igreja dos Mártires, realiza-se na rua da Anchieta, das 10h00 às 17h00, todos os sábados.
Ver o Hospital das Bonecas é tão fácil. É sair no metro do Rossio e ir a Praça da Figueira e ter apenas cuidado em não gastar muito dinheiro.
Bjos
Através da tua pesquisa lá vais descobrindo estas, e muitas outras, coisas interessantes sobre um campo de que pouco se sabe.
ResponderEliminarIsto é, sabe-se, mas o conhecimento acaba por estar tão disperso que se torna algo desconexo.
Tudo o que vais aqui descobrindo poderia dar origem a uma obra que, seguramente, seria de referência para muitos, visto que vais coligindo informações de fonte diversa e fazendo conexões importantes para permitir a "leitura" da arte da representação hagiográfica.
É sempre um prazer chegar a conclusões ou "levantar pedras" sobre coisas que pareciam destinadas a enterrar-se na poeira do tempo que vai caindo sobre os antigos livros da especialidade ou sobre esta arte, já em desuso.
Manel
Manel
ResponderEliminarJulgo que fazia falta um dicionário de iconografia cristã portuguesa, ilustrado com esculturas, gravuras e pinturas existentes em Portugal.
Pessoalmente tenho uma paixão por esta área que exerço de forma amadora aqui no blog, pensando sempre no entanto, que os conteúdos que aqui publico poderão ser úteis a quem proceda a estudos mais profundos.
Um abraço
Caros Luis e Manel
EliminarFalando-se em iconografia religiosa portuguesa, gostaria de compartilhar convosco a grande satisfação de ter encontrado no "Inventário da Colecção de Registos de Santos" de Ernesto Soares - onde apenas uma pequena parte deles aparece reproduzida - um registo retratando a imagem de São Pedro Apóstolo, em trajes papais, padroeiro de Rio Grande, a mais antiga cidade de fundação portuguesa no estado do Rio Grande do Sul (onde eu vivo), em 1737, uma vez que o nosso território, até pouco antes disso, pertencia à coroa de Espanha. Ocorre que, provavelmente no final do XIX ou início do XX, o velho São Pedro, uma talha ainda com características do XVII, foi substituído por um maior e mais moderno, em trajes de apóstolo; ignoro se de procedência portuguesa ou outra, mas, seja como for, ainda que esculpido em madeira, de uma estética totalmente "saint-sulpicienne". A imagem original encontra-se, atualmente, na coleção sacra do museu da cidade, mas pretendo iniciar uma campanha para faze-la voltar a seu retábulo.
Abraços a ambos!
Os séculos XIX e XX são no geral uma época de mau gosto na escultura religiosa. Por cá as nossas igrejas também se encheram de estátuas representando Nossa Senhora de Lurdes, a Virgem de Fátima, a Santa Teresinha de Lisieux e outros horrores, enquanto que os santos antigos eram remetidos para as sacristias, ou pior que isso mandados embelezar a um santeiro de Braga.
EliminarQuantos aos registos, eles são de facto boas fontes de informação sobre imagens e devoções antigas. Não sei se teve ocasião de ler o meu último post sobre Nossa Senhora do Carmo, em que descrevo como uma investigadora conseguiu relacionar as joias representadas na estampa, com peças de joalharia que estão hoje no Museu Nacional de Soares dos Reis.
Também consulto muito o Ernesto Soares e valho-me igualmente de um inventário on-line da Sociedade Martins Sarmento, que tem mais de mais de 1600 estampas dos séculos XVII-XIX digitalizadas. http://www.csarmento.uminho.pt/ndat_261.asp.
Quanto à ideia de emoldurar os seus registos acho muito bem. Nós, os portugueses e brasileiros temos tendência para ter um gosto barroco e nada como recriar nas nossas casas um ambiente quase eclesiástico. Eu que não sou crente tenho até imagens religiosas na casa de banho, ou no banheiro, como dizem aí no Brasil. Este gosto pela arte sacra pode produzir decorações divertidas, que pervertem o minimalismo cinzentão proposto pelas modernas revistas de decoração.
Um abraço
Caro Luis
ResponderEliminarHá tempos não visitava o blog, que sempre me delicia com novidades. A secção dedicada aos registos já me auxiliou em pesquisas, além de apreciar-lhes a beleza. Eu tenho várias imagens piedosas francesas em gravura, inclusive uma idêntica àquela dobrada em partes que tu postaste aqui. Estou me animando a emoldura-las, para desfrutar mais delas, afinal as velharias não fazem muito sentido jogadas em caixas e gavetões. Esse registo da Divina Pastora - uma representação mariana particularmente encantadora, por todas as razões já ditas e comentadas aqui - tem um detalhe que, salvo engano, ninguém comentou: as ovelhas levam no quadril a marca do monograma de Maria, sua dona e rainha, que as faz conhecidas e particularmente amadas pelo Divino Pastor - com uma muito possível alusão ao ferro em brasa do amor devoto, típica imagem retórica da religiosidade rococó, além da ideia, inculcada pelos pregadores populares (especialmente carmos e capuchinhos e, depois, os redentoristas), de que um "servus Mariae nunquam peribit". É até curioso que esse registo não apresente um elemento frequente na cena, o do Arcanjo São Miguel afugentando o demónio (às vezes representado como o lobo rapace), como na bela imagem venerada, cá no Brasil, na matriz-santuário da cidade de Divina Pastora, no Sergipe.
Um grande abraço a ti!
Jonas
EliminarOs seu comentários acrescentam sempre informações novas aos meus posts. Até escrevi a um amigo meu, que também se interessa por este tema da Divina Pastora, para vir aqui ler os seus comentários.
Existe um quadro da Divina Pastora na matriz de Alpiarça, também do Século XVIII, que no segundo plano mostra um cordeiro a perseguir o lobo e a figura de um anjo a interromper a perseguição. Se quiser poder-lhe-ei enviar por e-mail cópia de um artigo sobre este quadro da Matriz de Alpiarça, da autoria de Tiago Moita.
Quanta à esta estampa, ele será a cópia de quadro que existiu em tempos no Convento de Jesus, em Santa Marta. Não sabemos até que ponto a cópia é exacta ou se o autor da estampa simplificou a tela original.
Um abraço e boas festas