segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Uma miniatura, uma obra falsa, uma cortesã e uma dama da sociedade


Sempre tive uma paixão por retratos miniatura, aquelas pinturas dos séculos XVII, XVIII e XIX, que antes da invenção da fotografia eram o único meio de fazer conhecer um rosto à distância. Os retratos miniatura eram objectos de natureza íntima, que se trocavam por ocasião de casamentos arranjados entre noivos, que nunca se tinham visto, ou entre pais e filhos separados por longas distâncias, ou serviam ainda para recordar uma criança morta demasiado cedo. Esses retratos pintados sobre velino, papel ou marfim são normalmente um pequeno primor e fazem parte das colecções dos grandes museus.
Retrato do Visconde de Vila –Nova de Ourém.
Museu Nacional de Arte Antiga,
228 Min. Foto http://www.matrizpix.dgpc.pt/

Como recebi um dinheiro extra, resolvi fazer uma pequena extravagância e comprei uma dessas pinturas miniatura, emoldurada em marfim, na Feira de Estremoz. Representa uma jovem dama, vestida em trajes datados mais ou menos do segundo quartel do século XIX, isto é, cerca de 1825-1850. Está assinado, mas na altura em que o comprei não consegui ler o nome. O verso da moldura foi revestido com a página de um livro antigo, de uma edição qualquer da Bíblia, inglesa, dos finais do XVIII.


No entanto, como este retrato não me pareceu muito antigo, abri a Santa e Sapientíssima Internet e pesquisei pelos termos Miniature portrait, ivory framework, e Miniature cadre en ivoire, quer em imagens, quer em texto e rapidamente comecei a perceber que as miniaturas emolduradas em marfim semelhantes à minha são relativamente recentes. As que encontrei em sites de leilões e de antiquários na internet eram datadas dos finais do Século XIX ou dos primeiros anos do Século XX.

Continuei as minhas pesquisas e descobri um artigo estupendo na internet de Don Shelton, intitulado Copy, Fake, and Decorative Miniatures, que descreve sumariamente a história da miniatura, bem com as reproduções e falsificações que delas se foram fazendo ao longo dos tempos. Neste texto, refere que finais do Séc. XIX, inícios do XX, na Alemanha e na França foram executadas centenas, senão milhares de cópias de retratos em miniatura ou de obras famosas a partir de estampas, só que em dimensões reduzidas. 
As molduras em marfim eram feitas a partir de teclas de piano
 As molduras de marfim eram feitas reaproveitando antigas teclas de piano e no verso eram revestidas com páginas de livros antigos, para lhes dar um ar histórico. Ao contrário dos retratos miniatura originais, que muitas vezes não eram assinados, estas cópias ostentavam assinaturas de nomes de artistas famosos como Stieler, Nattier, Cosway, Smart e Isabey. Aliás, foi a referência a estes artistas que me permitiu ler a assinatura que constava no meu retrato “Stieler”.
Stieler é a assinatura de Joseph Karl Stieler
Stieler é a assinatura de Joseph Karl Stieler (1781-1858) um pintor alemão da corte bávara que se notabilizou entre outras coisas pela execução da célebre galeria das beldades do Palácio de Nymphenburg, em Munique. Esta Galeria das beldades, ou Schönheitengalerie em alemão, é um conjunto de 36 pinturas, encomendadas pelo Rei Luís I da Baviera a Joseph Karl Stieler, que as executou entre 1827-50, representando as mulheres mais bonitas de Munique. Desta galeria de beldades consta o quadro original, que o autor da minha miniatura copiou descaradamente.
A obra que serviu de modelo à minha pintura. O retrato de Rosalie Julie von Bonar, por Joseph Karl Stieler.


Trata-se do retrato de Rosalie Julie von Bonar, uma jovem aristocrata, filha de um cavaleiro imperial da Morávia e de uma condessa polaca e que casou com o embaixador inglês em Viena, o Barão Ernst von Bonar. Teria 26 anos, quando Joseph Karl Stieler executou este retrato em 1840 e pouco mais se sabe desta Senhora. Mas desta galeria, que ainda hoje se pode admirar no Palácio de Nymphenburg não constam só damas de alta condição, mas também uma cortesã e uma das mais famosas, a danseuse exótica Lola Montez, uma aventureira irlandesa que se fazia passar por espanhola e que se tornou amante do Rei Luís I da Baviera. Mas, o Rei não se limitou só a mandar retrata-la na galeria das beldades de Munique, concedeu-lhe uma anuidade milionária e ainda fez dela Condessa de Landsfeld. O escândalo foi de tal ordem, que o Rei foi forçado a abdicar e a pobre Lola Montez teve que partir da Baviera às pressas, procurando um outro qualquer patrono ou marido rico em paragens mais distantes.
A danseuse exótica Lola Montez, amante do Rei da Baviera é o retrato mais famoso que Joseph Karl Stieler executou para a galeria das Beldades 
Mas voltando à minha pintura da bem comportada Rosalie Julie von Bonar, não é com efeito um verdadeiro retrato em miniatura, um objecto íntimo que um dia alguém encomendou para oferecer a um parente ou a um noivo. É uma reprodução de pequenas dimensões do quadro de Joseph Karl Stieler, ao jeito das miniaturas do início do XIX, feita provavelmente a partir de uma estampa, algures na Alemanha ou na França, por algum estudante de pintura, numa oficina que fazia destes quadrinhos às centenas, reaproveitando teclas de piano para fazer as molduras. Mas o que é mais curioso é que estas falsificações eram na verdade uma espécie de souvenirs das obras dos grandes museus e galerias, vendidas aos turistas que faziam o grand tour nos finais do século XIX. Com efeito, era uma época em que os museus e galerias de arte não dispunham ainda de todo o merchandising das suas colecções, com reproduções das obras dos grandes mestres da pintura e nem as pessoas viajavam com câmaras digitais, fotografando tudo e mais alguma coisa, de modo que estas pinturas miniaturas eram compradas como recordações das grandes obras do Louvre ou outras grandes colecções europeias, da mesma forma como hoje em dia adquirimos nas nossas viagens a Paris ou a Florença uma t-shirt com a Mona Lisa, ou uma coisinha para pendurar no frigorífico, com o Nascimento de Vénus de Boticelli. Terá sido o caso deste quadrinho, talvez comprado por alguém, que há cerca de 100 ou 120 anos visitou a célebre galeria das beldades do Palácio de Nymphenburg e quis ficar com uma recordação, que hoje é minha e cuja história serve de presente de Natal a todos os que ainda tem pachorra para me ler.
Alguns links úteis:

http://www.rubylane.com/item/135488-213pmHat/Antique-French-Portrait-Miniature-large-Miss

http://en.wikipedia.org/wiki/Gallery_of_Beauties

http://www.artwis.com/articles/copy-fake-and-decorative-miniatures/

25 comentários:

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    1. Margarida

      Muito obrigado. Estas falsificações de pequenos retratos miniatura acabam por ser um testemunho curioso para a história do turismo do hábito e do hábito de visitar museus.

      Um feliz Natal também para si.

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  2. Olá Luís! Adorei o resultado desta pesquisa e imaginei-me, no século XIX, a ter possibilidades de fazer o "grand tour" e a escolher um destes "souvenirs"! LOL! Boas Festas para ti e para a tua família. Bjs, Luísa

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    1. Luisa

      Muito obrigado pelo teu comentário.

      Já depois de ter escrito este texto, fiz mais uma vez uma pesquisa no Google por "Joseph Karl Stieler Miniature portrait" e encontrei mais umas quantas reproduções da galeria das beldades, idênticas a esta, também com as molduras em marfim. Fiquei ainda mais convencido, que estas peças eram vendidas como souvenirs das grandes obras de arte, talvez até em lojas perto dos museus ou palácios.

      Bjos e boas festas também para ti

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  3. Ainda que não seja o original, como souvenir, é muito bonita e interessante como documento de uma época.
    Gosto muito dela e é fantástico como descobriste tudo sobre a peça.
    Andei de lupa em punho para perceber o nome do pintor, mas não o consegui descobrir.
    Ao mesmo tempo é uma boa fonte de informação para quem queira saber algo mais sobre este assunto, pois em português não há praticamente nada.
    Umas boas festas natalícias
    Manel

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    1. Manel

      Os sites americanos, ingleses tem muita informação sobre este tipo de peças que ainda não envelheceram o suficiente para serem antiguidades e sem a qualidade ou autenticidade para figurarem em colecções de museus. Por consequência foi relativamente fácil encontrar a informação sobre este retrato em miniatura. Creio que numa hora e meia descobri tudo sobre a peça.

      Bom Natal para ti

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  4. Caro Luís,

    Interessante "peça de retrato", com deslumbrante descrição fundamentada em superior pesquisa.
    Parabéns!
    Foi sem dúvida, um GRANDE presente de Natal!
    Boas Festas,

    Jorge Gomes

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    1. Caro Jorge Gomes

      Obrigado, pelo seu comentário tão agradável. Um bom Natal e boas festas para si.

      Um abraço

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Vc é um pesquisador e um investigador magnífico! E as histórias que vão surgindo são boas demais, tem até enredo! Adorei esta dama da sociedade!
    Deveria voltar à moda fazer retratinhos.
    Em tempo, coloquei a minha Santa Bárbara Leiber no blog. Está no item estampas católicas antigas. Mas, depois da sua de 411 anos, o que dizer das minhas??kkk
    Boas Festas!

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    1. Jorge

      Estes pequenos objectos que coleccionamos tem sempre uma pequena história, que se cruza com a história das nações, das mentalidades ou com a vida de figuras célebres do passado. A História é feita de grandes batalhas e revoluções, mas também de pequenos nadas como este retrato em miniatura.

      Irei espreitar a sua Santa Bárbara de Leiber no seu blog. Também aprecio algumas das pagelas religiosas do início do século XX.

      Um abraço e bom Natal

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  7. Realmente uma bela peça, gosto da maneira como você aborda as pesquisas e escreve, é um verdadeiro deleite. Estou sempre a me aventurar e aprendendo mais com tuas pesquisas .
    Desejo um Feliz Natal e um Próspero Ano Novo. Pra você e toda sua família! Abraços.

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  8. Caro Ricardo.

    Procuro escrever de uma forma pessoal, sem pretensões académicas, até porque na internet ninguém tem pachorra para ler grandes tratados. Quem procura textos mais complexos e exaustivos vai a uma biblioteca.

    Feliz Natal para si e para os seus

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  9. Uma bonita peça, com uma história muito interessante, que o Luís bem investigou e melhor aqui soube contar. É espantoso como conseguiu chegar à identidade da retratada!
    Estes retratos miniatura antigos já me têm despertado a atenção em coleções de museus. É uma arte há muito desaparecida mas que até desempenhou um papel histórico relevante nos contratos matrimoniais da realeza europeia.
    Já tenho visto estes retratos à venda, mas não sabia que as molduras eram feitas de teclas de piano. Bem que os cobicei, mas os preços são em geral pouco convidativos...
    Agradeço-lhe este presente e faço votos de que passe uma boa época natalícia, sobretudo em boa companhia de familiares e amigos!
    Beijos

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    1. Maria Andrade

      Os preços não são de facto convidativos, mas recebi uns dinheiros extra, no dia em que a vi estava um frio horrendo na feira e o vendedor fez-me uma atenção muito simpática.

      Este retrato não é uma miniatura original, mas é bonito e tem a sua história. Ainda um dia hei-de comprar uma original. Faz parte dos meus planos a longo prazo. Talvez um dia descubra uma miniatura verdadeira naquelas bancas em que está tudo a um euro, Lol. As velharias tem sempre o seu quê de caça ao tesouro.

      Tal como para a faiança ou a porcelana, os sites de velharias anglo-saxónicos e até certa medida os franceses, estão muito bem feitos e é fácil encontrar informações pertinentes. Era bom que por cá se encontrassem bons conteúdos na internet sobre velharias.

      Sabe, como sou bibliotecário, uso as mesmas técnicas de pesquisa na internet que utilizo numa base de dados bibliográfica.

      Bjos e bom Natal

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  10. Votos de Festas Felizes, Luís Montalvão!

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    1. Caro MAFLS

      Fico sempre muito contente quando o vejo por aqui.

      Um abraço e boas festas

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  11. Olá Luís, boa noite
    Espero que esteja tudo bem contigo, então numa troca de telemóveis e cartões, acabei por perder um cartão cheio de contactos...achei que te ia encontrar mais rapidamente por aqui e era para me mandares o teu telemóvel, sff, não mudei o número, então podes mudar para lá ou para o mail, quanto ao meu blog, vai para mais de três anos que não escrevo, quanto ao teu está cada vez mais sofisticado, devias publicar em papel, pensa nisso... ah, e coo estamos em época de votos, desejo-te um feliz ano novo, cheio de saúde, trabalho, dinheiros, amor, porcelanas, enfim, pela ordem que mais desejares...
    beijocas grandes e até breve, pois já tenho saudades tuas
    isabel

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    1. Isabel

      Sempre que mudo de telemóvel, também perco uns quantos contactos que ficaram gravados algures, num buraco negro qualquer das telecomunicações.. Vou-te enviar um SMS e assim podes gravar o meu nº. O meu endereço de e-mail consta no perfil.

      O blog vai-se se tornando um pouco mais sofisticado à medida que vou conhecendo melhor as antiguidades. Mas talvez as velharias sejam um pretexto para contar histórias ou porque ganhei o gosto de escrever com regularidade.

      Bjos e bom ano

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  12. Caro Luís
    Que arte e engenho tinham já os antigos! Desde o aproveitar das teclas do piano (nunca me ocorreria), até ao forrar o verso dos quadros com folhas de antigos livros fiquei espantada.Nada se deitava fora. Nós, andamos agora, a reaprender isto.
    Fantásticas as suas pesquisas.Nunca tinha visto nada no género. Vou andar mais atenta:)
    Um grande abraço, esperando que tenha tido um feliz Natal. Um bom Ano Novo juntamente com todos os seus.

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    1. Maria Paula

      Este tipo de retratos costumam aparecer nas feiras de velharias, nas bancas de quem vende marfins, pratas e pequenos objectos preciosos. Aliás os anglo-saxónicos designam toda gama de pequenos objectos que se guardam em vitrinas pelo termo francês"objets de vertu".

      Bom ano novo para si e os seus

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  13. Caro Luís

    Magnifico trabalho de pesquisa....como sempre....e como já nos habituou....! Admiro sempre.
    Já tenho apreciado estes trabalhos em feiras de antiguidades....sempre curioso os rondei....mas nunca me atrevi a perguntar preço...porque a minha ignorância sobre estes trabalhos não me permitiam avaliar o valor justo deles....são de facto muito comuns e agora consigo ver as diferenças....
    Esta sua intervenção ajudou-me a entender um pouco mais 2 trabalhos que me chegaram às mãos e que sempre os guardei com muita estima.
    Muito grato e um abraço
    Vitor Pires

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  14. Por acaso possuo um retrato do meu tetravô numa caixa com tampa, bordeaux com fecho de latão com moldura em veludo e o meu familiar em pose de militar liberal. Realmente não está assinado e por isso não consigo saber quem o pintou. Tenho um livro de Júlio Brandão com o título de miniaturistas portugueses que aborda esta questão e já à época alude à necessidade de se explorar mais este tema tão esquecido , mas igualmente importante para a história da arte como os quadros maiores.
    Os melhores cumprimentos, Nuno Couceiro da Costa

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    1. Caro Nuno Couceiro da Costa

      O retrato desse seu antepassado deve ser uma coisa linda.

      Existe alguma bibliografia mais recente sobre retratos em miniatura portugueses:

      -Miniaturas portuguesas / concepção e texto Anísio Franco. - Lisboa : MNAA, 2003. - 24 p. : il., col. ; 20 cm

      -Obras em reserva : o museu que não se vê / coord. científica António Flipe Pimentel, Anísio Franco, José Alberto Seabra Carvalho. - Lisboa : Museu Nacional de Arte Antiga, 2016. - 197 p. : il. ; 24 cm.

      Este último catálogo refere-se a uma exposição que ainda está patente no MNAA e onde se mostra uma belíssima colecção de miniaturas.

      Talvez nestes livros encontre algumas informações que lhe permitam ter alguma luz sobre o retrato do seu antepassado.

      um abraço

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  15. Obrigado caro Luís, irei tentar consultar as obras que me aconselhou. Agradeço a sua sapiência. Um abraço

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