quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Umas alminhas do Purgatório numa rua de Castelo Branco

 Alminhas do Purgatório numa rua de Castelo Branco
Já ninguém reza um Padre-Nosso ou um Avé-Maria pelas alminhas que estão no Purgatório. Talvez as alminhas já tenham saído todas do Purgatório direitas ao céu, ou consumiram-se de vez no fogo eterno, ou ainda mais seguramente, porque nos dias de hoje somos indiferentes ao destino dos que morreram e amávamos, bem como á nossa própria sorte depois da morte. Já não rezamos pelos que morreram e o nosso próprio final é apenas um nada. Ainda recentemente, o meu pai voltou arrepiado da cerimónia fúnebre de um camarada de armas, que pediu para não ter qualquer ritual religioso na sua morte.

E no entanto, não é preciso recuar muito tempo para que os assuntos da alma, fossem objecto de uma grande preocupação dos que sabiam que iam morrer para breve, bem dos que cá ficavam.


Ainda há pouco tempo li o testamento da minha trisavó, Maria do Espírito Santo, Ferreira Montalvão, morta em 1902 e que era uma mulher muito rica. No entanto, mais de dois terços do seu testamento referem-se à parte espiritual. Discrimina cuidadosamente as missas que quer que rezem por ela, uma missa de corpo presente, outro ofício no meio do ano e outro ainda no final e ainda vinte trintários de missas por sua alma, mais dez trintários de missas por alma das suas obrigações, mais dez missas ao asilo da sua guarda, mais dez ao S. Miguel, patrono da povoação de Outeiro Seco, sendo estas rezadas no altar do mesmo santo. Dispõe ainda de uma quantidade de trigo ou dinheiro para distribuir aos pobres da aldeia e aos respectivos criados.

Um trintário era uma série de 30 mis­sas celebradas em dias seguidos por alma dum defunto, na espe­ran­ça da sua libertação do Purgatório

Da leitura deste testamento há uma preocupação com o destino da sua alma, que a nós, que o lemos em 2015, quase que nos parece medieval, e naturalmente, que este testamento, obrigava os seus descendentes a executa-lo. A salvação da alma do morto, ficava pois também a cargo dos executores do testamento.
Tudo isto veio a propósito de um registo de azulejos, com as alminhas do Purgatório, que descobri numa das ruas antigas do Centro de Castelo Branco, que hoje parecem estar mais ou menos esquecidas de todos.

18 comentários:

  1. Luís
    Tão leve na sua beleza, mas tão carregada de simbolismo para o propósito que tem em vista: uma oração pelas alminhas.
    Lembra-me as histórias que uma Tia querida contava, daquelas em que Jesus e S.Pedro eram os protagonistas. Narradas em diálogo, com um fim moralista e de ensino, muitas vezes invocavam a expressão "Seja pelas Alminhas", por qualquer pequena e singela boa acção que se praticasse.
    Hoje já deve estar em desuso, mas o que contam são as pias intenções. Seja pelas Alminhas!

    Um abraço
    if

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    1. IF

      Todo este este registo me fez pensar na formas como lidamos hoje com a morte e nas diferenças da relação com a morte há cinquenta ou há duzentos anos atrás.

      Quem perdeu a crença precisa de arranjar uma relação com os seus mortos, sem a mediação de um qualquer Deus, ainda que seja só através da história ou da evocação dos entes queridos através de fotografias, objectos ou cartas.

      Um abraço

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  2. Caro Luís,

    Com esta sua fotografia e respectivo relato, fez-me relembrar os testamentos dos meus familiares.
    É tal e qual como o Luís descreve, ou seja,a maior parte do texto é sempre referente à salvação da alma.Deixava-se uma quantia em dinheiro para Missas, e também esmolas aos pobres.
    Curioso é verificar que, em início do século XIX, se dava imensa importância a aspectos da vida diária que hoje quase nos parecem ridículos, mas que ao tempo eram tudo menos isso. Imagine, que num dos testamentos que encontrei, eram deixados como herança aos criados objectos como a enxerga, a enxada, ou mantas de lã.Claro que, para além disso, se falava de talheres de prata, ou jóias de família...
    Também verifiquei que uma trisavó por parte do meu pai foi bafejada com uma casa e todo o seu recheio, mas...nada recebeu!
    Cheguei ainda à conclusão que, naqueles tempos era quase de bom tom que pessoas que mesmo não sendo muito ricas deixassem testamento.
    Enfim, tudo isto por causa de um lindo azulejo existente em Castelo Branco. E, já agora, pergunto, ou eu sonhei,ou a Igreja acabou com o Purgatório?


    Um abraço amigo

    Alexandra Roldão

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    1. Alexandra.

      Julgo que o que acabou foi o Limbo. O Purgatório continua a existir, mas a Igreja faz dele é um uso mais ponderado, mais racional, embora se continue a rezar pela salvação das almas.

      Confesso que quando li este testamento da minha trisavó fiquei quase que impressionado com a importância da salvação da alma e dos aspectos espirituais. Por isso, relacionei-o de imediato com este bonito registo de azulejos. O testamento da minha trisavó e o registo acabam por ter o mesmo significado religioso.

      Um Bjo

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  3. Os centros históricos das nossas cidades mais antigas guardam destas surpresas, que nos fazem parar, admirar, fotografar. A última vez que fui a Castelo Branco também fotografei vários elementos interessantes em fachadas, mas em pedra, não me lembro de ter visto nada em azulejos.
    Acho notável este painel dedicado às alminhas, em primeiro lugar por ter uma cruz que não é formada por um conjunto de azulejos de revestimento dispostos dessa forma, como já tenho visto. Estes azulejos foram mesmo concebidos para este efeito e lá está a coroa de espinhos ao meio da cruz e o que me parece serem os pregos da crucificação (?) nas extremidades, a atestá-lo.
    Acho a base da cruz muito interessante, a reproduzir uma peanha. Os azulejos com a figura de uma alminha a arder em chamas deviam ser fabricados “em série” mas depois há os outros com a representação da morte, fabricados como painel recortado e com uma inscrição. O painel parece estar datado de 1735, o que é muito raro encontrar-se, a tinta da mesma cor da legenda Curiosamente esta data não é referida por José Queirós no capítulo de azulejos datados, da obra “Cerâmica Portuguesa e Outros Estudos”.
    Enfim, o Luís trouxe aqui um exemplar muito curioso da nossa azulejaria antiga. Gostei muito!
    Beijos e bom fim de semana

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    1. Maria Andrade

      Estive em Castelo Branco a visitar os ratinhos da Fundação Cargaleiro, muito bem organizados pela nossa amiga Ivete e ainda o Museu Francisco Tavares Proença Júnior, que tem uma belíssima colecção de têxteis. Dormimos uma noite na cidade e claro batemos tudo, acima e abaixo, durante a noite e o dia e lá descobrimos este painel, que está a uma altura mais lisboeta, mais típica do Sul. Lá mais pelo Norte, tendes os telhões, que estão bem mais ao alto. Enfim, tudo isto é para lhe dizer, que estou mais vocacionado para olhar para uma altura mais específica.

      O Painel é de facto invulgar pela data, 1735. Julgo que não há muitos datados. O tipo de painel em forma de cruz com uma peanha é comum no Sul e já aqui mostrei vários desse género. O que talvez seja mais giro, foi esse facto que reparou, que se misturam azulejos de série, como as figurinhas de baixo, que se deviam vender soltas, com outros azulejos, especialmente concebidos para fazer um painel. É mais um caso da criatividade da azulejaria portuguesa.

      um beijo

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    2. Aqui na zona de Coimbra também há cruzes em azulejos com peanha bastante elaborada, mas as que conheço estão integradas em conjuntos da Via Sacra. Já mostrei no blogue a única que resta em Condeixa, azulejaria coimbrã datada de 1782 e lá perto, na fachada da Igreja da Ega há várias, também da Via Sacra. Esta impressionou-me pela singularidade, tem um ar mais arcaico, talvez pelas alminhas... ;) São realmente coisas muito giras de observar!

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    3. Maria Andrade

      Não sei se haverá mais alminhas pelo resto da cidade de Castelo Branco. Por exemplo em Estremoz, há pelo menos uns dois ou três painéis formados por dois azulejos, um homem e uma mulher, colocados nas saídas do antigo burgo.

      Como referi ao Manel, tenho ideia de ter lido algures, mas não era uma coisa fundamentada, que estas alminhas eram colocadas nas encruzilhadas e marcavam o início e o fim de um espaço urbano, isto é, uma zona sacralizada. Mas, não como me recordo onde li isso, resolvi não o referir no blogue, para não transmitir informações imprecisas ou colocar mais lixo no espaço cibernético.

      Bjos

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  4. Luis,

    Você e suas alminhas.

    Não temos muitas ´por aqui, não falo de falecidos, que há sempre mais e mais em toda parte, falo de azulejos, quadros, talhas, etc.

    Há uma "devoção" popular para com as "13 Almas Benditas". Não faço ideia do que seja.

    Faz um tempinho havia um azulejo com dua figuras ajoelhadas, umas labaredas e umas iniciais que não me recordo, porque a peça não me despertou tanto interesse (naquele tempo). Talvez fossem PN e AM também.

    Acho que Vc sabe mas recordo: a doutrina católica ensina que Purgatório é caminho e parte do Céu. De lá não se vai nunca ao Inferno e nem se consome junto às chamas... Então, devem ter ido todas para o Céu, daí o sumiço das pobrezinhas...

    Tem um antiquário na Serra com uma NS do Carmo que me faz coçar os bolsos. Mas nunca dá. Trata-se de uma peça de uns 25 cms em Pedra Sabão (ou talcosa) que não me atrai muito pela fragilidade. Por aqui se desvalorizaram nos últimos tempos em relação às peças de madeira ou terracota. Mesmo mais antigas e belas. Há umas baianas muito elaboradas. A exceção são as peças de Lapinhas. E uma ou outra Madona sobre uma cacata de flores...
    Esta de que falo é bem diferente. Há algo de oriental. Totalmente chapada (deve ser vista só de frente) Lua invertida que segura (incrível) toda a peça e 2 alminhas em meio às chamas jundo à base. Tudo num entalhe perfeito, como uma gravura.

    Quem sabe um dia eu pego.

    Um abraço.

    ab

    PS.Pelo sim, pelo não, pelas Santas Almas rezemos: PN, AV e GP...

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    1. Amarildo

      Certamente que esse azulejo que viu "com duas figuras ajoelhadas, umas labaredas e umas iniciais" seria uma alminhas do Purgatório". Normalmente o culto das alminhas associa-se a S. Miguel ou a Nossa Senhora do Carmo.

      Julgo que os altares exteriores com as alminhas do Purgatório são caracteristicamente portugueses.

      Um abraço

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  5. Estas alminhas que invadem o território português, não me lembro de as ter visto por esse mundo fora, ou talvez as tivesse visto há muito tempo, quando não reparava nelas.
    Há realmente alguns passos da paixão quando nos passeamos por Espanha, mas alminhas não me lembro de as ter visto. Pelos vistos, segundo o Amarildo, tão pouco são comuns pelo Brasil.
    Serão uma criação portuguesa ou serei eu um cegueta que as não vejo, quando saio???
    Bem seja o que for, gosto imenso delas todas, e destas em particular De tal forma gosto delas que acabei por colocar um azulejo com umas alminhas, cópia dum original que encontrámos em Óbidos, na parte da frente da minha casa. Nunca se sabe se não serão necessárias ...
    Conhecia mal Castelo Branco, e esta escapadela foi muito agradável.
    Manel

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    1. Manel

      Em Espanha há quadros e altares dentro das Igrejas representando as alminhas do Purgatório e julgo que em outros países católicos também.

      Julgo que a característica mais portuguesa seja a colocação de altares de alminhas no exterior, normalmente em encruzilhadas. Já há uns tempos li sobre esse hábito, que seria uma qualquer reminiscência pagã, mas não encontrei nada de muito sério escrito sobre o assunto. Em todo o caso o culto às alminhas do Purgatório em altares colocados no exterior é caracteristicamente português.

      Um abraço

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  6. Luís,
    Tão interessante. A relação com a morte é para mim algo difícil.
    Há alminhas muito bonitas.
    O seu texto é rico e nós envolvemos-nos no passeio.
    Um abraço. :))

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    1. Ana

      A relação com a morte nunca foi simples para o género humano. A religião facultou sempre ao homem uma forma de lidar com esta fatalidade. O culto das alminhas era precisamente uma caminho para nos ligarmos aos nossos antepassados.

      Hoje, talvez essa ligação a quem já morreu talvez se possa manter através da história, da memória e de um certo culto dos objectos, que muitas vezes é assunto neste blogue.

      Um abraço

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  7. A dada altura, no romance "Dune" do Frank Herbert, a personagem Jessica comenta com o seu filho Paul Atreides que se pode ver o grau de civilização de um povo na maneira como trata os seus mortos.

    Nos anos 60 (altura em que o romance foi escrito) uma observação dessas não parecia muito relevante.
    Agora, em pleno século XXI, o impacto dessa frase é bem marcante. Numa sociedade em que todo o ser humano é "eliminado da memória colectiva", assim que deixa de ser activo, estamos perante uma sociedade descartável.

    "Se já nada tens para dar, então não existes nem nunca exististe"

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    1. Mike

      Gostei imenso do seu comentário, que tocou no âmago deste post sobre as alminhas.

      Sabe que quando comecei a redigir o texto sobre estas alminhas, a intenção era focar-me mais sobre a azulejaria propriamente dita, até porque em posts anteriores já tinha escrito o que sabia acerca deste culto das alminhas e enfim tinha esgotado o assunto da iconografia. Mas quando comecei a escrever, as primeiras linhas do texto sobre a salvação das almas, o assunto desviou-se quase automaticamente para o testamento da minha trisavó, que me impressionou imenso, pois cerca de dois terços do texto tratam dos negócios da vida para além da morte. Este registo azulejar e o testamento da minha trisavó são ambos testemunhos de uma forma de encarar a morte, de estabelecer uma relação duradoura entre os mortos e vivos. Numa época descristianizada como a nossa, talvez haja necessidade de encontrar alternativas de manter a ligação com os nossos mortos, ainda que de uma forma mais simbólica, sem recorrer a divindades.

      Um abraço

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    2. Obrigado pela observação.

      De um ponto de vista antropológico, e religiões aparte, o culto e lembrança dos mortos advém de uma necessidade prática, que já deve vir dos tempos mais remotos. Possivelmente com os seguintes objectivos:

      1 - Lembrar aos vivos que a Morte é um fenómeno natural e não paranormal. A Vida continua sempre, apesar de tudo.

      2 - Recordar aos vivos que, um dia, irão também eles desaparecer da face da Terra. Aproveitem a vida, enquanto podem.

      3 - Ajudar os vivos a recordar a vida dos entes queridos, para dela extraírem conhecimento. Aprenderem com os bons exemplos dos mortos e evitarem os seus maus exemplos.

      A nossa sociedade actual, hedonista, pretende eliminar tudo o que não seja prazer e alegria da vida quotidiana. Em virtude disso, até a memória do Passado fica sujeita à eliminação.

      Os resultados estão à vista: colapsos sociais e erros grosseiros cometidos em vários sectores da vida (económico, político, etc). Uma sociedade que não reflecte sobre o passado, obviamente não tem futuro.

      Peço desculpa por me prolongar sobre este assunto.

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  8. Mike

    Gostei imenso das suas palavras. Aliás a relação com a morte tem estado presente em muitos dos posts deste blogue, ainda que de uma forma um pouco camuflada ou por vezes mais poética. Quando se escreve sobre velharias, está-se sempre a discorrer sobre objectos que passaram por muitas mãos e a tentar de uma forma ou de outra reconstituir histórias dos que já partiram.

    Também é verdade que nossa relação com a morte passa sempre pelo sentimento do remorso. Sentimos a culpa por termos sobrevivido aos nossos entes queridos. Pagamos a nossa existência com o sangue dos outros. Este remorso pode-nos envenenar a existência para sempre ou pelo menos entristecer-nos em muitas das nossas noites de insónia. A Simone de Beauvoir descreve estes sentimento naquele romance admirável que é o Sangue dos outros. Já não tenho o livro comigo, para ir buscar uma citação célebre, que resume muito bem tudo isto. Deixei-o em casa da minha ex-mulher, mas faz-me falta, pois é daqueles livros essenciais.

    Um abraço

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