quinta-feira, 26 de março de 2015

Maria Egipcíaca: uma estampa com sabor a pecado

Sempre tive uma certa atracção pela figura de Maria Egipcíaca, essa santa que andava a vaguear nua no deserto, coberta apenas pelos seus longos cabelos, de modo quando vi uma estampa antiga à venda com a sua imagem e comprei-a, sem pensar duas vezes, sobretudo sem saber como conseguirei arranjar espaço para encaixa-la lá em casa.
A imagem representa o encontro de Maria Egipcíaca, que deambulava em penitência pelo deserto há 47 anos, com S. Zósimo. Quando a Santa o encontra, pede-lhe um manto para cobrir a sua nudez, conta-lhe então a sua história e S. Zósimo dá-lhe a comunhão. Ao fundo vê-se uma caveira e uma cruz, atributos que costumam acompanhar a imagem desta santa e que a fazem muitas vezes confundir com Santa Maria Madalena, outra pecadora arrependida. A caveira significa como são efémeras as vaidades do mundo e a cruz simboliza a Salvação, o único e verdadeiro fim, que deverá nortear o caminho a seguir por todos os homens e mulheres.
 
A iconografia de Maria Egipcíaca e Maria Madalena confunde-se facilmente. São representadas com longos cabelos, as vestes a escorregarem, uma cruz e a caveira. Madalena Penitente por Luca Giordano. Museu do Prado

Desta Maria Egipcíaca, que terá vivido por volta do século V depois de Cristo não há propriamente registos escritos da época, que testemunhem a sua existência. A história da sua vida aparece pela primeira vez escrita, por um tal Sophronios, Patriarca de Jerusalém, no século VII, e depois disso o assunto foi repetidamente contado novamente por vários autores piedosos. O mais curioso é que enquanto no Oriente, os relatos centraram-se mais na vida de S. Zósimo, no Ocidente, durante a Idade Média os hagiógrafos e os poetas transformam em protagonista Maria Egipcíaca. Forma-se nessa época a lenda que ainda hoje se lê em toda a parte, da jovem que se prostituía em Alexandra, mais por prazer do que por dinheiro e que um dia partiu para Jerusalém, não porque lhe interessa-se a espiritualidade da cidade, mas em busca de mais aventuras. Conta-se que pagou a viagem com o seu próprio corpo entregando-se aos vários marinheiros da tripulação. Em Jerusalém, um dia, por acaso, tentou entrar na Igreja do Igreja do Santo Sepulcro e uma força qualquer estranha impedia-a de entrar. Percebeu-se que havia qualquer coisa de profundamente errado na sua vida, arrependeu-se e então ouviu uma voz dizendo-lhe para atravessar o rio Jordão, pois só ali encontraria o descanso. E esta mulher habituada aos prazeres da vida, larga tudo e parte em direcção ao deserto, levando apenas três pães com ela. Viverá como eremita, as suas roupas acabarão por desfazer-se e a apenas os seus longos cabelos desgrenhados cobrirão a sua nudez.
Na literatura que se formou sobre a vida de Santa Maria Egipcíaca, a aventura e o erotismo tem um peso evidente, camuflado por debaixo de uma história piedosa. A última comunhão de Sta. Maria Egipcíaca, por Sebastiano Ricci, c. 1695. The National Gallery of Art
Uma autora americana Connie L. Scarborough, num artigo intitulado Santa María de Egipto: la vitalidad de la leyenda en castellano, sublinha que em toda esta literatura que se formou sobre a vida de Santa Maria Egipcíaca, o que mais se destaca é o lado aventuroso, em detrimento do sagrado. No fundo criou-se um relato, onde a aventura e o erotismo tem um peso evidente, camuflado por debaixo de uma história piedosa e que encontrou grande popularidade, na Idade Média, época de repressão sexual e que continuou a seduzir senhoras piedosas, cavalheiros respeitáveis, castas donzelas, monges e freirinhas, por esses séculos fora.


A estampa foi impressa em Lisboa, gravada por Gaspar Frois Machado (1759-1796) e vendia-se na casa de Francisco Manuel no fim da Rua do Passeio, isto é o Passeio público, o jardim público criado durante o consulado pombalino em 1760 e destruído a partir de 1879 para rasgar a Avenida da Liberdade. Portanto a gravura, até a julgar pela decoração neoclássica da cercadura deve ter sido impressa nos últimos anos do Século XVIII ou nos primeiros anos do Séc. XIX.

Esta estampa apresenta a legenda, S. Maria Egypciaca da Goarda Real, porque a referida Santa foi a padroeira da Guarda Real dos Arqueiros, cuja irmandade tinha sede na Igreja dos Mártires em Lisboa. Explica-se assim também o escudo real português no topo da cercadura do registo. Não consigo é explicar porque é que uma pecadora, ainda que muitíssimo arrependida, fosse padroeira da Irmandade da Guarda Real dos Arqueiros. Talvez houvesse qualquer associação entre a flechas dos arqueiros e o arrependimento, que atingiu como uma seta o coração de Maria Egipcíaca, ou talvez os guardas, que protegiam a família real experimentassem algum prazer erótico em pensar na protecção desta mulher que caminhava nua pelo deserto.


Em todo o caso, depois de comprar esta estampa e pelo que li sobre ela, fiquei a apreciar ainda mais esta figura lendária e o seu gosto pela aventura e pela liberdade, que se manifestou sempre, mesmo depois de arrepender. Deambular nua pelo deserto, sem constrangimentos de qualquer espécie é sem dúvida um acto de supremo de liberdade e um desejo de absoluto, que nos nossos tempos nos parece estranho.

16 comentários:

  1. Também me maravilha esta Santa. A sua estampa é linda.
    Li com interesse.
    Luís, ando a ler um livro interessante onde um dos protagonistas é a Casa de Bonecas de Petronella Oortman, estou a pensar em fazer uma casa de bonecas. Onde é que o Luís arranjou os móveis miniatura para a casinha da filha?
    E o papel de parede arranjou numa casa de decoração?
    É um projecto que quero abraçar. Veremos se sairá alguma coisa de jeito.:))
    Um abraço.

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    1. Ana
      Obrigado pelo seu comentário.

      Montar uma casa de bonecas é um projecto a longo prazo.

      A melhor loja para comprar uma casa, as mobílias, o sistema eléctrico, os candeeiros, o papel de parede ou as louças é o Hospital das Bonecas, em Lisboa, na praça da Figueira.

      Por vezes há editoras, que em fascículos lançam colecções, em que aos poucos de pode comprar uma casa de bonecas.

      Eu também comprei algumas mobílias na feira-da-ladra e outras em Paris. A internet está também cheia de lojas de venda on line de casas de bonecas e dos seus acessórios e estes ultimos como são pequeninos tem portes de envio reduzidos.

      Algumas coisas foi eu mesmo que fiz, como os azulejos que imprimi da internet, recortei e depois colei uma película transparente por que lhes deu um brilho estupendo.

      Há muitos sites com as chamadas dicas úteis para montar uma casa. Primeiro compra-se a casa, normalmente é necessário monta-la. Fazem-se as divisões, o sistema eléctrico e depois é que se cola o papel de parede.

      bjos e boa sorte

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    2. Luís,
      Muito obrigada pelas informações, é mesmo a longo prazo. Já estive a ver na internet. A próxima vez que for a Lisboa vou visitar o Hospital das bonecas.
      Já estive a recolher imagens sobre os azulejos de Delft pois a vontade nasceu da visita ao Rijksmuseum.
      Não sei se vou conseguir electrificar. Ultrapassa os meus rudimentares conhecimentos.
      Vi na internet que até há quem faça o chão com pequenas peças de madeira ou algo parecido. Também arquivei várias imagens de chãos.
      É um sonho a longo prazo. Comprei o suporte em madeira com divisões e sótão.
      Não foi numa loja da especialidade mas adapta-se bem.
      Penso em colar tecido mas não sei se resultará. Isto é a cola ficará a ver-se.
      Dúvidas e imaginação sem conhecimentos é um perigo.
      Beijinho e obrigada pelas dicas.:))

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    3. Ana

      As casas de bonecas supostamente destinadas a crianças são sempre um projecto a longo prazo e o mais engraçado é personalizar a decoração a nosso gosto. Pode optar por uma decoração holandesa do século XVII, fazer salas estilo Luís XVI, interiores vitorianos ou forrar tudo com azulejos portugueses.

      Pode optar forrar com tecidos, mas escolha um padrão miudinho ou liso. Existem nas retrosarias colas só para tecidos.

      A eletrificação não tem nada que saber. Compra-se uma espécie de conjunto de tomadas, onde se vão ligar todos os candeeiros. Essa espécie de ficha tripla esconde-se atrás da casa e vai ser ligada a um transformador. Os fios correm por debaixo dos soalhos se forem para cadeeiros de tecto, ou fazem-se uns furinhos na parede para os apliques. No Hospital das bonecas vendem todos esses acessórios. Se quiser mando-lhe fotos, embora também encontre explicações na santa internet.

      bjos e espero que vá mostrando a casa de bonecas no blogie

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  2. Muito interessante como sempre. Bom fim-de-semana!

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    1. Margarida

      Muito obrigado.

      Estas santas pecadoras dão sempre excelentes temas. Qualquer a abordagem que se escolha acaba-se sempre a trilhar caminhos interessantes. Bjos e boa Páscoa

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  3. Luis.

    Você já falou, e provou, sua admiração por estas personagens ambíguas: Madalena, Maria Egipcíaca, etc.

    A iconografia destas duas realmente é permutável. Não fossem as legendas e alguns detalhes, facilmente são trocadas.

    Por estes dias estão oferecendo um pequeno quadro pintado sobre vidro. Oferecem como Santa Verônica mas deve ser uma Madalena ou M E. Pena que perdi o link.

    Lá no seu texto faltou um "I" na datação romana mas se compreende que queria dizer XIX e não XX.

    Um abraço.

    ab

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  4. Amarildo

    Sou trapalhão a escrever e apesar de ver e rever os meus textos vezes sem conta, no final escapa sempre uma gralha. Já emendei o referido lapso.

    Talvez neste texto devesse ter mencionado, que no período em que viveu esta figura lendária, muita gente bem instalada na vida, largava tudo e ia viver para o deserto, tentar encontrar Deus ou a Salvação. O Império romano do Ocidente tinha-se estraçalhado à mãos dos bárbaros e havia um ambiente de insegurança e mudança, que fez muita gente procurar deus de uma forma tão absoluta. Para nós, que vivemos em sociedades estáveis, com cuidados médicos, sem ameaça de guerras este desejo de absoluto sentido no século V parece-nos estranho, mas na época existia mesmo um movimento de eremitas, de gente que partia para sítios afastados, para o deserto ou vivia toda uma existência em cima de uma coluna.

    Um abraço

    um abraço

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  5. Luís, foi aqui no seu blogue que ouvi falar desta santa pela primeira vez, provavelmente a propósito de uma outra estampa, mas já não estou certa.
    A verdade é que as vidas dos santos fornecem muitas vezes histórias de pecado, sofrimento e redenção que muito povoariam a imaginação dos fiéis num passado mais remoto... e aparentemente mais púdico.
    Hoje muitos caíram no esquecimento e não são conhecidos do comum dos mortais, mesmo dos devotos, como será o caso desta Maria Egipcíaca.
    Assim, vai-lhe sendo possível encontrar estes objetos raros e discorrer aqui sobre eles de uma forma que nos desperta interesse e prende tanto a atenção.
    Boa Páscoa! Beijos

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    1. Maria Andrade

      Em plena época de liberdade sexual, onde na internet circulam livremente milhares de imagens de conteúdo sexualmente explícito, já ninguém precisa da história da pobre Maria Egipcíaca para excitar a líbido.

      Também é verdade, que na sociedade em que vivemos, com cuidados médicos garantidos, estabilidade económica, sem ameaças de guerra, ninguém tem necessidade de partir para o deserto em busca do absoluto.

      Por estas razões, o culto de Sta. Maria Egipcíaca já não diz nada a ninguém. Só é relembrado por doidos como eu, que apreciam aquilo que toda a gente já esqueceu.

      Bjos e boas Páscoa

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  6. Essa "doidísse"é muito saudável!!! Subscrevo o comentário da Maria Andrade com apenas uma diferença; é que eu nunca tinha ouvido falar desta santa. Uma coisa é certa o Luís tem vindo a despertar-me o interesse para a gravura!
    Boa Páscoa.
    Ana Silva

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    1. Cara Ana Silva

      Pois foi, a pobre Maria Egipcíaca foi relegada para a prateleiras das figuras históricas e lendárias esquecidas. Talvez por essa razão eu simpatize tanto com a figura, pois gosto sempre de remar contra a maré.

      Para quem não tem dinheiro para comprar boa pintura, que é muito cara, a melhor opção para decorar as paredes são estampas. Já comprei por 10 ou 20 euros boas estampas do século XVIII e até do XVII. Os preços são muito em conta.

      Um abraço

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  7. Para alguns de nós os personagens menos prosaicos e até os de índole menos recomendável acabam por ser, se não os mais interessantes, pelo menos aqueles por quem nutrimos algum sentimento especial, quer se trate de um livro, dum seriado ou mesmo de um filme.
    Esta personagem acaba por cair nesta catalogação, daí talvez o interesse acrescido que desperta.
    A moldura da gravura é muito bonita
    Manel

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    1. Maria Egipcíaca é daquelas personagens romanescas, que mesmo por debaixo da capa do cristianismo, detectamos quase de imediato o gosto pela aventura e concluímos que as personagens pouco recomendáveis são sempre mais interessantes.

      Um abraço

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  8. Linda estampa! Eu adoro Santa Maria Egipcíaca, a vida dela é demais!!
    Parabéns pela aquisição, parabéns pelo seu texto sempre ótimo de se ler.

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    1. Jorge

      Santa Maria Egipcíaca recorda-me sempre o dito de uma personagem de uma novela brasileira. "As boazinhas só vão direitas para o céu e nós, as más, vamos a todo o lado"

      Um abraço

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