quarta-feira, 12 de outubro de 2016

O mercado de Chaves, a Aninhas Vitorino e a minha avó Mimi: algumas memórias

A minha avó Maria do Espírito Santo Montalvão Cunha
Há pouco tempo enviaram-me por e-mail um link para o blog de um fotografo francês, Gérald Bloncourt, que nos anos 60 e 70 esteve em Portugal, a fazer uma série de fotografias sobre Trás-os-Montes, onde captou a miséria e a pobreza daquela região, com a beleza que só o preto e branco torna possível. Ao vaguear neste blog, descobri umas quantas imagens, tiradas no antigo mercado de Chaves, que me tocaram particularmente, pois parece que fixaram na película, as recordações que guardei desse espaço durante minha infância.

O mercado de Chaves, Foto de Gérald Bloncourt. Ali perto situava-se o estabelecimento da Aninhas Vitorino

A minha avó Mimi vivia num apartamento em Chaves, na Rua Cândido dos Reis, com vista para o mercado de Chaves. Nós, que éramos miúdos, adorámos ver da varanda todo aquele movimento do mercado, com as mulheres de grande buço a transportar à cabeça cântaros enormes, gente a carregar gaiolas com galinhas e toda aquela animação característica dos mercados. Muitas vezes, saíamos de casa e andávamos pelo mercado, atordoados por aquele barulho, formado a partir dos gritos das mulheres e dos homens, do grasnar dos gansos e cacarejar das galinhas e de muitas conversas em francês. Julgo que foi no mercado de Chaves que comi tremoços pela primeira vez. 

O mercado de Chaves, Foto de Gérald Bloncourt
A minha avó que era uma mulher chique, claro nunca ia ao mercado. Mandava a criada fazer as compras. Na sua opinião uma senhora com “S”, maiúsculo não deveria ser vista no mercado, no meio da hortaliça e das peixeiras. Claro, está a criada nem queria acreditar na sua sorte e para comprar meia dúzia de ovos, salsa, uma galinha e uns pêssegos passava a manhã inteira no mercado, na conversa com este e com aqueloutro, em vez de estar em casa, fechada a fazer limpezas ou a engomar.
A minha avó era uma mulher chique

Talvez a Mimi só passa-se pelo mercado quando este estivesse fechado, a caminho da Rua Longras, onde se situava o estabelecimento comercial da Aninhas Vitorino (1*), casa que abasteceu de tecidos, durante duas ou três gerações, as senhoras de Chaves. Mesmo assim, creio que preferia fazer uma volta maior, pelo largo do Arrabalde, para ir à Aninhas Vitorino, só para não ter de passar pelo mercado. Muito ouvia eu falar à minha avó e às minhas tias da Aninhas Vitorino e dos tecidos que tinha acabado de receber. Creio que a par das criadas, do tempo e das doenças, a Aninhas Vitorino era um dos principais temas de conversa das senhoras da boa sociedade flaviense. Lembro-me bem de acompanhar a Mimi até ao estabelecimento da Aninhas Vitorino, onde existia um grande balcão de madeira que separava os clientes das estantes onde eram arrumados metros e metros de sedas, algodões, chitas, crepes e eu sei lá que mais. Claro, a minha avó era uma chata, daquelas que mandava tirar os tecidos todos e depois não levava nada. Aliás, tenho ideia do meu pai me contar, que certa vez, foi a uma sapataria e experimentou tanto sapato, que no final voltou com dois sapatos do pé esquerdo. Mas também era um tempo em que não havia pressas e um vestido novo era uma coisa maturada, um processo longo. Primeiro consultava-se os figurinos, o nome que se dava então às revistas de moda, depois escolhia-se o tecido, mas sem ser ao primeiro impulso, pois trazia-se amostras da casa das fazendas e só depois de algum tempo tomava-se a decisão final e voltava-se novamente à loja, neste caso, à Aninhas Vitorino, onde a minha avô, que era muito sovina, comprava sempre o tecido com a medida à justinha. Depois, quando mandava fazer o casaco ou vestido, a modista deitava as mãos à cabeça porque a Mimi obrigava-a fazer bainhas com um centímetro de altura e por vezes ainda menos, pois a peça de fazenda ou algodão era muito pequena.

Não sei se hoje em dia essa instituição da elegância flaviense, o estabelecimento da Aninhas Vitorino ainda existe. O mercado foi destruído nos anos 80 e em seu lugar construíram uns blocos de apartamentos, tão altos quanto feios. A minha avó morreu nos anos 90, as criadas desapareceram, o Portugal miserável que Gérald Bloncourt fotografou no final dos anos 60 alterou-se profundamente, as desigualdades sociais diminuíram e hoje muito democraticamente todos fazem compras no hipermercado, independentemente do nível social a que pertencem.


1: Nota: O estabelecimento de Aninhas Vitorino já existia em 1915 na Rua das Longras, com o nome "Vitorino Teixeira", conforme se pode ler nas páginas 42 e 43, do "Guia-álbum de Chaves e seu concelho / Manuel António Rodrigues. - Chaves: Liga de Instrução e Beneficência, 1915". Portanto, nos anos 60 e 70 Vitorino era já uma casa comercial com tradição na cidade Chaves

12 comentários:

  1. Tu recordas este mercado, eu o bazar em Lourenço Marques, o meu local ideal para visitar, tanta cor, tanto cheiro, tanta coisa que não conhecia, mas que me atraia como íman.
    Aliás, ainda hoje, quando em viagem num país islâmico, escolho sempre o bazar em primeiro lugar para dirigir os meus pés.
    É um encanto.
    Os europeus são bonitos, e adoro-os, mas nada que se compare com um do Norte de África, ou de outra região afim.
    Lembro-me de ir com os meus pais ao mercado de Coimbra ou da Figueira da Foz, de onde vínhamos carregadíssimos, a cheirar a peixe, pois o meu pai era um adepto incondicional.
    São sempre memórias fantásticas pois acabavam por me comprar sempre qualquer coisa, e para nós, em criança, qualquer coisa, por mais pequena que seja, era sempre um tesouro.
    A minha mãe, nas lojas de tecidos, era um pouco como a tua avó. Primeiro que dali viesse um fiapinho de tecido eram necessárias viagens infinitas, trazer amostras, pensar nos botões que condiziam, os forros passados a pente fino, os ajours a condizer, estudar o figurino, fazer uma, duas provas e ... depois saía sempre um coisa a que chamavam vestido que, raro, considerava que merecesse tanto trabalho e preocupação.
    Como a minha mãe tinha de levar "chaperon", em criança cabia-me muitas vezes essa função. Não obstante, sabiam-me bem os bolinhos e a laranjada que acompanhavam de vez em quando estas visitas.
    Bonitas memórias
    Manel

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    1. Manel

      Os mercados são sempre um sítio fascinante para todos, sobretudo para as crianças. As imagens de Gérald Bloncourt tocaram-me imenso, porque de repente despertaram-me um conjunto de pequenas memórias que retive aqui e acolá do mercado de Chaves e da minha avô.

      Infelizmente não conheço os bazares africanos, mas mesmo alguns mercados europeus são muito curiosos. Lembro-me do mercado do Funchal, que tinha peixes estranhíssimos à venda ou do Mercado de Budapeste, um edifício fin-de-siécle, onde se encontravam à venda não sei quantas variedades de pimentos, as célebres paprikas, bem como as sementes de papoila que os húngaros usam muito na doçaria. Nem os cinquenta anos de regime comunista conseguiram apagar o colorido daquele mercado.

      Este post é também uma pequena evocação dos tempos em que o pronto-a-vestir não ainda estava ainda completamente generalizado e mandar fazer um casaco ou uma saia era uma coisa que implicava comprar um figurino na papelaria, umas quantas idas às casas de tecidos, aos retroseiros para escolher os botões e os galões e ainda as provas todas na modista. Na época as mulheres com uma vida economicamente mais desafogada não trabalhavam e havia que ocupar o tempo.

      Um abraço

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  2. Caro Luís,
    Poderia facultar-me o seu e-mail? Tenho um prato de faiança que gostava que visse, pois gostava de saber a sua origem e a sua idade. Considero-o talvez não um especialista, mas concerteza um bom entendido que me poderia ajudar.
    Cumprimentos,
    Helder Costa.

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    1. Caro Helder

      Pode ver o meu endereço de e-mail no perfil, na coluna do lado direito do blog.

      Um abraço

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  3. A roupa com bainha miúda, de um dedo, era sinal que o tecido foi comprado a conta ou tinha sido um retalho comprado nas promoções. Não pegava bem bainha estreita kkk Às vezes o pano era tão pouco que tinha que fazer uma bainha postiça com tecido do mesmo tom da fazenda e, se aparecesse, era uma tragédia! kkk O ideal era a bainha de 3 ou 4 dedos. Quando o forro de cetim não ficava assentado na fazenda, franzia fazendo grumos, era bainha mal feita e dava-se o nome de "pegando arroz"kkk
    As bainhas tão econômicas de Dona Mimi não eram devidas à Segunda Guerra?? Economia...
    Abraços.

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    1. Jorge

      Desculpe só agora lhe responder, mas tenho andado engripado.

      Com efeito, a sovinice da minha avó não era um caso único. A frugalidade e a economia eram antes hábitos nacionais durante todo o período que vai dos anos 30 aos anos 60, em Portugal. Naturalmente que essa frugalidade teve a ver com a guerra civil em Espanha(1936-1939) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), cujos efeitos se fizeram sentir no País. Portugal foi também nesse período um país pobre, com um baixo nível de vida.

      O próprio ditador de Portugal, António Oliveira Salazar dava o exemplo, usando o mesmo fato durante anos a fio e ao fim de uns anos, quando o tecido estava finalmente estafado, mandava-o ao alfaiate para o virar. O mesmo ditador usava para a sua casa as rígidas regras para o governo do País. A sua governanta criava galinhas no Palácio de S. Bento, cujos ovos vivia para fora e a sua residência oficial era quase auto-suficiente. Portanto, esta história da bainhas da minha avó é no fundo um traço típico de uma época.

      Um abraço

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  4. Olá Luis, boa tarde! Como vai? Faz tempo que não venho fazer-te uma visitinha.
    Com os dias tão acelerados e o calor que o verão daqui carrega, ando um pouco afastada na net.
    Minha mãe e avó sempre compravam cortes de tecidos para vestidos. Minha avó costurava, meus nonnos tinham alfaiataria, então ela sabia bem o oficio. E entre as tesouras, agulhas e dedais, tanto ouvia minha avó dizer a palavra figurino. Quanta lembrança...

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    1. Cara Glória

      A evolução dos costumes foi muito rápida e palavras como "figurino" quase que desapareceram do nosso vocabulário. Tentei precisamente evocar neste post um pouco desse mundo, em que um vestido novo era um processo complicado, com muitas idas à loja dos tecidos, à retrosaria e inúmeras provas na modista. Tudo isto passava-se numa cidade pequena do interior de Portugal, Chaves, que talvez não fosse muito diferente das cidadezinhas do interior do Brasil.

      Um abraço

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    2. Um vestido novo era um evento. Muitos dias eram necessários e conversas para chegar a uma decisão. E a quantidade de provas? A vida era tão poética, não?

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    3. Gloria

      Talvez por essas razões um vestido durasse tantos anos. Recordo-me por exemplo de um vestido branco da minha mãe, estampado com flores azuis, que ela usava no final dos anos 60. Esse vestido foi encurtado no início dos anos 70, no tempo das mini-saias e depois em final dos anos 70, foi transformado em avental e terminou assim a sua carreira por volta de 1985. Recentemente, descobri que esse vestido era muito mais velho do que pensava, pois a minha mãe aparece com ele, num filme que o meu pai fez, logo no inícios dos anos 60 e era originalmente muito comprido, cintado e com muita roda, como se usava na altura.

      Hoje ao fim de três ou quatro anos de uso, deitamos as nossas calças ou camisas fora, para comprar coisas mais actuais.

      Um abraço

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    4. Ahhhh amigo Luis, lendo (talvez ouvindo) estas tuas palavras, que contam a história de vida de um vestido, vi um filme passar pela minha mente. Com uma nonna costureira e muito criativa, vi vestidos serem confeccionados, com a iniciação em um casamento da família e depois serem reformados, para uma outra ocasição. Vestidos feitos para a neta mais velha, seguia com reformas ou aproveitamentos para as outras netas. Alguns cortes de pano foram tão aclamados em mesas de café da tarde, com bolos e geleias feitas em casa, e depois de alguns anos, acabaram em lindas amofadas que enfeitavam as nossas camas. Claro, para estes fins, a nonna exigia que os motivos da estampa fossem florais ahahaha. Também, em minha família, as fotos contavam histórias dos cortes de tecido.
      E para as festas de santos católicos, celebradas com danças típicas, outros tantos vestidinhos, já sem graça e perdidos nas pilhas de roupa sem uso, eram reformados para as netas exibirem nas quadrilhas dançantes, com muitos babados e cores. Fui parar no século passado, década de 60. Ai que delícia é chegar aqui para uma visitinha...

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    5. Gloria

      Gostei muito do seu comentário.

      Claro, nunca podemos voltar atrás no tempo, mas neste momento de crise económica e de preocupações ambientais, talvez seja a altura de pensarmos novamente em reciclar novamente cortes de tecidos, móveis velhos, roupa e toda uma série de objectos.

      Um abraço

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