Continuo um comprador compulsivo de gravuras. Desta vez, adquiri na feira de alfarrabistas da rua da Anchieta uma gravura feita a partir de uma tela de Watteau, que representa uma jovem elegantemente vestida, que sem medo do que os outros possam pensar, se dirige a um grupo de boémios, procurando um momento de diversão galante, sem grandes limites, esquecendo as sensatas recomendações feitas pela mãe e pelo senhor padre-cura. Enfim, uma verdadeira aventureira.
Peint par Watteau |
Pela grossura do papel, pela cor e pelas linhas de água que apresenta, a estampa pareceu-me desde logo coisa do século XVIII. Enfim, trabalho, há demasiado tempo com livros para confundir uma estampa do século XVIII com uma litografia do século XIX.
L'Avanturière. Troyes, Musée de beaux-arts. Foto de http://watteau-abecedario.org/ |
Fiz algumas pesquisas na net e descobri que esta gravura foi feita a partir de uma tela original de Watteau que se encontra no Musée des beaux-arts et d'archéologie de Troyes e que faz par com outra tela do mesmo pintor, intitulada L'Enchanteur.
L'Enchanteur. Troyes, Musée de beaux-arts. Foto Wikipédia |
Logo após a morte deste pintor francês em 1721, houve um senhor chamado François Jullienne ( 1686-1766), mecenas e um grande coleccionador das obras de Watteau, que encomendou aos melhores gravadores da sua época a reprodução da sua colecção de quadros daquele pintor. Os vários volumes dessa compilação foram publicados entre 1728 e 1736 e tornaram-se conhecidos pelo nome Recueils Jullienne. Foram acrescentados com outras gravuras setecentistas executadas a partir da obra de Watteau pelo Barão Edmond de Rothschild, no séc. XIX. No tomo I da Oeuvre gravé dessa compilação encontrei uma estampa igual à minha, na mesma página do L'Enchanteur, mas invertida e gravada por um tal Benoît Audran II.
Recueils Jullienne. http://technologies.c2rmf.fr/exhibitions/watteau |
A minha estampa está no mesmo sentido do quadro original, mas não tem a assinatura do gravador e portanto não foi executada Benoît Audran II. Mas em todo o caso, comprovou a minha impressão inicial que a gravura que comprei foi cortada e que deveria ter sido publicada na mesma página que outra estampa, muito provavelmente o L'Enchanteur. Consultei então o catálogo de uma exposição feita em Paris, em 1984, Watteau, 1684-1721. - Paris : Réunion des Musées Nationaux, 1984 e na entrada referente à L’aventuriere, refere-se que para além da gravura de Audran foram impressas mais quatro versões, uma por Louis Crepy, que encontrei a venda numa leiloeira francesa e que tem a orientação da tela do Museu de Troyes, mas está assinada e mais outras três, das quais o catálogo não dá referências. Enfim, a minha estampa será talvez uma dessas outras três.
L'Avanturière. Gravada por Louis Crepy |
Estas cenas galantes, povoadas por jovens ociosos, músicos e figuras da commedia dell arte, tendo por pano de fundo paisagens com árvores frondosas são típicas de toda a obra de Watteau (1684-1721). Com efeito, Watteau é um autor que procura antes de mais nada, capturar na tela pequenos momentos da comédia do amor, postos como numa peça de teatro, onde não faltam sequer as personagens da commedia dell arte. Nos seus quadros de festas galantes, onde gente de qualidade se diverte, espreitam estátuas de divindades e génios das florestas. É um mundo frívolo, ocioso, algo egoísta, e não há um gesto de ternura entre as personagens, que apenas procuram seu próprio prazer, com esta nossa aventureira.
Jovens ociosos, músicos e figuras da commedia dell arte |
Essa frivolidade da arte Watteau, característica de uma época, onde a grande nobreza francesa se diverte despreocupadamente, faz-nos no entanto a esquecer a qualidade das paisagens da obra de Watteau, que acabam por ser as grandes protagonistas das suas festas galantes.
A paisagem é a grande protagonista das festas galantes de Watteau. |
A obra de Watteau conheceu grande sucesso e foi muitíssimo copiada, nem sempre da melhor maneira. Cópias das suas obras aparecem estampadas em chávenas, vasos, leques, papeis de parede ou bibelots e até mesmo na azulejaria portuguesa, como num painel de azulejos, atribuído a Bartolomeu Antunes (1668-1753), que existe no Palácio Valada Azambuja (Biblioteca Municipal Camões) no largo do Calhariz, nº 17, em Lisboa, executada certamente a partir de uma estampa semelhante a que apresento hoje aqui.
Apesar da frivolidade das obras de Wattau, fiquei contente com a compra. Pendurada na parede da minha casa, esta gravura evocará as festas galantes do século XVIII, esse mundo despreocupado, que acabará nos cadafalsos da revolução francesa, depois de 1789.
L'Avanturière. Watteau. |
Alguns ligações e bibliografia consultadas:
À l'enseigne de Gersaint [Texte imprimé] : Edmé-François Gersaint, marchand d'art sur le pont Notre-Dame : 1694-1750 / Guillaume Glorieux. - Seyssel : Champ Vallon, 2002
Watteau, 1684-1721. - Paris : Réunion des Musées Nationaux, 1984
Não acho a gravura fantástica, pois parece-me só uma boa gravura típica de uma época, e fará mais sentido junto de um texto.
ResponderEliminarÉ mais interessante o trabalho de descoberta que fizeste sobre ela.
Mas bem emoldurada fará uma bela peça, no entanto, depois quero ver onde vais arranjar espaço para ela ... hehehehe ... tens sempre as paredes fora da casa, pois dentro já vai sendo difícil
Manel
Manel
EliminarEmbora não seja uma das minhas gravuras preferidas, há coisas que gosto muito nela, como o tratamento dado à capa da senhora que está sentada, que até é de melhor qualidade que o quadro original. A pintura e a gravura do século XVIII francês dão sempre uma ênfase especial à indumentária.
Terei que arranjar uma moldura dourada com o vidro pintado a preto nas bordas. Ficará bem com este género de gravuras.
Quanto ao sítio, na sala de jantar, ficará bem junto à gravura de Nattier., que também é um pintor frívolo.
Um abraço
Olá Luís
ResponderEliminarO que eu gosto nestes posts em que nos mostra as suas gravuras é precisamente o que o Manel referiu. Ou seja, a sua capacidade para pesquisar sobre cada uma delas e depois conseguir-nos aqui transmitir essa sua recolha de informação com aquela graça e rigor de escrita que, nestes assuntos, só o Luís consegue. Achei muito interessante haver reproduções desta gravura nos nossos azulejos.É daquelas coisas sobre as quais me interrogo quando fico perante painéis de azulejos desta época. Onde se inspirou o artista, que história nos conta. Enfim, um sem número de curiosidades, que para já, algumas, vão ficando sem resposta.Achei muito boa a sua ideia de pintar a beira do vidro a preto.Tenho aqui uma pequena foto original, 6x10,do meu pai em criança ( já a mostrei no blog) que quero mandar emoldurar e esta é capaz de ser uma boa ideia.
Bjs
Maria Paula
EliminarComprar uma gravura nova dá-me um gozo enorme, porque é o pretexto pra vasculhar a net inteira ou consultar livros. É uma área onde me movo muito bem, porque muitas das estampas foram arrancadas de livros ou estão catalogadas em bibliotecas e museus por esse mundo fora e o meu trabalho diário de bibliotecário é consultar precisamente os catálogos das grandes bibliotecas.
A maioria dos grandes painéis de azulejos historiados que se podem admirar nos nossos palácios e mosteiros tiveram por base gravuras. Imagine que um convento dominicano queria embelezar a sua igreja e o seu claustro com azulejos. O que eles fariam seria encomendar a um mestre de azulejos a reprodução das gravuras de um livro sobre a vida de S. Domingos, que existiria na livraria do convento. A gravura é a fonte de inspiração directa de uma boa parte dos grandes painéis de azulejos.
Há algumas casas que fazem esse trabalho com o vidro pintado a preto ou vermelho nas bordas e que vai muito bem com as molduras doiradas. Não fica é nada barato. Uma boa opção é comprar essas molduras nas feiras de velharias e retirar a litografia moderna que lá está.
Bjos e obrigado pelas suas palavras tão simpáticas
E tudo conhece sobre pose e atitude, esta tua aventureira...
ResponderEliminar(risos)
EliminarElegantemente vestida, esta nossa aventureira segue determinada, sem problemas de consciência o seu caminho em direcção ao grupo de boémios. A arte francesa desta época, por mais fútil que nos pareça, tem sempre este lado libertino que a torna apelativa aos nossos olhos, de gente que vive uma época de liberdade sexual.
Um abraço