segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Maria Madalena a arrependida ou uma visita ao Museu de Aveiro

Visitei recentemente o Museu de Aveiro, que tem uma colecção riquíssima de talha dourada e escultura religiosa. No meio daquelas salas e salas pejadas de altares fantásticos de talha e santos com trajes riquíssimos, descobri uma Maria Madalena em barro, do século XIX, que me encantou completamente. Tirei-lhe três fotografias e todas ficaram estupendas. As verdadeiras estrelas são sempre fotogénicas.

Todos nós gostamos da figura de Maria Madalena. Ainda que arrependidas, as pecadoras são sempre mais populares que as mártires, as virgens, as abnegadas e todas aquelas mulheres do cristianismo que viveram uma vida inteira de reclusão. Passa-se o mesmo na literatura, no cinema ou na televisão. Preferimos sempre a Scarlett O'Hara à Melanie Hamilton, adoramos a Becky Sharp da Feira das Vaidades do Thackeray e nas novelas brasileiras, as bandidas suplantam em popularidade as boazinhas. 

Mulheres pecaminosas do cristianismo, mesmo que arrependidas no final da história, Maria Egipcíaca e Maria Madalena foram como que um pretexto quase inconsciente para introduzir sub-repticiamente o erotismo na arte ou apimentar subtilmente os livros que relatavam a vida dos santos. Apesar de condenar o sexo praticamente desde o seu início, houve continuadamente no cristianismo, uma forma de passar algum erotismo na arte ou nos relatos hagiográficos, pois o ser humano precisa de sexo, como água para viver.
Santa Maria Madalena, Museu de Aveiro, inv. 99B

Esta Maria Madalena do Museu de Aveiro enverga um manto esvoaçante e um vestido vermelho, como se outrora, nos tempos do despertar da puberdade, se tivesse entregado às garras de algum lobo mau, daqueles que espreitam as encruzilhadas do início da nossa juventude e aparenta aquela melancolia, que sempre advêm depois de um encontro fortuito de sexo ou de uma traição à pessoa amada.

8 comentários:

  1. Realmente não é a "Menina do Capuchinho Vermelho", mas é uma peça dotada de uma beleza que só o movimento barroco permite dar.
    Todo o movimento do manto e dos cabelos dá ideia de dinamismo, mas se se reparar bem, todo o conjunto insere-se dentro de uma oval algo estática.
    É a técnica teatral barroca de dar ideia de uma coisa sem que ela exista na realidade. É um faz de conta, mas que se torna real.
    E o contraste cromático ajuda, claro.
    A figura parece ir de um êxtase místico a quase uma espécie de êxtase carnal, o que a torna mais humana, mesmo sabendo que se trata de uma santa da igreja.
    É verdadeiramente uma peça de arte sacra fantástica. Aliás, todo o museu está repleto da melhor arte sacra que foi possível produzir no passado.
    Não conhecia este museu, mas, mais uma vez, se verifica o poder religioso e a forma como comandou a arte durante séculos.
    Para obter esta hegemonia, foi absolutamente indispensável que esta igreja fosse construída e liderada por gente proveniente dos estratos sociais superiores, educada e culta, sensível, que soubesse comandar os artistas na procura do belo excecional, raro e atraente ao olhar, no sentido de tocar e dirigir, primeiro visualmente e depois religiosamente, toda uma população
    Manel

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Manel

      É espantoso como é possível a partir de um pedaço de barro, um material tão barato, obter uma peça cheia de vida e movimento. Com efeito, parece-nos que a figura está no meio de uma tempestade, em que as suas vestes se agitam.

      É uma obra capaz de nos suscitar os sentimentos mais diversos.

      Todo o Museu de Aveiro está pejado de obras de arte sacra fantásticas e tirei imensas fotografias, mas escolhi desde logo esta imagem. Parece tolo afirmar que uma escultura de barro é fotogénica, mas por um fenómeno que não consigo explicar e que terá talvez a ver com a natureza da própria obra, esta Maria Madalena destacou-se espontaneamente entre todas as outras.

      Na época dos membros da Igreja que encomendavam obras de arte, pertenciam à mais alta nobreza e tinham uma educação esmerada. Patrocinavam os melhores arquitectos, escultores entalhadores ou barristas. O resultado é que hoje, estas peças que foram dessacralizadas e expostas em museus, ainda nos despertam sentimentos e emoções fortes, apesar de já não termos qualquer espécie de crença.

      Um abraço

      Eliminar
  2. Belíssima imagem. Não tem nenhum dos atributos da santa, a cruz,a caveira, o pote, um livro. Só tem o arrependimento mesmo e, este, o escultor soube reproduzir no barro. A santa se contorce. Uma beleza!!!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Caro Jorge

      Muito bem observado. Não tem nenhum dos atributos da santa, apenas o arrependimento e no entanto reconhecemos imediatamente que se trata de Maria Madalena. É uma pequena obra genial.

      Um abraço

      Eliminar
  3. Caro Luís,
    Ainda não tinha tido oportunidade de lhe desejar um Ano Novo cheio de velharias interessantes para comentar e partilhar.
    Obrigada pelo seu blogue tão rico de conteúdo.
    Beijos,
    Marisa Carvalho
    Blogue: Ancestralpampilhosense

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Cara Marisa

      Muito obrigado pela sua lembrança tão simpática.

      Desejo-lhe um óptimo ano para si.

      Bjos

      Eliminar
  4. Adorei o teu olhar, especialmente, as últimas linhas! Bravo!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Gloria.

      Obrigado. Apreciei que tivesse compreendido e apreciado as últimas linhas do meu texto. Com efeito, podemos entender de muitas maneiras uma imagem religiosa e é possível nesta representação de Maria Madalena, ler o momento de arrependimento e melancolia que sempre se segue a um momento de euforia sexual.

      Um abraço

      Eliminar