quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Um vestido novo em 1930


Esta é uma fotografia da irmã da minha mãe, a Maria Adelaide, tirada no já longínquo ano de 1930, na Foz do Porto. Teria ela uns 17 anos e orgulhosa, mostra um vestido certamente novo, pois na época, a fotografia ainda era cara e só se tiravam retratos em momentos realmente importantes, com a toilette a condizer. A tia Maria Adelaide vivia em Vinhais, uma vila da raia transmontana e uma ida à cidade do Porto era um acontecimento, suficientemente especial para se estrear um vestido novo. Vinhais era e ainda é uma povoação isolada no meio de montanhas e em 1930 e ir até ao Porto significava apanhar uma camioneta para Chaves, depois um comboio até à Régua e finalmente outro para o Porto. Provavelmente pernoitaria pelo caminho e demoraria uns dois dias de viagem a fazer os cerca de 200 km que separam Vinhais do Porto. Em suma, naquele tempo, para uma rapariguinha de Vinhais viajar até ao Porto era mais ou menos a mesma coisa que hoje ir passar uns dias a Nova Iorque ou Paris. Ainda para mais, ficou alojada na Foz, a zona mais chique do Porto, talvez em casa de parentes ou nalguma pensão suficientemente respeitável para receber uma rapariga séria.
 

Para fazer boa figura na Foz do Porto e com suficiente antecedência, a minha tia Lalai terá comprado um tecido e ela própria terá confeccionado o vestido, segundo um figurino publicado numa revista de moda, ou no suplemento feminino de um jornal português. E o que é certo é que escolheu um modelo actualizado, pois o corte correspondia ao que era preconizado para a Primavera de 1930, pelo conhecido magazine parisiense Le Petit echo de la mode, em Março de 1930. A saia era mais alongada, que na década anterior, alargando suavemente para baixo e a cintura também ligeiramente mais acentuada, que nos anos 20.
Le Petit echo de la mode, Março de 1930
Certamente que em Vinhais a minha tia calçaria umas grossas meias de lã, mas aqui fez-se fotografar com umas meias de seda ou talvez de viscose, uma seda artificial, que se começou a usar precisamente nesta altura. O nylon só entrará na Europa depois de 1945.

O que é mais curioso desta fotografia é que a minha tia ao longo da sua vida manteve-se mais ou menos fiel a este corte de vestido. Recordo-me de a ver no casamento da minha prima Dadinha no final dos anos 80, com um vestido preto exactamente com este corte, só que em vez da gola tinha um pequeno decote fendido. Era uma coisa muito sóbria, elegante e adequada à idade, o chamado simples vestido preto. Aliás, todos nós temos uma certa tendência a fixarmo-nos às modas da nossa juventude, talvez porque a partir de uma certa idade tenhamos dificuldade em acompanhar os tempos ou simplesmente porque já sabemos o que nos fica bem e a moda deixa de nos preocupar. A minha Tia Lalai conhecia o suficiente de moda, para não ser vítima dela. Depois da morte do seu pai, que deixou a família em dificuldades financeiras, para sobreviver tornou-se modista e ao longo de cinquenta anos, numa das salas do piso térreo da casa de Vinhais, ela e as suas empregadas cortaram e fizeram milhares de saias, casacos e vestidos e trajes de noiva. Ainda apanhei esse tempo e em miúdo gostava de entrar naquela sala e ver aquele reboliço de linhas, tecidos, alfinetes, máquinas de costura e dúzias de revistas de moda portuguesas, francesas e italianas. As empregadas da minha tia eram também muito simpáticas connosco, os miúdos e ajudavam-nos a fazer roupa para os bonecos. Quando vejo aquele quadro do Marques de Oliveira, costureiras trabalhando, que está no Soares dos Reis, lembro-me sempre da sala de costura da casa de Vinhais. Até a vista é parecida, pois da janela também se via uma árvore centenária, um castanheiro.
Marques de Oliveira. Costureiras trabalhando. Museu Nacional de Soares do Reis, inv. 79 Pin CMP/ MNSR. Foto http://www.matrizpix.dgpc.pt/
A minha tia morreu há mais de vinte anos e aquela sala está às escuras, há muito tempo, e já ninguém ali usa as máquinas de costura, corta tecidos ou alinhava. Mas esta fotografia, tirada em 1930 no Porto, traz-me sempre a memória essa época, em que a minha tia Maria Adelaide cortava os tecidos e pareçe que ainda ouço as vozes da Bárbara, da Iracema, da Virgínia e da Francisca, as senhoras que trabalhavam com ela e de quem nós gostávamos tanto. A fotografia tem sempre essa misteriosa capacidade de abolir o tempo.
Maria Adelaide (1913-1997)
 

13 comentários:

  1. Olá

    Agora venho ao seu blog a já posso comentar....adoro recordações e gosto de ler o que escreve. Gosto de fotografias. Confesso que hoje aproveitei a su ideia de post..... mas sem pretensões nem pouco
    mais ou menos .... até porque não tenho saber nem paciência para isso.
    Boa noite!!!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Recordações no tempo

      As velhas fotografias são sempre um óptimo tema. Ao mesmo tempo que aproximam as pessoas que já morreram de nós, parece sempre que encerram uma história, que hoje tentamos descodificar.

      Um abraço

      Eliminar
  2. Mais uma memória familiar. São sempre muito bonitos os teus textos sobre memórias familiares.
    Acabas por trazer as pessoas para o convívio, ao fazê-las mais próximas através da sua descrição.
    Senão seria mais um bocado de papel dentro de uma gaveta que, dentro de alguns anos, ninguém saberá quem representaria, como me acontece com algumas fotografias que tenho, cujo destino futuro é altamente incerto
    Manel

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Creio que quando escrevo sobre fotografias tento passar para o papel aquilo que ainda me lembro das personagens retratadas, mas também as emoções que estas fotografias me despertam. Mesmo, quando nas bancas feiras de velharias aquelas imagens de pessoas desconhecidas, apetece compra-las e tentar adivinhar-lhes o passado.

      Um abraço

      Eliminar
  3. Gosto imenso de me perder nos velhos álbuns de fotografias.
    Esta história, tão bem contada, fez-me lembrar de histórias que ouvia da minha mãe sobre vestidos e sapatos (ou da falta deles, por vezes) do seu tempo. Uma que acho deliciosa, embora pouco aceitável à luz dos nossos dias, é a de um vestido feito na modista para uma das minhas tias que, por ser de meia manga, não passou no crivo censório da minha avó e foi necessário remendá-lo para que cobrisse todo o braço. :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Luisa

      Obrigado pelo seu comentário. A história que me contou era relativamente comum no Portugal de antigamente, cheio dos pudores salazaristas. Recordo-me ouvir contar que uma vez o meu avó paterno rasgou um vestido novo à minha avó, que era uma janota, por achar que era demasiado escandaloso. Provavelmente, o vestido seria um apenas pouco mais justo ou talvez também fosse de meia-manga como o da sua tia.

      Bjos

      Eliminar
  4. Adorei sua tia Lalai, Luís! Aliás, eu amo uma costureira, uma máquina de costura, um aviamento, as palavras próprias da profissão. Em minha casa - casa de minha avó - a Vigorelli estava sempre aberta para "passar uma costura" qualquer. Hoje as casas não tem mais máquinas, as mocinhas e os mocinho perderam a vontade de seguir as carreiras de costureiras e alfaiates. Uma pena.
    Sua tia era uma excelente costureira, deveria ter grande freguesia já que possuía um atelier em casa e com empregados. Morri de curiosidade para ver o tal atelier...imagino o sortimento de aviamentos, agulhas, linhas variadas, dedais, tesouras, alfinetes, cortes de tecidos.
    A costura é um trabalho que pede muita atenção, muito cálculo matemático para os cortes perfeitos - acho que é por isso que as meninotas atuais fogem desse trabalho.
    Minha avó bordava, não costurava. E eu ficava olhando ela bordar por tardes inteiras...acho que ainda vou cair nas agulhas kkkk
    O vestido da sua tia Lalai tem mesmo um caimento assimétrico interessante e devia ser difícil de conseguir fazer este corte. O modelo é o chamado por aqui de abajour, começa estreito e vai alargando, um evasé. Deve ser bom e corretivo para aquelas de quadril estreito. A bainha estava ótima, 4 dedos, não economizou tecido e fez um vestido muito bonito. Era uma costureira como se diz de "mão cheia".
    Quer dizer que o quarto da costura ainda está lá??? Dá uma vontade de entrar e "passar uma costura"!
    Abraços.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Jorge

      Desculpe só agora lhe responder, mas andei com uma gripe horrível. Sabe que por aqui na Europa o inverno pode ser rigoroso.

      É verdade Jorge, o quarto ou sala da costura ainda existe, com as suas três máquinas de costura, uma grande mesa que servia para cortar tecidos segundo os moldes e ainda uma braseira, pois o inverno transmontano é muitíssimo frio.

      O movimento e as costureiras desapareceram há muito, foi por isso que fui buscar o quadro do Marques de Oliveira, para dar o ambiente de uma sala de costura.

      Este corte "evasé" favorecia o corpo da minha tia, que era relativamente baixa e sem grandes ancas. Creio eu que implicaria já uma certa ciência no corte para cair bem. Uma mulher previdente deixava ser uns bons quatro dedos de bainha, até porque ao longo dos anos 30 as saias não pararam de descer. Só quando começou a guerra, com o racionamento dos tecidos, é que as saias voltaram a subir,

      Um abraço

      Eliminar
    2. Amei sua tia. Adoro uma costureira. O quarto de costuras abandonado dava um filme, um documentário...o silêncio das máquinas de costura..
      Abraços.

      Eliminar
  5. Se me facultasse o seu email, eu gostaria de lhe enviar umas fotos de 3 pratos de faiança portuguesa que comprei há muitos anos e penso que serão fervença. mmafonso@gmail.com

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Caro Manuel Afonso

      O meu endereço de e-mail está no indicado no perfil, mas pode escrever-me para montalvao.luis@gmail.com e terei muito gosto em ajuda-lo se souber as respostas. Um abraço

      Eliminar
  6. Era tão bonito copiar um modelo de revista. Lembro tão bem da minha nonna materna, a família toda trabalhava com alfaiataria e ela nunca parou de costurar. Assim foi para a família toda, confeccionando e reformando.
    As revistas de moda eram um evento, assim como tirar uma fotografia. Todo bem planejado e arrumado, uma foto era para uma vida inteira.
    São cenas que passam em nossas cabeças e remetem a tempos outros, tão distintos dos atuais. Por vezes, volto ao bairro onde nasci e vou até a rua aonde a casa da família era localizada e ainda percebo as marcas na calçada, pois no local da casa, há um prédio de apartamentos e faz tempo. Ainda algumas casas estão preservadas, funcionando algum comércio.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Maria Glória

      Há quem vá aos cemitérios prestar culto aos seus mortos. Pela minha parte, prefiro evocar os que já partiram através dos textos e fotografias, que publico aqui no blog e recordar momentos da minha infância ou colocar-me na pele dessas pessoas. Com efeito, a minha Tia parece estar nesta fotografia particularmente orgulhosa do seu vestido novo, das meias de seda e viscose, que usou neste dia, na grande cidade portuguesa do Norte, o Porto e consigo imaginar perfeitamente tudo o que antecedeu a viagem do Porto até Vinhais. A fotografia captou para a vida inteira um momento feliz de uma jovem provinciana de visita a uma grande cidade, com um vestido novo.

      Bjos

      Eliminar