Já aqui escrevi sobre Jules Davis, (1808-1892), um dos mais prolixos ilustradores franceses do século XIX, que dedicou a sua arte a realizar desenhos de moda para revistas femininas. Terá sido autor de mais de 2.600 desenhos, publicados sobretudo no Le Moniteur de la Mode, mas que foram depois reimpressos noutras publicações femininas ou em suplementos dedicados à mulher na imprensa periódica europeia ou americana. É o caso desta estampa que o meu amigo Manel comprou recentemente e que originalmente fazia parte do nº 604, de Julho de 1860, da edição belga de Le Journal des Dames et des Demoiselles, conforme pude apurar no site do Rijksmuseum.
Como já escrevi em anteriores posts, Jules David foi o primeiro ilustrador de moda a dar um cenário às suas figuras, que se visitam em salas decoradas com grandes espelhos, ora são convidadas para grandes bailes em salões imponentes ou passeiam-se no jardim das suas mansões ou ainda mostram às suas toilettes num parque público. Por vezes, o ilustrador vai ainda mais além do cenário e os seus conjuntos de damas e cavalheiros elegantes parecem contar uma história.
Nesta estampa, cuja acção decorre talvez no Bois de Boulogne ou no passeio público de uma qualquer cidade europeia, uma dama elegante passeia-se a cavalo e dirige-se a outras duas senhoras para as cumprimentar, certamente gente do seu meio. Porém do lado esquerdo, há uma figura misteriosa, vestida de escuro, com um chapéu ornado com um véu de tule ou mousseline, que lhe esconde praticamente o rosto. Dir-se-ia que está ali e não quer ser reconhecida e caminha apressadamente, mas não deixa de olhar para a direita, talvez para o cavalheiro janota, discretamente colocado atrás da escadaria.
Possivelmente a mulher com o elegante chapéu, que lhe tapa rosto, espera que as três senhoras da boa sociedade parem de trocar larachas umas com as outras e desapareçam dali, para que ela possa encontrar-se com o amante, o tal cavaleiro janota. Estará nervosa e ansiosa, pois sente alguma culpa, lembrando-se da filha pequena, que deixou em casa com a ama, ou ainda do marido, um bom homem, mas que sexualmente a deixa indiferente. Pensará também como irá pagar ao agiota, que lhe emprestou dinheiro para o vestido e sobretudo para aquele chapéu, cujo preço foi absolutamente extravagante. Mas o desejo de paixão e de evasão de um quotidiano enfadonho são maiores que o remorso e a razão e esta espécie de Ema de Bovary, de chapéu com véu preto de tule, acabará por internar-se no bosque com o homem janota e entregar-se-á a ele, ainda que tenha consciência, que tudo aquilo vai terminar mal.
Claro que ver nesta elegante de rosto velado a personagem de Flaubert, Madame de Bovary é um mero produto da minha imaginação. Mas como este impressionante romance sobre a traição foi publicado em 1857 e esta estampa data de 1860, não será um anacronismo muito grande pensar, que Ema Bovary se encantaria com este chapéu, tão adequado a encontros fortuitos.
Uma preciosidade essa estampa. Bonita, mesmo. E gostei dessa história imaginada para a dama misteriosa de véu no rosto. :)
ResponderEliminarLuisa
EliminarObrigado pelo comentário. A estampa é uma graça e de facto parece, que aqueles personagens todos elegantes estão ali a viver uma história qualquer, sobretudo a misteriosa dama de véu no rosto. Não sei porque associei-a de imediato à Madame Bovary, um romance angustiante sobre as pessoas, que vivem a experiência de uma traição.
Quando Flaubert publicou o romance não quis que este fosse ilustrado, para que cada um imaginasse Ema Bovary à sua maneira. Este post é a forma como um leitor em 2018 imaginou a Ema Bovary.
Bjos
Gracias a esa imaginación surge una bella historia que une literatura y pintura. ¡Bravo!
ResponderEliminarMiguel Angel
EliminarObrigado pelo teu comentário. As pinturas, as esculturas, as gravuras e os objectos despertam-nos um conjunto de emoções. Por vezes, parece-nos até que contam uma história. O que aqui fiz foi uma pequena brincadeira associando a estampa ao romance Madame de Bovary. Como isto é um blog pessoal posso dar-me à liberdade de fazer estas pequenas brincadeiras.
Um abraço
Realmente a imaginação vai longe com esta imagem. É bonita e está bem emoldurada e já ocupa o lugar que ocupam as minhas outras estampas de moda: a casa de banho. Assim, uma pessoa, enquanto leva a cabo a sua higiene, vai passeando o olhar pelo passado, dando conta do presente e imaginando o futuro.
ResponderEliminarFartei-me de rir com a história que inventaste.
Flaubert escreveu este romance, o qual me deu muita angústia quando o li. Tenho evitado relê-lo ... ele lá está, sempre a olhar para mim, e um destes dias terá de ser, pois lembro-me que, quando o li a primeira vez, ocupou-me muitas tardes nostálgicas de estio e de ócio.
Creio que o romance é uma obra fantástica, porque ainda hoje, mais de um século e meio depois, continua a provocar as mais estranhas reações nas pessoas.
Parabéns pela história
Manel
Manel
EliminarCustou-me imenso ler Madame Bovary, tal era a angustia que me provocava. Além de estar muito bem escrito é um livro perfeitamente actual e quem já viveu uma traição identifica-se com ele. Aliás, há uma ambiguidade notável na forma como Flaubert compôs a personagem principal, pois tanto somos levados a simpatizar com Ema Bovary, que é uma mulher obrigada a viver um casamento enfadonho e sem forma de lhe colocar um fim, como tanto a condenamos pelo seu egoísmo. Flaubert terá dito "Mme Bovary, c’est moi !" e eu acrescentarei Madame Bovary somos todos nós.
Em todo o caso este texto é uma brincadeira, um pequeno jogo de espírito.
Um abraço