terça-feira, 14 de agosto de 2018

Terrina de faiança portuguesa: motivo País

 
Sempre tive uma grande paixão pelo motivo País, que a Fábrica de Miragaia introduziu e celebrizou em Portugal, mas está série decorativa aparece raramente nos mercados de velharias e quando surge é vendida a preços muito altos. Depois de muitos anos a procurar este padrão decorativo em todas as bancas e estendais nas feiras de velharias, só consegui comprar um único covilhete. Por essa razão, no passado Sábado, quando vi esta terrina com o motivo País a um preço razoável, não hesitei e comprei-a de imediato, apesar do seu sofrível estado de conservação.

A série País corresponde ao segundo período de laboração da fábrica de Miragaia (1822-1850) e tomou esta designação junto das pessoas porque no início do século XIX, País ainda era sinónimo de paisagem. Por exemplo, no século XVII, um pintor de paisagens era denominado por pintor de países
 
A série País inspirou-se no padrão denominado View in Fort Madura da fábrica Inglesa Herculaneum, como se pode ver nesta imagem,  com duas terrinas lado a lado, a primeira da Herculaneum e a segunda portuguesa, da chamada série País
A série País foi inspirada num padrão denominado View in Fort Madura da fábrica inglesa Herculaneum, do qual Miragaia fez uma adaptação simplificada, segundo um gosto popular, mas ao qual não falta o seu charme.
A minha terrina não está marcada
O problema é que a minha terrina não está marcada e sabe-se que pelo menos três fábricas nortenhas copiaram este motivo, Santo António de Vale da Piedade, Alto da Fontinha e ainda Viana. As imitações de Viana são relativamente fáceis de distinguir das outras, pois os azuis são mais clarinhos e o motivo decorativo é adaptado de forma mais livre. Contudo as peças de Santo António de Vale da Piedade e Alto da Fontinha são difíceis de distinguir das de Miragaia para os olhos de um leigo.
É difícil distinguir Miragaia do Alto Fontinha. Imagem retirada de "A colecão de faiança do Museu de Artes Decorativas de Viana do Castelo. Viana do Castelo: Câmara Municipal, 2015"
Existiam relações muito próximas entre Miragaia e as duas últimas fábricas. Entre 1824 e 1833 a Fábrica de Santo António de Vale da Piedade esteve alugada à família de Rocha Soares, patrões de Miragaia e depois do encerramento desta última em 1850, muitos dos seus operários e mestres transitaram para Santo António de Vale da Piedade. Quanto à fábrica do Alto da Fontinha (1837-1860) vendeu na década de quarenta as suas produções num depósito na Rua da Esperança, pertença da família de Rocha Soares. Depois do fecho da Fábrica de Miragaia, a Fontinha contratou um oficial, antigo empregado daquela fábrica. Estas relações de proximidade explicam porque é que é que as três fábricas fabricaram este padrão praticamente em simultâneo, ou ainda porque é que a Fontinha e Santo António do Vale da Piedade terão continuado a produzir a série País, depois do fecho de Miragaia.
As pegas são muito características
Relativamente à minha terrina, a pintura parece-me um bocadinho trapalhona, relativamente às peças que vemos de Miragaia nos museus ou nos catálogos de exposições. Por outro lado, no catálogo da exposição Fábrica de Louça de Miragaia, de 2008, não é reproduzida nenhuma terrina com este modelo de pega.

No blog, Arte Livros e Velharias, a nossa amiga Maria Andrade, publicou duas terrinas iguais a esta, a primeira sem marca tal como a minha e a segunda marcada Santo António de Vale da Piedade. A Maria Andrade referiu ainda que no catálogo Mostra portuguesa de faiança: Museu de Arte Sacra de Arouca. Arouca: Real Irmandade Rainha Santa Mafalda, 1998 consta uma terceira terrina igual a esta, mas marcada Miragaia.
Terrina marcada Miragaia. Imagem retirada de Mostra portuguesa de faiança: Museu de Arte Sacra de Arouca. Arouca: Real Irmandade Rainha Santa Mafalda, 1998
Em suma, aparecem terrinas iguais a esta com marcas de Miragaia, Santo António de Vale da Piedade e outras pura e simplesmente sem marca nenhuma. Sendo assim, a minha terrina tanto poderá ter sido fabricada por Miragaia entre 1822-1850, como também, no mesmo período ou até numa data mais tardia por Santo António do Vale da Piedade ou ainda, quem sabe, se pela fábrica do Alto da Fontinha.
 
 
Alguma bibliografia e links consultados:

- A colecão de faiança do Museu de Artes Decorativas de Viana do Castelo. Viana do Castelo: Câmara Municipal, 2015
- Fábrica de Louça de Miragaia. - Porto : Museu Nacional do Azulejo, 2008
- Mostra portuguesa de faiança: Museu de Arte Sacra de Arouca. Arouca: Real Irmandade Rainha Santa Mafalda, 1998
http://artelivrosevelharias.blogspot.com/2011/08/duas-terrinas-com-pronuncia-do-norte.html
http://artelivrosevelharias.blogspot.com/2013/08/de-novo-fabrica-de-santo-antonio.html
 
 

10 comentários:

  1. Gosto muito deste motivo, ainda mais que do Cantão Popular, apesar de ser fácil confundir os dois, e há quem o faça.
    Esta tua terrina parece-me ter uma produção muito cuidada.
    Apesar de não querer confundir-me com gente algo estranha, quais "ceramólogos", que referem tardozes arrepiados ou pastas cor de laranja ou cor de grão - onde terão ido buscar tais tontarias (?) - gosto de verificar que o vidrado desta tua terrina é muito bonito e homogéneo, sem qualquer craquelé, e é uma peça muito leve. Quando percutida tem um som lindíssimo - com certeza não quer dizer nada, mas o timbre é muito apelativo.

    Saber de onde ela é ... bem, esse é outro assunto, mas que é uma peça de qualidade e com um dos motivos mais míticos, lá isso é.
    Terá toda a probabilidade de ser produção do Norte, mais propriamente de Gaia, mas certezas não há - outros, cheios de picardia, que nunca erram e raramente se enganam, como a múmia paralítica de má memória, que nos governou durante dois infelizes mandatos e nos representou mais dois, para grande desgraça de uma quantidade significativa de portugueses, diriam imediatamente que seria de Estremoz, talvez de Lisboa, ou de Aveiro, quiçá de Coimbra e não sei se de Viana (escapou as Caldas, mas que não seja por isso) ... para algumas pessoas será tudo possível! Isto é, se dispararem em muitas direções é possível que acertem, mas será por puro acaso.

    A par do teu, o blog da Maria Andrade, não obstante ter descontinuado a sua manutenção, continua a ser uma referência carismática no mundo do rigor e da qualidade de informação e pesquisa neste campo, pois continuamos a procurar informação no que escreveu e nos apresentou ao longo de cinco saudosos anos.
    Um bem-haja.

    Um belíssimo post este, com a apresentação de uma peça ainda mais bonita
    Manel

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    1. Manel

      Desculpa só agora te responder, mas como sabes estou de férias e com menos tempo para a net.

      Creio que ao fim de uns anos a colecionar faianças chegámos a um estado de muita cautela na atribuição desta terrina ou daquele prato a esta ou aquela fábrica. Neste caso, existe um bom estudo sobre este motivo no catálogo de Miragaia e os dois posts da nossa amiga Maria Andrade foram de uma grande utilidade, para fazer as minhas conclusões sobre esta terrina, que afinal de contas são mais hipóteses, que conclusões.

      Este terrina foi um golpe de sorte, porque o vendedor não sabia bem o que era isto. Na verdade, o Senhor estava convencido que uma terrina de cantão popular, que também estava na banca, é que era Miragaia..

      Um abraço

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  2. Gostei muito da terrina e não conhecia a história deste motivo. Bom dia!

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    1. Margarida

      Obrigado pelo seu comentário. Este motivo País, tão cobiçado pelos colecionadores amadores de faiança, teve origem na faiança inglesa, que por sua vez inspirou-se numa colecção de estampas sobre a Índia.

      Um bjo e boa semana

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  3. Que terrina linda, Luís!!!! O nosso mítico motivo País num formato tão típico de Miragaia! Este é um texto muito esclarecedor sobre as ligações de Miragaia a outras unidades de fabrico, mas para mim sobretudo interessante a explicação que dá sobre a origem do nome do motivo. Faz todo o sentido e não me lembro de ter alguma vez lido algo sobre isso.
    Parabéns pela compra, que ainda me enche de inveja, e por mais este post tão bem conseguido e enriquecedor.
    Beijos

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    1. Maria Andrade.

      Fico sempre contente de a ver por aqui.

      Com efeito paisagem ou país foram no passado palavras com um significado próximo.

      Quando comprei esta terrina por um preço muito razoável, já sabia que podia ser Miragaia ou qualquer coisa próxima, mas foram os seus dois posts sobre este assunto, que me puseram no bom caminho. No fundo traçou-me um caminho para eu contextualizar correctamente esta peça.

      Peço desculpa pelo atraso da minha resposta, mas tenho estado de férias em Trás-os-Montes e não me tem sobrado muito tempo para a net.

      Bjos e continuação de boas férias

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  4. E não posso deixar de agradecer ao Manel as sempre generosas e amigas palavras que me dedica. Foi realmente um período de grande dedicação e empenhamento, mas que não teria sido tão profícuo se não tivesse contado com o incentivo constante e as injeções de saber que vieram destes meus dois grandes amigos.
    Um abraço, Manel!

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  5. São lindas essas peças antigas portuguesas, infelizmente nunca vi nenhuma por aqui. Elas são grosseiras, pesadonas a massa é espessa, as decorações são simples, porém elaboradas como a querer ser - talvez, não sei - uma imitação de uma louça mais refinada inglesa, uma imitação. É uma louça rústica querendo ser ou aparentar algo sofisticado. E o charme acho que seja esse. Elas são simplórias, mas têm um charme e uma imponência impressionantes, grosseiras, mas, ao mesmo tempo de uma elaboração incrível, a pintura é linda.
    Não sei se me fiz entender, mas elas situam-se entre o popular e o erudito, o grosseiro e o refinado e se tornam por isso, de uma beleza muito particular, a marca dela, acho, é essa transição. É muito bonita essa faiança portuguesa e ela ficaria muito mais bonita aqui em minha casa...kkk
    Vou fuçar aqui nos antiquários de Salvador alguma coisa do velho Portugal. Por aqui só vejo mesmo as inglesas e as francesas super refinadas e caríssimas. Essa sua é uma beleza.
    Não sei se me fiz entender e não desmereci o caráter popular da louça de vocês de época. Elas são elaboradas, trabalhadas, têm requinte.
    À propósito vou enviar para o seu email, algumas outras fotos do meu bule borrão que penso ser de Macau. No site que vc me enviou da Copeland não vi nada parecido.
    Um abraço e parabéns pela tradicional faiança do seu país.

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    1. Jorge

      Entendi perfeitamente o significado das suas palavras. Realmente, esta minha terrina é uma adaptação trapalhona e ingénua da loiça inglesa, mas ao mesmo tempo muito criativa. Os ceramistas da fábrica desta terrina, no fundo, criaram qualquer coisa de novo e com graça a partir do modelo inglês todo certinho.

      O fundador da fábrica de Miragaia, Rocha Soares foi um homem que fez fortuna no Brasil antes de se dedicar à cerâmica e Miragaia sempre teve bons negócios com o Brasil, bem com a outra fábrica aqui mencionada, Santo António da Vale da Piedade. Sei que no Brasil há muitas casas do século XIX com urnas e estatuetas nas platibandas, provenientes destas duas fábricas do Porto, portanto é natural que pratos, travessas ou terrinas do motivo País também apareçam por aí.

      Aquele abraço!!!

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  6. Luzograal.

    Realmente não sei o que é que o racismo tem a ver com esta peça. Mas, Santo Deus, cada qual é livre de escrever o que quiser.

    Um abraço

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