Já apresentei aqui no blog, em 2011 e 2012 , estas duas imagens em barro de Santo António, que comprei há já uns anos. Foram os dois baratinhos pois estavam em muito mau estado. Com uma pintura policromada muito cuidada, o primeiro foi simplesmente partido ao meio e o segundo, que perdeu toda a policromia, parece ter estado enterrado e depois esfregado com palha-de-aço. Nenhum deles apresenta o Menino Jesus sobre o livro. Na época, achei que estas duas imagens tinham sido vítimas dos maus tratos do tempo e não pensei mais no assunto.
Porém pouco tempo depois, tive ocasião de visitar as ruínas arqueológicas do prédio do BCP, aqui em Lisboa, na Rua Correeiros e a guia chamou-nos a atenção para uma imagem de Santo António muito mal tratada, que apareceu no fundo de um poço ou de uma canalização, já não me recordo exactamente. Segundo a mesma guia, os arqueólogos que trabalham no subsolo dos bairros históricos de lisboeta encontram muitas vezes estas imagens partidas do santo António, pois no passado era costume castigar o referido santo se ele não cumprisse os pedidos dos devotos, atirando-o por exemplo para o fundo de um poço ou para um cano de esgoto.
Num texto publicado no catálogo O santo do menino Jesus: Santo António devoção e festa. - Lisboa : Instituto Português de Museus, 1995, Irisalva Moita faz também referência a este estranho costume de castigar o santo. Segundo a autora, as pessoas acreditavam que Santo António poderia recuperar objectos perdidos, aliás, a primeira repartição de perdidos e achados situava-se precisamente na Igreja de Santo António em Lisboa. Se o atendimento aos pedidos dos crentes, não fosse rápido, o devoto insatisfeito colocava o santo de costas para a parede, amarrava-o à perna de uma mesa, ou mergulhava-o na água, de cabeça para baixo, de forma a apressar o milagre. Katherine Vaz no seu romance histórico Mariana menciona que Mariana de Alcoforado e a sua irmã, ainda adolescentes enterraram uma imagem de Santo António de modo a força-lo a arranjar-lhes noivos. Como a pobre Mariana foi encerrada num convento pelo pai, o Santo António permaneceu enterrado no fundo do quintal.
Nenhuma das minhas imagens apresenta o atributo tradicional de Santo António, o Menino Jesus sentado no livro. Segundo ainda Irisalva Moita era costume roubar a imagem do Menino, pois acreditava-se trazer sorte ao autor da proeza.
Estes estranhos hábitos de maltratar a imagem do Santo revelam a familiaridade e a proximidade com que desde muito cedo os portugueses experimentaram com Santo António, a mais popular das devoções nas terras lusitanas.
Em suma, talvez o mau estado destas minhas duas imagens de barro não tenham sido consequência da acção do tempo, mas sim do espírito vingativo de algum crente insatisfeito, a quem o Santo não atendeu os pedidos. Um deles, foi partido, o outro talvez enterrado ou mergulhado muito tempo em água e os dois perderam o Menino Jesus. Como se diria hoje em dia, naquela infeliz linguagem da gestão, que invadiu o jornalismo, o futebol, os textos oficiais do Diário da República e a conversa dos políticos, estes dois santos antónios não cumpriram os objectivos, que lhes foram traçados pelos crentes.
A história é engraçada, menos para os pobres Santo António(s). Bom dia!
ResponderEliminarMargarida
EliminarEsta história ilustra bem o pensamento primitivo de que uma imagem em barro, pedra ou madeira é a incarnação da divindade, que tanto é venerada, como maltratada no caso de não cumprir a sua parte do acordo. Bjos e um resto de um bom dia
Tu lá vais continuando a formar o teu conjunto de santos. São até mais curiosos do que se estivessem completos.
ResponderEliminarGosto deste aspecto incompleto, como se estivessem à espera que alguém os venha tornar inteiros outra vez. Neste caso será útil estar munidos com muiiiiiita paciência!
Já conhecíamos este tipo de comportamento de retaliação para com as imagens sagradas, o qual pode ser aplicado a qualquer outro santo, pois já tínhamos sido informados que já se tinham encontrado muitas imagens enterradas e/ou mutiladas até nos próprios espaços das igrejas, vítimas deste tipo de reação dos crentes.
Eu gosto tanto destas figuras que não seria capaz de o fazer, talvez por não ser crente!
Manel
Manel
EliminarMuita da graça destas duas imagens, advém do facto de estarem incompletas, danificadas e ainda para mais sabendo nós, que poderão ter sido quebradas ou maltratadas intencionalmente por um crente insatisfeito com as prestações do Santo António.
Após o Concílio de Trento, a Igreja Católica preocupou-se muito em apagar tudo aquilo que parecesse fora do cânone e neste sentido os bispos e arcebispos deram ordens no sentido em que as imagens muito velhas, feias ou pouco ortodoxas fossem queimadas, no caso de serem de madeira, ou enterradas / emparedadas se fossem de pedra. Assim, apareceram ao longo do século XVIII e XIX, muitas imagens medievais das virgens do leite ou as Santíssimas Trindade durante obras em igrejas. Este foi o certamente o caso da Virgem em Majestade, que está na Igreja de São Facundo em Vinhais.
Um abraço
Olá, Luís, o Santo Antonio tanto aí como aqui sofre horrores se "não atinge os objetivos", as "metas", não "otimiza" um milagre. Coitado! Colocam as imagens imersas em baldes e amarradas pelo pescoço, viradas de costas para a parece e por fim, quebradas e jogadas ao léu. Quanto castigo Para um santo que só faz bem e é o mais popular aqui no Brasil.
ResponderEliminarTodas as terças passo por uma igreja que tem uma devoção ao santo e ela está lotada! Acho que o Santo Antonio é mais brasileiro que português, assim como Carmen Miranda. Os dois acharam na colônia fies seguidores. São devoções brasileiras.
Imagino quantas imagens magníficas não foi destruída em nome de milagres não acontecidos, das superstições. Essas duas imagens aqui deveriam ser lindas em suas pinturas originais.
Há alguns anos achei uma imagem de Santo Antonio quebrada ao meio e dentro da bacia de água benta. Peguei e mandei restaurar, mas era de gesso, nada muito valioso apesar de ser imagem de gesso do início do XX.
As imagens de santo Antonio, a maioria, está sem o Deus Menino, é um costume "roubar". Alguns que eu tenho mando fazer um Deus Menino para colocar no lugar do que foi roubado.
O que é que santo Antonio tem?
O que é que santos Antonio tem?
Abraços.
Jorge
EliminarObrigado pelo seu comentário, que deu conta da enorme devoção a Santo António no Brasil. Já imaginava que fosse uma devoção popular nas terras de Vera Cruz, mas não sabia até que ponto.
Foi também muito engraçada à comparação com a Maria do Carmo Miranda, nascida em Marco de Canavezes, mas que se tornou um símbolo mundial, imediatamente reconhecível, de uma certa alegria de viver in "South American Way".
A religião Católica tornou-se nas últimas décadas essencialmente mariana, mas o culto a Santo António é ainda tão forte, que tem resistido a tudo.
Este Santos Antoninhos são um símbolo engraçado deste culto tão peculiar a Santo António.
Um abraço
Luís
ResponderEliminarGostei muito do texto que construiu à volta das imagens de Sto.António. As virtudes casamenteiras que lhe atribuem resultam da sua fama de santo dos milagres. Nunca consegui aprender de cor o Responso a Sto. António, que se recita, quando necessitamos de encontrar algo que anda desaparecido. São capacidades que se lhe atribuem e estão bem arreigadas na imaginação popular. Quanto às imagens que eram encontradas, escondidas ou arrumadas em esconderijos, mostram bem a delicadeza das pessoas que o faziam, não querendo destruir algo que consideravam precioso. O meu Pai contava que tinham encontrado, aquando da realização de umas obras de recuperação de uma igreja em Elvas (não me recordo do nome) duas imagens de santas de calvário e uma cabeça de Cristo. Tenho-as comigo, hoje, em lugar de destaque.
Ivete
EliminarMuito obrigado pelo seu comentário.
No fundo este texto tratava da indistinção entre o símbolo e a realidade, característica de quase toda a religiosidade. As imagens personificam os santos e por consequência são adoradas ou maltratadas consoante o desempenho dos mesmos.
Após o Concílio de Trento houve a preocupação de queimar ou enterrar as imagens fora do cânone, pois os altos dignatários da Igreja conheciam o poder das imagens e queria extirpar da religião os aspectos menos ortodoxos. Talvez uma ou outra dessas esculturas tenham sido postas a salvo por amantes da arte ou crentes fervorosos.
Em todo o caso, todas estas estas histórias de imagens enterradas ou emparedadas são muito românticas e descobri-las atrás do reboco de uma parede numa igreja deve equivaler mais ou menos à emoção que os arqueólogos experimentaram quando descobriram o túmulo de Tutankamon.
Recordo-me bem desse seu Cristo em terracota.
Um abraço