quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Uma vista de Montréal em 1830: travessa da Davenport


A faiança inglesa da primeira metade do século XIX, com suas paisagens e panorâmicas, é qualquer coisa de fascinante. Se muitas das vistas são meramente imaginadas, outras são bem reais, como é o caso desta travessa da Davenport, que retrata a cidade canadiana de Montreal, vista da ilha de Santa Helena.
No canto inferior esquerdo vê-se a âncora, típica marca da Davenport
Esta travessa terá sido produzida mais ou menos entre 1830 e 1840 pela fábrica inglesa de Davenport e inspirou-se numa estampa gravada por R. A. Sproule e W. L. Leney, datada de 1830 e executada a partir de um desenho de Robert Auchmuty Sproule (1799-1845). Este motivo serviu de base para a produção de um serviço inteiro, com pratos, travessas e molheiras, terrinas e tudo o mais.
 
Vue de Montréal à partir de l'île Sainte-Hélène. Estampa gravada por R. A. Sproule e W. L. Leney, datada de 1830 e executada a partir de um desenho de Robert Auchmuty Sproule
A panorâmica de Montréal da Davenport é tão boa, que ultrapassa em qualidade a gravura que lhe serviu de modelo. Nesta última, os barcos que navegam no rio estão dispostos de forma muito certinha, enquanto que, na travessa, o porto de Montreal fervilha de actividade e o tráfico do rio é intenso.
 
Davenport
O porto fervilha de actividade e ao fundo vislumbra-se a recém inaugurada catedral de Notre-Dame
Com efeito, a imagem desta travessa surpreendeu um momento da história de Montreal particularmente activo e próspero. Durante a primeira metade do século XIX, Montreal passa de uns modestos 9 mil habitantes para cerca de quarenta mil habitantes, tornando-se a maior cidade do Canadá. Uns cincos anos antes de a gravura ter sido impressa, em 1825, tinha sido aberto o canal de Lachine, que permitiu contornar os rápidos do Rio de São Lourenço, junto aquela cidade canadiana. Também nesse mesmo ano, mais a sul, os americanos construíram o canal Érié, que ligou o lago com o mesmo nome ao Hudson e ao porto de Nova Iorque. Montreal passou a contar com duas ligações fluviais ao atlântico e o tráfico do porto tornou-se intenso. Barcos a vapor, como aquele que é aqui mostrado, da British America asseguravam a ligação entre Québec e Montréal. A prosperidade era tão grande que em 1830 a cidade resolve erguer uma nova catedral, a igreja de Notre-Dame, construída em estilo neogótico e que vemos aqui representada, apesar de nessa época, as torres ainda não estarem terminadas. A cidade ganhou tanta importância, que entre 1842 e 1849 foi capital política e administrativa do Canadá.
Vapor da British America, que assegurava a ligação entre Québec e Montreal
Foi também entre 1800-1850, que Montréal deixou de ser uma cidade exclusivamente francófona e católica, em resultado do enorme fluxo de emigrantes, provenientes da Inglaterra, da Escócia e da Irlanda. Começaram então os conflitos entre as duas comunidades, a francesa e a inglesa, com os irlandeses católicos a aliarem-se aos franceses, também eles apostólicos e romanos. Todos estes problemas entre francófonos e anglófonos e entre católicos e protestantes culminaram na destruição do parlamento em 1849 e na consequente passagem de Montréal para Toronto da capital administrava e política do Canadá.
 
Vista de Montréal a partir do monte de Santa Helena, tirada nos nossos dias. Foto www.alamy.com
Hoje, passados quase duzentos anos, da produção desta travessa, a vista de Montréal a partir do monte de Santa Helena continua a ser um dos temas preferidos dos postais ilustrados e de todas as fotografias panorâmicas da cidade. Só que entretanto Montréal encheu-se de arranha-céus e mal se vê a catedral de Notre-Dame.
 
Alguns links consultados:
 
 
 
 
 
 

15 comentários:

  1. Que bela travessa! Porém, melhor ainda, é sua postagem com a história de Montreal. Aprendi muito.
    Interessante que tenham feito um serviço mostrando uma cidade específica do Novo Mundo. Terá sido por encomenda, ou houve alguma "moda" nesse sentido?
    abraços!

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    1. Fábio

      A história de Montreal é um símbolo do Canadá, onde se cruzaram com tanto êxito as culturas francesa e inglesa, apesar dos choques e dos conflitos linguísticos, étnicos e religiosos. O Canadá é hoje um estado, que está sempre nos primeiros lugares da lista dos países com um melhor nível do mundo. Estudar esta travessa, que o Manel comprou, foi uma boa oportunidade para conhecer um pouco melhor a história desta cidade da Nouvelle-France.

      Quanto à tua pergunta, não encontrei nenhuma resposta satisfatória. No site da Ham House, de Ontario, que tem um prato deste serviço, aventam a hipótese de esta série ter sido lançada para celebrar a abertura do canal Lachine em 1825. Não há dúvida que este padrão celebra a prosperidade e o crescimento de Montreal, baseada no seu porto e no tráfico fluvial, mas não se percebe se foi encomendado pela municipalidade, se pela companhia de navegação British Ammerica, se pelo governo desta antiga possessão inglesa ou se foi a Davenport que gostou da gravura e achou que o mercado de países anglófonos gostaria dele. O que é certo, é que o padrão Montreal foi vendido pelo mundo inteiro, pois a Davenport foi das fábricas inglesas com maior produção e com um mercado de exportação gigantesco. Um abraço

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    2. Seu comentário já foi mais rico e interessante do que uma resposta precisa e definitiva. obrigado!

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  2. Uma peça muito bonita com uma história associada à história de uma cidade. Como sempre, o LuisY traz-nos posts enriquecedores.

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    1. Luisa

      Esta travessa é tão bonita e rica em pormenores, que nos sentimos compelidos em saber mais sobre ela. Através desta peça de loiça, surpreendemos um momento da história de Montreal e dos encontros e desencontros da cultura francesa e inglesa, que praticamente definem o Canadá.

      Bjos

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  3. A isto chama-se a história do mundo vista pelos olhos dos súbditos de Sua Majestade e ... interpretada por ti. Belíssima pesquisa.
    Por isso é que o teu blog é de referência e quem gostar da loiça inglesa não deixará de passar por aqui. E, se não o fizer, será uma pena, pois perderá uma quantidade de boa informação credível, porque rigorosa e contextualizada, sobre este assunto.
    É sempre um encanto ver estas coisas quando elas fazem sentido, porque inseridas num contexto histórico, como fizeste.
    Belíssima ideia esta, a da apresentação da foto contemporânea. Pode-se fazer uma boa comparação.

    Quando deparei com esta travessa pareceu-me imediatamente que o tema do desenho nela representado seria possivelmente uma forma de fazer publicidade a qualquer companhia de transportes fluviais denominada "British America", mas fiquei-me pela conjetura. Esqueci o assunto rapidamente, assim que ela, a travessa, passou para a parede.

    Esta louça continua a aparecer a preços convidativos e, quer os desenhos, quer o cromatismo, fazem destas peças coisas muito apelativas, pelo menos aos meus olhos.

    E esta travessa, ao invés do que acontece bastas vezes, até a consegui apanhar praticamente intacta - vai sendo cada vez mais difícil.
    Parabéns pelo desenvolvimento do tema
    Manel

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    1. Manel

      Como referi à Luisa, desde logo me pareceu que esta travessa contava uma história qualquer e resolvi pesquisar aqui e acolá, sobre este padrão decorativo e sobre a própria cidade de Montreal e apresentar no blog os resultados do que encontrei.

      O mais lógico seria que este serviço tivesse sido uma encomenda da companhia de navegação British America, mas na obra "Potters' View of Canada: Canadian Scenes on Nineteenth-Century Earthenware" de Elizabeth Collard, que se encontra em linha na net, a autora refere que não há indícios que a referida companhia tenha feito tal encomenda, além de que esta loiça foi comercializada para o mundo inteiro e não apenas para o Canadá ou para uso exclusivo da companhia, embora a tivessem certamente usado como baixela nos seus navios.

      Creio que no fundo esta travessa celebra dois temas preferidos do século XIX, a fé inquebrantável no progresso, realizável através da indústria e dos transportes e a missão que a Europa tinha em civilizar continentes selvagens, como a América.

      Um abraço e obrigado pelas palavras simpáticas

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  4. Belíssima travessa e que maravilha de exposição!
    Parabéns, Luís! Parabéns, Manel! Abraços

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    1. Maria Andrade.

      É sempre bom vê-la por aqui. Imaginava que viesse aqui comentar porque sei que gosta muito da Davenport. Aliás, quem não gosta?

      Bjos e um bom fim-de-semana

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    1. Muito obrigado pelo seu comentário, Jorge. Um grande abraço

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  6. Agradeço-lhe Maria Andrade.
    Mas, ainda que a medo, porque me repito, continuo a perorar sobre a muita pena que tenho por não ter continuado com o seu blog, onde a qualidade e exigência, à mistura com boa dose de humor, eram igualmente um bálsamo para o espírito e elucidativo para quem gosta destas lides da faiança.
    Cumprimentos para vós, com saudades
    Manel

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  7. Respostas
    1. Margarida

      Obrigado pelo seu comentário. Esta travessa é quase uma fotografia que capta um momento da história de uma cidade canadiana, mas também o espírito de uma época em que se acreditava na missão civilizadora da Europa e nos enormes benefícios da indústria e do desenvolvimentos dos transportes para a humanidade.

      Bjos

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