segunda-feira, 15 de julho de 2019

O Menino Jesus do Convento das Flamengas


Comprei mais este registo, representando um Menino Jesus, vestidinho como se fosse um cortesão, a que não faltam sequer uns sapatinhos de fivela, uma camisa debruada com rendas e uma peruca. Estava muito mal emoldurado, numa dessas caixas de vidro, ornamentada com umas fitas de ouro compradas nas lojas dos chineses e ainda umas escamas de um peixe, provavelmente de uma espécie geneticamente modificada. Enfim, era uma daquelas coisas modernas e infelizes a imitar os registos feitos nos conventos. Resolvi retirar esta estampa antiga daquele horror, mas acabei por rasga-la e lá foi o meu amigo Manel, que com a sua paciência, a conseguiu colar.


Como já escrevi aqui no blog, durante os séculos XVII e XVIII nos conventos femininos portugueses a devoção ao Menino Jesus, manifestou-se de formas que hoje nos parecem muito curiosas. No muito tempo que tinham livre, as irmãs dedicavam-se a confeccionar enxovais completos ao Menino Jesus, onde não faltava nada, desde trajes de caça, roupa de cama, roupa interior, trajes de corte, chapéus, sapatos e meias, conforme nos dá conta Flávio Gonçalves na sua obra O vestuário mundano de algumas imagens do Menino Jesus, Porto, 1967. Mas as religiosas se não limitavam ao guarda-roupa, escreviam poemas ao Menino Jesus, encenavam peças de teatro para Ele e ainda encomendavam-lhe cadeiras e camas em miniatura, que são réplicas fiéis do mobiliário então em voga. É o caso, deste menino Jesus, das Religiosas Flamengas do Convento de Alcântara, em Lisboa, que se encontra sentado num cadeirão de braços muito ao gosto do século XVIII.

Cadeiras de imagem da col. do Museu Nacional de Arte Antiga


O Museu Nacional de Arte Antiga expõe na secção de mobiliário algumas dessas cadeiras e leitos de imagens, que além de serem uma verdadeira graça, testemunham a intensa devoção ao Menino Jesus experimentada por essas mulheres que viviam em reclusão. Claro, aos nossos olhos modernos, tudo isto nos parece coisa própria de mulheres celibatárias, que procuravam satisfazer um desejo recalcado de maternidade, mas a sua fé era genuína e o Menino Jesus era como que um cupido brincalhão, que cravava no coração dessas freiras o dardo do amor divino.

Leitos de imagem da colecção do Museu Nacional de Arte Antiga


Esta estampa dos finais século XVIII reproduz uma imagem que existiu em tempos no Convento de Nossa Senhora da Quietação, em Alcântara, conhecido vulgarmente pelas flamengas, pois tinha sido fundado no século XVI, no tempo de  Filipe II, para acolher religiosas fugidas das perseguições luteranas na Holanda e na Flandres e terá sido objecto de um intenso culto não só parte das monjas clarissas, que viviam nessa casa de religiosas, mas também da população em geral, de outro modo não se teria mandado imprimir esta estampa.

Menino Jezus das Religiosas Flamengas d'Alcântara. Carvalho Fecit. Em caza de M. D. A Junior, na rua dos Calafates, nº 116

Este registo foi gravado por Teotónio José de Carvalho, que fazia muitas destas gravurazinhas baratas (só eu tenho umas quatro gravadas por ele)  e vendia-se em casa de um tal M. D. A Junior, na rua dos Calafates, nº 16. Estas iniciais correspondem ao nome Manuel d'Ambrosii Júnior, que no Inventário da colecção de registos de santos de Ernesto Soares é mencionado 13 vezes, o que nos dá ideia da popularidade das suas edições. Tinha a sua casa na rua dos Calafates, nº 116, em Lisboa, que corresponde à actual Rua Diário de Notícias, no Bairro Alto. O Bairro Alto foi durante mais de dois séculos uma zona onde tradicionalmente os livreiros e impressores tinham os seus estabelecimentos.
O Convento das Flamengas. Foto http://www.monumentos.gov.pt/

Quanto ao paradeiro actual deste Menino Jesus e do seu precioso enxoval, não descobri nada. Após a extinção das ordens religiosas, com a morte da última freira, em 1887, as alfaias e os objectos de cultos deste convento dispersaram-se. Uns fazem parte da colecção do Museu Nacional de Arte Antiga, mas entre eles não se conta o Menino Jesus nem a sua cadeira, e outros bens voltaram à igreja do mosteiro em 1889, sendo entregues à Real Irmandade da Nossa Senhora da Quietação. Será que este Menino Jesus pertencerá ainda à referida Irmandade ou foi vendido em hasta pública no século XIX e da sua existência luxuosa, com trajes de corte tão ricos, restou apenas esta estampa como testemunha?





Alguma bibliografia e links consultados:



Inventário da colecção de registos de santos / org. e pref. Ernesto Soares. - Lisboa : Biblioteca Nacional, 1955.


O vestuário mundano de algumas imagens do Menino Jesus / Flávio Gonçalves , Porto, 1967


http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=5940

8 comentários:

  1. É sempre um gosto e motivo de aprendizagem a leitura atenta deste seu blog, sempre muito bem escrito e documentado e, para mais, com peças curiosíssimas, ainda que de valor inexpressivo. Como interessado que sou na falerística, chamou-me a atenção o facto de se verem insígnias da Ordem de Cristo (do próprio Menino, portanto) a ornamentarem as vestes da imagem. Muito interessante. A placa (um pouco descaída, porque deveria ser usada do lado esquerdo do peito) ainda não tem o sagrado coração (que passa a usar-se a partir de 1789, com a reforma mariana). Terá sido um presente deixado ao Menino Jesus por um qualquer agraciado?
    NP

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    1. Caro NP

      Muito obrigado pelo seu comentário.

      Infelizmente não encontrei muitas informações sobre a devoção a este Menino Jesus do Convento das Flamengas, que em tempos terá sido popular. Também não fiz nenhuma pesquisa exaustiva.

      De facto, o Menino ostenta as insígnias da Ordem de Cristo. Se era vulgar oferecerem-se vestes e joias às imagens como agradecimento de favores divinos, talvez fosse também comum oferecerem insígnias.

      Creio que a estampa, que poderá ter sido impressa nos últimos anos do XVIII ou eventualmente nos inícios do XIX, deve retratar com fidelidade uma imagem mais antiga, pois aquela peruca do menino Jesus parece uma moda da primeira metade do século XVIII.

      Um abraço

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  2. Luís

    Como sempre um excelente post, acompanhado de um texto esclarecedor e bem escrito.O menino Jesus do Convento das Flamengas, com os seus trajes mundanos devia ser uma imagem digna de ser aoreciada. Infelizmente com a extinção das ordens religiosas e, depois, durante os tempos conturbados da primeira república, muito do recheio dos mosteiros e das igrejas se perdeu.
    Ando para esvrever um post sobre o Convento das Flamengas a propósito das faianças usadas no mesmo convento. A ver se me decido.

    if

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    1. Ivete

      Com efeito esta imagem com o seu enxoval de luxo e uma cadeirinha de aparato deve ter sido uma coisa espantosa e uma devoção popular em Lisboa, mas não encontrei nada sobre o seu actual paradeiro. Estará encafuada na sacristia da Igreja da Irmandade ou foi vendida em hasta pública?

      Uma das razões porque publiquei esta imagem é porque tenho esperança que seja útil a alguém que ande a estudar o paradeiro do recheio do convento.

      Acho muito boa ideia escrever sobre as faianças provenientes deste Convento. Será mais uma peça para o puzzle acerca do destino dos bens do Convento de Nossa Senhora da Quietação.

      Um abraço

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  3. Realmente achei esta gravura uma graça, e seria uma pena não fazer algo para a tornar utilizável de novo.
    Esteve muito tempo sobre a minha bancada, é que não sabia muito bem como pegar-lhe, pois encontrava-se muito danificada, e tinha receio de ainda fazer pior.
    Lá andou durante mais de dois ou três meses, e finalmente lá encontrei uma forma de a trazer de novo à vida, mas não tenho a certeza de ter feito o melhor.
    Pelo menos agora pode-se trabalhar com o registo e, claro, emoldurá-lo.
    Mas é na verdade uma imagem intimista, não obstante o traje de corte e o aparato da cadeira e das insígnias.
    Olhando para o menino, parece-se mais com um D. João V algo feminino, ou uma D. Maria Ana de Áustria (que, apesar da nobre linhagem e figura majestática, os seus retratos dão conta de uma mulher que não se podia considerar bonita).
    No entanto, as vestimentas mais movimentadas, a expressão algo travessa e um pé desenhado mais alto do que o outro, como uma criança a tentar equilibrar-se sobre uma cadeira demasiado alta, confere-lhe uma intimidade bastante apelativa.

    Quanto ao convento propriamente dito, descobri-o quando, na faculdade, fiz um trabalho sobre aquele zona da cidade, e fiquei maravilhado sobretudo com o claustro, que está no interior, que visitei muitas vezes, dada a tranquilidade que se vivia naquele espaço. O edifício conventual serviu de habitação a dezenas de famílias consideradas carenciadas, e que estavam ligadas ao antigo Instituto do Ultramar. Estas habitações davam todas para este claustro, com fonte central, e cada família tinha feito o seu próprio jardinzito no espaço antes ocupado pelo claustro, pelo que aquele espaço de verdura e fresco, cheio de flores, insetos, passarada e tranquilidade, era um prazer visitar.
    Um oásis no meio da cidade.
    Hoje em dia não sei o que está lá, pois creio que estas famílias deixaram de lá morar, segundo percebi.

    Também este edifício está intimamente ligado ao drama que se desenrolou no século XVII, entre os irmãos Afonso VI e Pedro II. Ambos casaram com a mesma pessoa, Maria Francisca de Sabóia naquela edificação, e o coração e as vísceras deste último, Pedro II, estarão na capela-mor da igreja que pertence ao complexo.
    Enfim, um edifício carregado de história!
    Manel

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    1. Manel

      Mais uma vez fizeste um trabalho notável reparando os estragos que eu fiz ao retirar a estampa daquela moldura medonha.

      A peruca do Menino Jesus corresponde a uma moda das primeiras décadas do séc. XVIII. Na segunda metade do XVIII estas perucas estavam já irremediavelmente fora de moda.

      Quanto as cadeirinhas e camas em que os Meninos Jesus eram apresentados, segundo a minha colega Celina Bastos, poderiam variar consoante o calendário litúrgico, isto é, o mesmo menino que numa altura qualquer do ano estava sentado numa cadeira, poderia ser deitado num leito, por alturas do Natal.

      Um abraço

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  4. Nossa Senhora da Quietação, Nossa Senhora do Fastio, denominações e devoções que não chegaram aqui no Brasil, pelo menos eu não conheço. Na cidade de Ituaçu, aqui na Bahia, a padroeira é Nossa Senhora dos Aflitos. Fastio, Inquietação, Aflição três sentimentos que estão na ordem do dia...Será que na época das flamengas era tanta inquietação?? Igual a hoje, decididamente, suponho que não.
    As freiras do convento dos Humildes e as freiras do convento de Desterro - cidades de Santo Amaro e Salvador tinham essa devoção ao Menino Jesus e faziam trabalhos lindos em maquinetas. Esses trabalhos das flamengas são maravilhosos.
    Sou o mais novo devoto de Nossa Senhora da Quietação.
    Abraços, Luís.

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    1. Jorge

      Segundo li num artigo publicado por Hilda Moreira de Frias, intitulado "Igreja de Nossa Senhora da Quietação das Religiosas: descalças da Regra de Stª Clara” a invocação escolhida foi a de Nossa Senhora da Quietação, orago evocativo da calma e
      da paz que procuravam as freiras flamengas, fugidas das terríveis guerras religiosas entre protestantes e católicos nos seus Países (actuais Bélgica e Holanda), para que nunca mais sofressem as inquietações do passado.

      No século XVI e inícios do XVII, a Flandres,os Países Baixos e a Alemanha passaram por um período terrível de guerra entre protestantes e católicos.

      Estas devoções muito peculiares ao Menino Jesus são comuns a Portugal e ao Brasil. Enfim, até mais ou menos 1822, fomos um mesmo País e mesmo depois dessa data, a cultura permaneceu idêntica durante muito tempo.

      Um abraço ao novo devoto de Nossa Senhora da Quietação

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