sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Um pouco da vida política em Chaves na década de 90 do século XIX: Liberal Sampaio

Liberal Sampaio. Foto de meados da década de 70 do século XIX.
 
O facto de uma prima minha me ter oferecido dois velhos álbuns de fotografias de família, tiradas mais ou menos entre 1860 e 1902, reacendeu em mim o interesse pela história da família e para me informar melhor sobre o universo onde aqueles personagens viveram, comprei a obra História moderna e contemporânea da Vila de Chaves através das actas e jornais da época, da autoria de um parente meu, Júlio Montalvão Machado e publicado pelo Grupo Cultural Aquae Flaviae. É um livro bem organizado, com um índice onomástico no fim, permitindo-nos localizar rapidamente na obra esta ou aquela personagem. E com efeito, encontrei nesta obras duas notícias referentes ao meu trisavô, que permitem entrever a personalidade polémica de José Rodrigues Liberal Sampaio, apesar da sua condição de sacerdote supostamente o obrigar a alguma descrição.

A primeira notícia foi publicada a 1 de Novembro de 1895, no jornal O Norte, periódico publicado em Vidago, ligado ao Partido Progressista e relata um comício da força política rival, o Partido Regenerador, ao qual o meu trisavô esteve ligado. Esta reunião do Partido Regenerador teve lugar no antigo teatro de Chaves e o autor do artigo descreve de forma sardónica o evento como se de um drama teatral de faca e alguidar se tratasse, tendo por protagonistas os políticos desse partido, entre os quais se contava o meu trisavô, bem como Joaquim Carneiro de Moura, entre outros e não consigo resistir a transcrever aqui parte desse texto.
 
Presumível retrato de Joaquim Carneiro de Moura, um político que passou do Partido Regenerador para o Partido Progressista

Espectáculo regenerador: a 27 de Outubro, no teatro desta vila, reuniram-se os poucos regeneradores de Chaves, após a missa do meio-dia, para a resolução de assuntos políticos de alta transcendência (…)
Estoirou então na escuridão do teatro a voz dominadora do sr. Padre Liberal Sampaio. O actor combateu o abandono a que estão lançadas as “mulheres de má vida” e pede para elas um asilo. Não quer também a canalização das águas em canos de ferro zincados, mas sim em canos de pedra, pois aqueles depositam “materiais nocivos à saúde”. Disse que os presos não ouvem missa e que os regeneradores têm em vista, se forem Câmara obriga-los a ir à missa do meio-dia para lhe purificar as almas. O actor publicou depois mais dislates à assembleia boquiaberta, estupefacta, atónita. É esta cabeça que os regeneradores apresentam para a Presidência da Câmara.

Uma vez que o autor deste texto não nutria qualquer simpatia pelo meu trisavô, acaba por me dar uma visão mais exacta do meu antepassado, muito mais do que se fosse um texto laudatório, daqueles que se escrevem quando as pessoas morrem. Em primeiro lugar sobressai a voz dominadora de Liberal Sampaio, que estoira na escuridão do teatro. Sabia que o meu trisavô foi um pregador famoso no seu tempo e presumia que tivesse bons dotes oratórios, mas neste texto tenho uma caracterização da voz de um homem em 1895, num tempo em que os registos sonoros eram raríssimos e percebe-se que terá tido a capacidade de dominar um auditório, como só alguns professores de liceu ou de faculdade o conseguem fazer ao fim de muitos anos de ensino. Por outro lado, o que no ano de 1895 pareciam dislates num meio pequeno de uma vila transmontana, aos nossos olhos contemporâneos, são bons princípios, como a criação de um abrigo para as prostitutas, a proposta de que os presos ouvissem missa, pressupondo que o meu trisavô acreditasse não só num tratamento mais humanitário para os presidiários, mas também no seu arrependimento e redenção. Finalmente parece-me interessante a sua preocupação com as canalizações e a saúde pública.

O artigo deste jornal dá-me também conta das simpatias políticas de Liberal Sampaio com o partido Regenerador, o que se confirma no levantamento que o meu pai fez de todos os artigos que o meu trisavô escreveu na imprensa periódica. Com efeito ao longo de 1895, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio colaborou pelo menos 4 vezes no Correio de Chaves, órgão do Partido Regenerador.

Contudo, terá mudado a filiação partidária, pelo menos a partir de 1899, pois o mesmo jornal, o Correio de Chaves, nesse ano ataca-o ferozmente como um progressista, mudança esta que se confirma na bibliografia levantada pelo meu pai, pois entre 1906 e 1907 Liberal Sampaio é colaborador assíduo no Intransigente, um semanário progressista, com sede em Chaves.

Transcrevo aqui o ataque ao meu antepassado feito pelo Correio de Chaves em 13 de Maio de 1899.

A seriedade do padre e advogado José Rodrigues Liberal Sampaio. É como homem e como padre que me proponho tratar este desgraçado - perigoso instrumento do agente das trevas – e depois o arrastarei à praça pública, onde ficará a nu das pústulas, como advogado. Como Padre tem por tema a volúpia. Como homem é sem firmeza de carácter e de tal baixeza que havendo dito dos progressistas locais no teatro de Chaves em 1895 o pior que se pode dizer de um partido, pouco depois foi-lhes oferecer os seus serviços a mendigar favores.

Como padre, arranjou uma espécie de Congregação de Filhas de Maria para conseguir o concubinato rico que ostenta, vaidoso, e praticou em Outeiro Seco, as acções más que a devassidão pode inventar. Além disso mandou espancar um homem por meio de uma cilada combinada com uma amante, o que lhe trouxe a sentença de desterro que cumpriu.

É este padre que se exibe pregador régio, não tendo senão exemplos de descrédito na vida…um pregador que vive em mancebia, pratica escândalos e cobra dinheiro por assistir a um moribundo.
 
Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão, a minha trisavó, foi amante de Liberal Sampaio 

Como bem refere Júlio M. Machado, que reproduz este texto na sua obra, o redactor deste periódico, era um agressivo autor das notícias mais especulativas e é evidente o tom calunioso desta notícia. Para o leitor flaviense de 1899, num meio em que todos se conheciam, as insinuações deste texto eram mais que óbvias, mas hoje, passados 120 anos tenho alguma dificuldade em entender o exacto significado destas injúrias. Por exemplo, quando menciona arranjou uma espécie de Congregação de Filhas de Maria para enriquecer, será que o jornalista do Correio de Chaves se refere a algum recolhimento para raparigas pobres, talvez a Confraria do Sagrado Coração de Maria, que por volta destes anos manteve um conflito com a Câmara de Chaves e para a qual o meu trisavô angariaria dinheiro?

O autor desta notícia, que assina sob o pseudónimo de Zéquentelho, acusa Liberal Sampaio de ter espancado um homem em Outeiro Seco, com a cumplicidade da amante (certamente a Maria do Espírito Santo) e que lhe trouxe uma sentença de desterro que cumpriu. Este episódio não consta da tradição familiar, mas creio que se refere à suspensão de advogado, pelo prazo de seis meses, a que o meu trisavô foi condenado em Julho de 1898, por falta de respeito a um juiz, conforme notícia o Correio de Chaves, a 16 desse mesmo mês, no nº 7 e cujo texto transcrevo aqui.

O Tribunal da Relação do Porto, suspendeu de advogado nos Tribunaes do Reino, durante 6 meses, o Sr. Dr. Liberal por insultos dirigidos ao Sr. Dr. Juiz d’esta Comarca em uma minuta de aggravo, de que um pasquim da localidade exibiu cópia com grande ufania. Que esta pena, sirva de exemplo para muitos que, no destempero da linguagem, andam constantemente a faltar ao respeito devido aos tribunais(..).

 
Liberal Sampaio no momento da sua formatura, em Coimbra
 
Da leitura destes artigos publicados em 1895 e 1899 fica claro que o meu trisavô, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio era um homem que ou era amado ou detestado. Não seria de todo uma daquelas pessoas que estão bem com Deus e o Diabo. Politicamente, passou do Partido Regenerador para o Progressista e com uma voz dominadora defendeu alguns princípios que ainda hoje fazem parte da agenda política, como a criação de abrigos para as prostitutas e um tratamento mais humano dos presidiários. Também da leitura destes artigos se comprova inequivocamente, que Liberal Sampaio viveu maritalmente com a minha trisavó, a Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão, uma fidalga de condição superior à sua e que a sua vida decorreu entre polémicas.

Estes dois artigos evocam também uma época em Portugal, a segunda metade do século XIX, em que existia plena liberdade de imprensa e os inimigos políticos, sociais ou de corrente literária insultavam-se ferozmente, numa desfaçatez completamente impensável para os dias de hoje, em que as polémicas quando estalam, entre jornalistas, políticos ou cineastas ou escritores, decorrem sempre de forma civilizada.

Bibliografia:
História moderna e contemporânea da Vila de Chaves através das actas e jornais da época / Júlio Montalvão Machado. – Chaves: Grupo Cultural Aquae Flaviae, 2012, p.151-52 e p. 173-174

José Rodrigues Liberal Sampaio: 62 anos de jornalismo: bibliografia activa e passiva / José Manuel Alves Montalvão da Cunha
In
Adenda ao nº 56, de Junho 2018 da Revista Aquae Flaviae. Chaves: Grupo Cultural Aquae Flaviae, 2019

2 comentários:

  1. Estas atas dão uma nova visão da vida pública de pessoas influentes, de uma forma que não saberíamos doutra forma. São muito interessantes, pois complementam a visão que se pode ter de uma época e da forma como os indivíduos eram vistos de fora, por outros pertencentes a forças políticas diferentes.
    É refrescante percebê-lo, pois as pessoas não são formadas só por perceções positivas da sociedade onde estão inseridos, mas por um conjunto de outras formas que constituem um todo.
    Por acaso, a forma como este teu antepassado pensava até era vanguardista e à frente do seu tempo, o que torna a situação ainda mais interessante, e abona a favor dele.
    Manel

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    1. Manel

      É verdade. Estes artigos muito críticos sobre o meu trisavô proporcionaram-me uma visão muito mais rica da sua figura, do que alguns textos panegíricos feitos após a sua morte. São também um bom exemplo da liberdade de imprensa que se viveu em Portugal na segunda metade do XIX. No tempo do Estado Novo (1926-1974) seria impensável publicar textos deste teor.

      Um abraço

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