O meu pai sempre me dizia que quando não se tem dinheiro para comprar boa pintura, é sempre preferível adquirir gravuras, do que reproduções industriais de quadros célebres ou óleos de má qualidade. Por um preço aceitável ou mesmo muito em conta é possível encontrar gravuras impressas nos séculos XIX, XVIII e até do XVII nos mercados de velharias.
E com efeito cresci numa casa com estampas na parede, aprendendo a gostar a gostar delas e quando o meu pai morreu, escolhi umas quantas para decorar o meu apartamento de uma assoalhada e meia.
Uma das que seleccionei foi esta Vue de l'Hôtel des États-Généraux à Bruxelles, uma gravura aguarelada, que me pareceu de imediato coisa do início do século XIX, a julgar pela indumentária das personagens, que se passeiam em frente ao edifício dos Estados Gerais, ou melhor dizendo do Parlamento.
No topo, o título da gravura apresenta-se com as letras invertidas, o que indica de imediato que se trata de uma vista óptica. As vues d’optique como eram conhecidas em francês, eram gravuras destinadas a serem visualizadas numas caixas ópticas, que davam uma sensação de perspectiva e profundidade a quem espreitava para dentro delas, conforme já expliquei no meu post de 24 de Setembro de 2013. Como as caixas ópticas ou zogroscópios continham um espelho, as imagens eram visualizadas invertidas e as legendas das vues d'optiques eram então impressas da direita para a esquerda.
Uma Caixa Óptica do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra. Reparem que no tabuleiro de baixo está a estampa. |
Estas vues d’optique fizeram a sua aparição em meados do século XVIII em plena altura do grand tour, essa grande viagem, que os ingleses abastados faziam a Itália para se instruírem e os seus impressores inspiram-se nas vedutas, isto é, as pinturas ou gravuras com vistas dos monumentos de Roma ou Veneza, que os turistas britânicos compravam naquele país. Contudo, além do título invertido, as vistas de óptica apresentavam características próprias, distintas das outras gravuras. Eram montadas sobre cartões, os pontos de fugas e perspectivas eram muito bem definidos, as cores fortes eram usadas nos planos mais próximos e as mais suaves nos planos longínquos e normalmente representavam vistas de arquitectura, monumentos, praças, igrejas, palácios ou parques. A ideia era que quando colocadas nas caixas ópticas e vistas através de espelhos e lentes, estas gravuras pudessem criar uma ilusão de profundidade. Algumas delas eram até picotadas e quando se colocava uma luz a azeite ou óleo no aparelho, o espectador ficava com a ideia de ver a praça de uma qualquer cidade iluminada à noite.
Uma vista de óptica noturna. Foto de Le monde en perspective: vues et récréations d’optique au siècle des Lumières: |
As vistas de óptica tornaram-se populares na Europa e eram usadas com fins científicos, para o estudo da arquitectura, das leis da perspectiva e da óptica ou para que os estudantes pudessem ampliar a sua visão do mundo, educando o gosto. O nosso Museu da Ciência da Universidade de Coimbra conserva uma colecção notável destas caixas ópticas. Mas estas gravuras e respectivos instrumentos de leitura foram também coleccionados por famílias nobres ou de grandes burgueses como forma de elevada distracção ou para educação ou dos seus filhos. Apesar de a partir de 1830, a produção das gravuras com vistas de óptica ter começado a decair, o seu uso manteve-se nas feiras pelo século XIX fora, onde por uma simples moeda, pessoas que nunca tinham saído da sua região podiam espreitar nos zogroscópios vistas de Paris, Roma, Bruxelas ou Londres.
À Paris, chez Basset, Rue de St. Jacques, nº 64 |
Quanto à minha estampa foi impressa em Paris, no Basset, na rua de São Jacques, nº 64, conforme se pode ver no canto inferior esquerdo. A cidade de Paris era um dos principais centros impressores destas estampas e a maioria deles tinham oficina na Rua de São Jacques. Na Biblioteca Nacional de França encontrei a notícia de autoridade referente a este Basset. Trata-se de Paul-André Basset (1759-1829) um impressor e comerciante de estampas, vistas ópticas e papéis pintados. Através deste registo consegui perceber, que a oficina de Paul-André Basset esteve no nº 64 da Rue de St. Jacques entre 1805 e 1817. Até lá estava no número 670 da mesma rua. Portanto esta «Vue de l'Hôtel des États-Généraux à Bruxelles» parece ter sido impressa entre 1805 e 1817.
Dembour et Gangel edits à Metz |
Contudo, no canto inferior direito existe uma segunda referência “Dembour et Gangel edits à Metz”, que se reporta à associação dos editores Adrien-Népomucène Dembour e Gangel, formada em 1840. Possivelmente, a casa Dembour et Gangel de Metz reeditou por volta de 1840 uma estampa mais antiga da casa Paul-André Basset, datada entre 1805 e 1817. A minha vue d'optique de Bruxelas será então da última fase da produção deste tipo de estampas.
Foto retirada de Le monde en perspective: vues et récréations d’optique au siècle des Lumières: |
Actualmente as vistas ópticas parecem-nos um pouco ingénuas. Mas é porque as vimos a olho nu, sem ser através de uma lente e um espelho. Além disso, hoje em dia andamos sempre de mala aviada viajando de Paris para Tóquio, fazendo escala em Tel-Aviv e temos os olhos saturados de imagens da internet ou da televisão, sem esquecer os milhares de fotografias partilhadas através dos telemóveis. Mas por volta de 1840, quando esta estampa foi editada viajava-se pouco e havias poucas imagens disponíveis sobre Paris, Berlim, Roma ou Londres e espreitar pela lente de uma destas caixas ópticas era ver um mundo novo.
Algumas obras e links consultados;
Le monde en perspective: vues et récréations d’optique au siècle des Lumières: les collections montpelliéraines de vues d’optique au château de Flaugergues. - Perpignan: Direction régionale des affaires culturelles du Languedoc-Roussillon, 2014
Muito interessante, Luís.
ResponderEliminarObrigada. Bom Natal e Bom ano .
Bjns.
Estas imagens são muito interessantes, pois foram as percursoras de outras imagens estereoscópicas, que apareceram quando surgiram as máquinas fotográficas, quando estas assumiram um papel mais comum (mas ainda assim só disponível às classes mais favorecidas) lá para meados do século XIX.
ResponderEliminarO princípio era semelhante, no entanto já mais sofisticado, pois eram tiradas duas fotografias do que se queria representar, através do uso de duas objetivas, as quais estavam separadas uma da outra por cerca de 7 cm, aquilo que se considera a distância média entre os dois olhos de uma face humana.
Essas duas imagens, depois de impressas, eram coladas a cartões grossos, para resistirem ao seu manuseamento, e colocadas em maquinetas denominadas de estereoscópios, os antepassados do conhecido "view-master" do século XX, que conseguia unir as duas imagens numa só, a qual era percebida como uma vista perspética. Estas maquinetas, hoje em dia ainda se vêm no mercado à venda, apesar de aparecerem já muito destruídas, e com preços pouco acessíveis, claro, dada a sua raridade.
O sistema é relativamente fácil de se poder produzir manualmente, através de um desenho, o que já experimentei várias vezes, com sucesso, desde que se olhe para essas imagens desenhadas com óculos com cores distintas em cada olho - aliás, um sistema em voga já desde os anos 50 do século XX, adaptado (com fraco sucesso, dado os resultados não muito bons, devo referir) à projeção de filmes no circuito comercial.
Enfim, este tipo de arte é um mundo a descobrir, pois é base dos estudos que conduziram à produção de imagens para o cinema, desenvolvido ainda de forma incipiente nas décadas finais do século XIX, e depois, com o sucesso que conhecemos, no decorrer do XX.
Eu ainda tentei produzir um livro de Geometria Descritiva utilizando este processo estereoscópico, mas o projeto redundou num fracasso, pois as editoras não estavam muito interessadas, pois o processo tornaria o manual bastante dispendioso. Eu também não estava muito entusiasmado na altura, devo confessar, por várias razões que aqui não têm cabimento expor.
Mas estas imagens são muito bonitas, e são-no ainda mais, porquanto acarretam o peso da história do 3D adaptado às imagens.
Manel
Manel
EliminarEstas gravuras além de serem muito decorativas, apresentam este aspecto fascinante de serem antepassadas remotas da fotografia e do cinema. Claro, não tenho nenhuma caixa óptica antiga para as visualizar, mas isso já seria querer demais.
A publicação que encontrei on line "Le monde en perspective: vues et récréations d’optique au siècle des Lumières" permitiu-me descobrir mais alguns aspectos deste tema, que já tinha apresentado aqui no blog.
Um abraço
Ana.
ResponderEliminarMuito obrigado pelo seu comentário. Ainda bem que gostou- Desejo-lhe também umas destas felizes para si e os seus.
Um abraço