Tenho escrito pouco no blog. Tenho muitas ideias para novos posts, mas tem-me faltado o tempo. O meu pai morreu recentemente e estamos a dividir o recheio da casa, o que dá sempre trabalho. É preciso escolher, embalar, transportar e depois em minha casa, há que limpar, polir e encontrar um lugar para os objectos e acreditem, que isso não é nada fácil, na minha assoalhada e meia pejada de velharias. Uma nossa senhora ou uma caixinha de prata acharam de imediato o seu lugar como que por magia ou talvez, melhor ainda, porque no meu apartamento repliquei aspectos da decoração da casa dos meus pais e estas peças estavam como que em falta. Outras ainda, como gravuras antigas ainda estão à espera de um lugar
Desmanchar a casa de um pai é por vezes um trabalho penoso. Noutro dia abri um roupeiro onde estavam as camisas, as gravatas e as calças do meu pai e senti ali a sua presença, vestido com aqueles casacos fininhos com os quais morria de frio e aquelas roupas tão características da sua personalidade de quem não ligava nada a modas e achava um desperdício gastar dinheiro em trapos. Acabei por me emocionar.
Mas ao mesmo tempo sinto também que estou a dar continuidade ao trabalho de arquivista e compilador da história da família, desenvolvido pelo meu pai depois de se reformar.
Encontrei a colecção de jornais onde o meu trisavô, o padre José Rodrigues Liberal Sampaio colaborou. São periódicos do segundo quartel do século XIX, publicados em Chaves e que não se encontram digitalizados em nenhuma biblioteca. Mas dessa colecção o meu pai fez uma relação, que até já foi publicada na Aquae Flavie, mais exactamente na adenda ao nº 56, de Junho 2018 dessa revista. Em todo o caso eu nunca li nenhum desses textos do meu antepassado e sinto a maior das curiosidades por conhecer o pensamento desse homem, que foi pregador, numismata, jornalista, coleccionador de objectos arqueológicos e membro do círculo de intelectuais, padres, professores, médicos, que José Leite de Vasconcelos montou por todo o país e que lhe davam notícia de todos os monumentos, ruínas, moedas romanas ou machados neolíticos da sua região.
José Rodrigues Liberal Sampaio (1846-1935) |
Existem ainda todos os jornais onde a minha avó, Maria Montalvão Cunha, escreveu. Terei que me encher de paciência, recortar o cabeçalho do jornal, o respectivo artigo e colar num caderno e fazer um pequeno catálogo e eliminar o resto do jornal. É certo que a minha avó Mimi não era propriamente uma Yourcenar, mas seria uma pena perder esse trabalho de anos e tenho interesse em ler tudo o escreveu.
Por fim, encontrei uma serie de documentos, que conhecia vagamente a existência, mas que o meu pai nunca me tinha mostrado, a correspondência entre os meus trisavôs, Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão (1856-1902) e José Rodrigues Liberal Sampaio (1846-1935), Ela era uma fidalga de uma família conhecida em Chaves e ele, um padre e dois viveram um amor ilícito, do qual conheço apenas os contornos gerais.
Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão (1856-1902) |
Estas cartas já tinham sido mais ou menos organizadas por correspondentes pela minha avó Mimi, que fez pequenos maços atados por um cordel. O meu pai estava a dar continuidade a este trabalho, acondicionando cada carta numa pastinha, fazendo o sumário e identificando as datas, mas faltou-lhe o tempo e terá talvez tratado apenas uns 5 por cento daquilo, que calculo serem umas duzentas cartas. Creio que a ideia dele seria mostrar-nos o trabalho só depois de concluído. Agora cabe-me me a mim, prosseguir esse trabalho, que se arrasta há três gerações, de inventariação e leitura das cartas, bem como do seu correcto acondicionamento, o que certamente me levará anos. A inventariação, catalogação de espólios documentais é sempre um processo minucioso e por vezes monótono, que implica decifrar caligrafias antigas, encontrar datas, fazer pastinhas, numerar e arrumar em caixas francesas.
É um desafio fascinante entrar no mundo e nos segredos dos amores ilícitos do padre e da fidalga no segundo quartel do século XIX e conhecer a história da família e oxalá o tempo não me fuja, como aconteceu ao meu pai e à minha avó, antes de concluir catalogação e leitura destas cartas.
Gosto imenso do seu blog
ResponderEliminarArtigos de Palheta.
EliminarMuito obrigado. Fico sempre feliz por saber que o escrevo agrada a quem está do outro lado do monitor.
um abraço
Caro Luís
ResponderEliminarO tempo foge de nós para dar tempo aos outros. O silêncio entre objectos dos que partiram é um silêncio sagrado, as nossas mãos se tornam pálidas e trémulas, por vezes frias e distantes, por vezes quentes e saudosas dedilhando as memórias que as iluminam, tentando dar sentido a tantas coisas que inanimadas, nos fazem sentir que tudo já passou. Um armário cheio de roupa, torna-se vazio pelo cheiro da ausência….Reduzidos e incapacitados de podermos alterar o fenómeno da morte, resta-nos cuidar dos despojos de uma vida dando o melhor que podermos num sorriso leve e discreto de cumplicidade selada de boas memórias. Essas cartas são as derradeiras palavras de quem as escreveu …cabe ao Luís lhes dar a voz que poderá ser intima ou de tribuna.
Abraço- vitor Pires
Caro Vítor
EliminarObrigado pelas suas palavras tão poéticas.
Receber este espólio é um desafio que me agrada imenso e certamente irei descobrir imensos factos novos sobre os meus antepassados. Sinto também que o meu pai gostaria que eu levasse este trabalho a um porto e ainda teve tempo para me passar um grande levantamento que fez sobre a velha casa familiar.
Mas mesmo tempo experimento uma angústia muito grande, perante tanta carta, documentos notariais e eventualmente não ter tempo ou capacidade para tratar, ler e compreender tudo. Estres trabalhos de documentação são sempre minuciosos e morosos.
Um grande abbraço
De certeza que vais ter muito que fazer, face à quantidade de material que te veio parar às mãos.
ResponderEliminarMas creio que será uma tarefa que, de certa forma, te vai dar muito prazer.
Tenho pena de não conseguir ajudar-te nesta tarefa, pois experimento sempre grande dificuldade em ler letras estranhas. Paleografia não é o meu forte, decididamente, mas tenho pena.
Gostaria de estudar documentos mais antigos, pois sou curioso face a estes testemunhos do passado, no entanto dou conta que sou um caso perdido.
Creio, no entanto, que com o estudo que sei, consegues fazer, poderás dar um avanço no historial da tua família, através da análise destes documentos, e muitos e interessantes posts irão derivar deste trabalho de "formiguinha".
Vai levar tempo, é certo, mas conseguirás.
Manel
Manel
EliminarEntretanto, depois de escrever este post, trouxe toda a documentação e acondicionei-a em caixas francesas e há muitas mais coisas do suspeitava. Além das cartas dos meus trisavôs, há documentos relativos ao meu quarto avô, documentação notarial do início do século XIX e ainda relativos ao lados dos Alves. Enfim, todo um mundo que vai reaparecer.
Embora seja um trabalho para se fazer só, irei muitas vezes pedir a tua ajuda, pois tu adoras cartas e és muito sistemático.
Um abraço
Meus sentimentos, Luís. História bonita a de seu pai. Os textos de d. Mimi devem ser interessantes! Sobre o quê escreveria ela?
ResponderEliminarUm abraço.
Jorge
EliminarA minha avô Mimi escreveu contos, pequenas crónicas em jornais e publicou ainda algumas palestras.
Alguns dos contos foram reunidos e publicados num livro intitulado Panorama da verdade em 1981.
Um abraço