Quando o meu bisavô, José Maria Ferreira Montalvão (19-05-1878/24-5-1965) morreu tinha eu acabado de dar os primeiros passos e não guardo nenhuma recordação dele. Durante muitos anos, achei que me lembrava do meu bisavô, uma figura patriarcal de barbas brancas, junto a um automóvel muito antigo. Hoje, sei que esse senhor velhinho era uma figura que eu compunha na minha imaginação, para ilustrar as centenas de histórias que me contaram acerca dele durante a infância.
O meu pai adorava o seu avô. Foi criado com ele até aos seis anos no Solar de Outeiro Seco e depois passou todas as suas férias da meninice e juventude naquela grande casa. As grandes casas rurais, com extensas propriedades são ideais para proporcionar a felicidade às crianças e o meu pai guardou daqueles tempos e do avô memórias impressionantes, que transmitiu aos filhos, vezes sem conta, e nós nunca nos importávamos de ouvi-las, ainda que já as fossemos conhecendo de cor.
Guardei assim um retrato mais ou menos idealizado do meu bisavô paterno traçado pelo meu pai, a que se somava a ideia romântica de o imaginar como o último habitante do solar, o derradeiro representante de um regime agrícola e social do antigo regime. Aliás, o meu bisavô tinha consciência disso e dizia-se muitas vezes ao seu neto, o meu pai, que era o último dos Montalvões.
O meu pai adorava o seu avô. Foi criado com ele até aos seis anos no Solar de Outeiro Seco e depois passou todas as suas férias da meninice e juventude naquela grande casa. As grandes casas rurais, com extensas propriedades são ideais para proporcionar a felicidade às crianças e o meu pai guardou daqueles tempos e do avô memórias impressionantes, que transmitiu aos filhos, vezes sem conta, e nós nunca nos importávamos de ouvi-las, ainda que já as fossemos conhecendo de cor.
Guardei assim um retrato mais ou menos idealizado do meu bisavô paterno traçado pelo meu pai, a que se somava a ideia romântica de o imaginar como o último habitante do solar, o derradeiro representante de um regime agrícola e social do antigo regime. Aliás, o meu bisavô tinha consciência disso e dizia-se muitas vezes ao seu neto, o meu pai, que era o último dos Montalvões.
O meu bisavô era filho de uma relação ilegítima entre uma Senhora Fidalga, a Maria do Espírito Santo (2-5-1856/18-3-1902) e de um pregador muito conhecido na época, o padre José Rodrigues Liberal Sampaio. Foi pois concebido com amor e certamente com paixão, o que talvez lhe tenha imprimido no seu carácter um certo gosto pelas coisas boas da vida, que possivelmente lhe faltaria, se fosse fruto de um casamento legal e conveniente, mas infeliz.
Relativamente à sua infância, Montalvão Machado (1888-1968) no seu livro 5 contos …em moeda corrente. . - Porto: Livraria Progredior, 1961, que narra com muitos devaneios literários (o que por vezes nos leva a duvidar da autenticidade das suas informações) os amores de Maria do Espírito Santo e Liberal Sampaio, adianta que o filho dos dois foi educado discretamente fora do Solar e só passado alguns anos, de forma igualmente discreta começou aos poucos a viver com a sua mãe. Na época, estas coisas eram frequentes e a bastardia era coisa corriqueira. Por exemplo, os dois maiores vultos da literatura portuguesa do Século XIX, Camilo Castelo Branco e Eça de Queiroz eram filhos ilegítimos. Como já expliquei noutros posts, a bastardia só se tornou uma ignomínia no século XX, durante o salazarismo, em que os costumes se apertaram.
Pelo retrato feliz que o meu pai traça do seu avô, não me parece que tenha sido um homem muito afectado pelo facto ser filho ilegítimo.
Na sua infância terá tido alguma doença grave, a que sobreviveu, pois a sua mãe fez uma promessa à Senhora da Azinheira e até aos quinze anos saiu vestido de anjinho na procissão, o que deve ter sido uma chatice para ele, apesar de aqueles tempos serem de profunda e inquestionável fé.
Em 1885, vai para Coimbra estudar e essa primeira viagem deve ter sido memorável para um miudinho de 7 anos. Terá ido a cavalo ou de Mula até à Régua, onde tomou por sua vez o caminho-de-ferro até ao Porto e depois finalmente até Coimbra. Informo-vos que a linha de comboio só chegou a Chaves em 1921!
Em Coimbra, ficará com o padre José Rodrigues Liberal Sampaio, que se encontrava também naquela cidade a fazer estudos universitários. Parece-nos pois o que Liberal Sampaio não se escusava às funções de pai.
No ano de 1897, o José Maria Ferreira Montalvão iniciou o curso de Direito na Universidade de Coimbra e terminou-o a 8-7-1902. Do seu curso fizeram parte nomes conhecidos como João Ulrich, Augusto de Castro, João Lúcio, Pires de Lima, João de Deus Ramos. Seria interessante consultar os espólios destes Senhores para encontrar fotografias de grupo de licenciatura, bem como cartas escritas pelo meu avô.
Pouco meses antes de terminar o curso, a 18 de Março morreu a sua Mãe, a Maria do Espírito Santo. Este acontecimento teve uma importância grave na vida destas pessoas que descrevo, pois três dias depois, o José Rodrigues Liberal Sampaio reconheceu publicamente na Conservatória seu o filho. Este facto permaneceu ignorado pela família até há bem pouco tempo. Foi a paciência do meu pai que o trouxe a luz do nosso conhecimento.
Em 1903 casa com 25 anos com uma senhora filha da melhor burguesia flaviense, a minha bisavô, Ana da Conceição Morais Alves, a irmã da tia Marica, de quem já falei aqui e deste matrimónio resultarão sete filhos, entre os quais se encontra a minha avô paterna, Maria do Espírito Santo, ou a Mimi.
O meu avô irá desenvolver a sua carreira na região de Chaves como magistrado, primeiro em Boticas e depois em Valpaços, mas segundo o meu pai, nunca sentiu grande gosto na profissão. Preferia de longe a administração da sua grande casa rural de Outeiro Seco. Creio que era um homem que se identificava com o campo e os formalismos jurídicos dos tribunais e a papelada oficial deviam aborrece-lo. Preferia certamente ver as árvores crescerem, acompanhar aqueles rituais rurais que se repetem eternamente como as sementeiras, as vindimas, ou as colheitas e falar com os camponeses, perguntar-lhe pelos filhos e falar na colheita da batata deste ano e como foi o ano passado e antigamente é que era.
No campo, o meu bisavô adorava também o prazer de caçar. Há imensas fotografia dele e da família em trajes de caçadores e com a bicharada que apanhavam. Era também um belíssimo garfo e comeu e bebeu bem até aos últimos anos da sua vida e morreu tarde com 87 anos. A mesa e os seus prazeres eram qualquer coisa de sagrado para ele. Dizia muitas vezes que quando estava sentado à mesa, não se levantava, nem que viesse o Rei (enfim, o meu bisavô era monárquico, embora não tivesse desenvolvido actividade política como o pai), Também, a sua mulher, a minha bisavô Aninhas era uma cozinheira esplêndida, que adorava ver os outros bem alimentados, apesar de ter passado anos numa dieta terrível e rigorosa, prescrita pelo médico por causa dum problema qualquer de saúde.
A impressão geral que se fica deste homem é que gostava da vida, dos prazeres da existência rural, da caça e da boa mesa.
O seu lado mais cómico era sem dúvida o da condução. Gostava de automóveis e no entanto era uma negação para o volante. O seu primeiro carro, um Darracq, modelo de 1901, comprado em segunda mão, (a fotografia apresenta o modelo original, que se conservou nas mãos da família) foi o primeiro veículo a ser visto em Chaves e deve ter sido um acontecimento tal, que catapultou num minuto os flavienses para a modernidade de Paris, a cidade da Luz. Depois teve um Opel, enorme, de 1931, com qual matou inúmeros coelhos, galinhas gatos e cães e tenho ideia de até ter ouvido falar dum burro! Contudo, indemnizava sempre escrupulosamente os proprietários dos bichos. Mesmo assim, não viajava sozinho e costumava levar o meu pai ou um dos criados para lhe servir de co-piloto. Tentou tirar também a carta várias vezes, mas parece que a coisa era de tal ordem, que os examinadores não hesitavam em reprova-lo, mesmo correndo no risco de desagradar a um dos maiores proprietários do Distrito de Vila Real. Conta-se que num dos exames, o júri mandou-o fazer uma marcha-atrás. O meu avô respondeu-lhe que não havia necessidade nenhuma de fazer marcha-atrás, que ele era muito rico para gastar dinheiro em gasolina e podia muito bem ir dar a volta toda aquela praça lá ao fundo, para voltar para trás.
O meu avô não herdou o gosto pela cultura do seu pai, o Liberal Sampaio. Não terá aproveitado como deve ser a esplêndida biblioteca, pejada de edições valiosas e interessantes da casa. Alias, só a sua filha, a minha avô Mimi, herdou a inclinação para as coisas mais espirituais do Padre Rodrigues Liberal Sampaio, um homem cheio de erudição.
O José Maria Ferreira Montalvão era também aquilo que nós hoje chamaríamos um bota-de-elástico, avesso a modernices e ao progresso tecnológico. Nunca instalou electricidade, nem água canalizada, nem mandou construir uma casa-de-banho no Solar de Outeiro Seco. Quando era preciso arranjar alguma coisa na casa, mandava sempre fazer um remendo ou arranjar uma solução provisória. Também nunca quis investir na indústria da telha, que ia crescendo nos arredores de Chaves e preferia cuidar dos seus campos, repetindo rituais herdados dos seus antepassados.
Este é o retrato que consegui traçar a partir das memórias e dos registos compilados pelo meu pai. Por vezes, experimentei dúvidas sobre a sua inteira veracidade, pois a admiração que o meu pai tem pela memória do avô pode-se facilmente definir-se por incondicional. Contudo, nos últimos tempos, o Humberto Ferreira, tem-me escrito, transmitindo-me as opiniões e as histórias que correm ainda em Outeiro Seco sobre o meu bisavô, passados 45 anos sobre a sua morte e que confirmam uma certa imagem de grandeza de carácter, transmitida pelo meu pai. As pessoas da aldeia falam com respeito do “Montalvão Velho”, que sabia ser justo e caritativo. Transcrevo aqui alguns testemunhos recolhidos ao acaso, nas muitas informações que o Humberto fez o favor de me enviar
Naqueles tempos a fome sentava à mesa de muitos dos nossos antepassados (da aldeia), havia muitas dificuldades e como eles dizem, ao chegar ao meio do ano já não tinham o que comer.
Então o Dr. Montalvão vendia centeio ou emprestava-o para que as famílias pudessem cozer o seu pão. Também fazia o mesmo em relação às batatas.
Também contam que pela época do Natal, o Dr. Montalvão mandava distribuir uma esmola pelas famílias pobres da aldeia que constava de um quartilho de azeite e um pão (e por vezes, também batatas). Quem estava incumbido de executar a tarefa de distribuir essas esmolas era o Sr. Lépido Ferrador.”
Ainda sobre esta esmola do Natal, diz-se que estando já muito doente no Hospital, pedia insistentemente para sair, porque os pobres precisavam da esmola dele.
Como conclusão, podemos arriscar que a sua morte, em 1965, com 87 anos, é mais do que falecimento de um homem com uma existência feliz, marca também o fim de uma grande casa agrícola, cujo modo de produção e vivência vinha praticamente da Idade Média. O seu desaparecimento significou a partilha da grande propriedade e a venda do solar, que entrou numa triste e imparável ruína.
O José Maria Ferreira Montalvão era também aquilo que nós hoje chamaríamos um bota-de-elástico, avesso a modernices e ao progresso tecnológico. Nunca instalou electricidade, nem água canalizada, nem mandou construir uma casa-de-banho no Solar de Outeiro Seco. Quando era preciso arranjar alguma coisa na casa, mandava sempre fazer um remendo ou arranjar uma solução provisória. Também nunca quis investir na indústria da telha, que ia crescendo nos arredores de Chaves e preferia cuidar dos seus campos, repetindo rituais herdados dos seus antepassados.
Este é o retrato que consegui traçar a partir das memórias e dos registos compilados pelo meu pai. Por vezes, experimentei dúvidas sobre a sua inteira veracidade, pois a admiração que o meu pai tem pela memória do avô pode-se facilmente definir-se por incondicional. Contudo, nos últimos tempos, o Humberto Ferreira, tem-me escrito, transmitindo-me as opiniões e as histórias que correm ainda em Outeiro Seco sobre o meu bisavô, passados 45 anos sobre a sua morte e que confirmam uma certa imagem de grandeza de carácter, transmitida pelo meu pai. As pessoas da aldeia falam com respeito do “Montalvão Velho”, que sabia ser justo e caritativo. Transcrevo aqui alguns testemunhos recolhidos ao acaso, nas muitas informações que o Humberto fez o favor de me enviar
Naqueles tempos a fome sentava à mesa de muitos dos nossos antepassados (da aldeia), havia muitas dificuldades e como eles dizem, ao chegar ao meio do ano já não tinham o que comer.
Então o Dr. Montalvão vendia centeio ou emprestava-o para que as famílias pudessem cozer o seu pão. Também fazia o mesmo em relação às batatas.
Também contam que pela época do Natal, o Dr. Montalvão mandava distribuir uma esmola pelas famílias pobres da aldeia que constava de um quartilho de azeite e um pão (e por vezes, também batatas). Quem estava incumbido de executar a tarefa de distribuir essas esmolas era o Sr. Lépido Ferrador.”
Ainda sobre esta esmola do Natal, diz-se que estando já muito doente no Hospital, pedia insistentemente para sair, porque os pobres precisavam da esmola dele.
Como conclusão, podemos arriscar que a sua morte, em 1965, com 87 anos, é mais do que falecimento de um homem com uma existência feliz, marca também o fim de uma grande casa agrícola, cujo modo de produção e vivência vinha praticamente da Idade Média. O seu desaparecimento significou a partilha da grande propriedade e a venda do solar, que entrou numa triste e imparável ruína.
Como nesta última fotografia o solar aparece lindíssimo! Rebocos caiados de branco, cunhais em pedra bem aparelhada e limpa, janelas com caixilharia de guilhotina, sob as quais, sei, apesar de não se verem, escondem-se as portadas igualmente pintadas, os óculos, poligonais, devidamente preenchidos por janelas, por trás das quais, sei também, existiam igualmente portadas, as urnas que ornamentam o topo da fachada, inteiras, e os telhados ainda completos.
ResponderEliminarEra impressionante!
Ainda se pode fazer o trabalho (que aliás muito me apraz nestes casos) de tentar "reconstruir" o tipo de pessoa/família que o habita!
Assim, e nesta sequência, há cerca de quatro anos, durante os vários dias em que, na tua companhia, percorri detalhadamente este solar, já totalmente arruinado, verificando dimensões, na tentativa de reconstituir a sua planta e alçados, adivinhando o que não existia, com base em fotos antigas e pelo que me ias dizendo, tentei perceber se alguma coisa tinha ficado do último ocupante, ou de quem quer que seja que, durante a sua história, o tivesse ocupado ... mas foi debalde ... não consegui; o fogo, o abandono, o vandalismo e a pilhagem quer do recheio quer das próprias pedras e cantarias ornamentais, as obras espúrias e contra-natura que alguém fez ou mandou fazer à custa de outras construções existentes, e a invasão que a natureza fez do local esconderam de vez alguma coisa que se conseguisse perceber sobre a personalidade e a história palpável dos seus habitantes.
Só restou a memória, que tu aqui deixas, e, não fora esta, devidamente suportada pela do teu pai e complementada com alguma da tradição local coligida pelo Humberto, então teriam sido séculos de história deitados na fogueira do esquecimento dos homens.
Sendo gente que concorreu na construção de um país, marcou uma época, vidas que explicam e alimentam a nossa história tanto a local como a nacional, tudo isto concorre para que se extravasem as fronteiras dos laços familiares e justifica o interesse que pessoas como eu, exteriores ao núcleo familiar, possa ter por toda esta história, o que, à primeira vista, poderia só interessar a um pequeno conjunto de pessoas ligadas pelo sangue.
Pessoas que não têm formação em história, como eu (não obstante estar imbuido de uma grande apetência por ela), também existem e apraz-me verificar que esta ciência, afinal, não está morta!
Um bem hajas pela iniciativa
Manel
Que optimas fotografias Luis!!!
ResponderEliminarQue sorte!
Cumprimentos do Teixeira
comprei uma casa que pertenceu a berta montalvão de lima barreto em foz-côa
ResponderEliminartem um brasão "brazão montalvão"
em azulejos
cumprimentos
spiedecor@gmail.com
Essa casa com o brasão dos Montalvão em azulejos não pertence à igreja?!!
EliminarInfelizmente não conheço essa casa em Foz-Coa, mas certamente que um brasão em azulejos deve ser coisa já do século XX. Um abraço
EliminarA casa de Fóz Côa com brasão em azulejo, de facto foi propriedade de tia de meu pai Berta Montalvão Figueiredo, que foi parar ás mãos da igreja por testamento de forma muito ‘estranha’. Tinha de facto brasão em azulejo como descrito. Uma das muitas propriedades que possuía por toda a região. Um abraço de Agostinho Montalvão.
ResponderEliminarCaro Agostinho Montalvão
EliminarTenho um retrato do marido de Berta Montalvão Figueiredo, Ramiro Augusto de Figueiredo, datado de 1903 e dedicado ao meu bisavô, José Maria Ferreira Montalvão. Se quiser posso-lhe enviar uma cópia digital. Um abraço