terça-feira, 8 de novembro de 2011

No céu da minha rua


Quando se mora na velha Lisboa, os fados de Amália Rodrigues soam de forma diferente do que num ambiente impessoal de uma grande urbanização dos anos 70 ou 80. Muitas das letras só se tornam realmente compreensíveis quando vamos comprar pão à rua do Capelão e na padaria está ao nosso lado uma velha prostituta, que recorda a Rosa Maria, a rosa já desflorada, que se ajoelha e reza no dia da procissão da Senhora da Saúde.

O céu da minha rua não chama, nem prende as atenções

Também da janela da frente minha casa vejo todos os dias um bocadinho de um fado da Amália. É uma rua muito estreita, sem sol, onde as pessoas vivem como numa colmeia. À semelhança do fado da Amália, os telhados abraçam-se fraternais e não deixam passar a o sol, nem o luar. Mal tal como na letra do fado, o sol não nega o troco lá em baixo a quem o estima, e quando desvio os olhos lá de baixo, da rua apertada e pouso o olhar em frente, surge-me o tejo em todo o seu esplendor, que todos os dias me devolve uma cor diferente. E essa vista reconcilia-me com o meu bairro barulhento, sujo e degradado e identifica-me com a minha cidade e o meu País.



Deixo-vos com o céu da minha rua por Amália Rodrigues:





No céu da minha rua

Da Alfama não chama,

Nem prende as intenções.

Às vezes nem a lua

Lá mora, embora

Lá chegue em seus clarões

Mutilados a telhados

Que se abraçam fraternais

E o céu da minha rua

recua, a lua
Limita-se aos beirais



Com Alfama céu não rima

Porque sempre o céu é pouco

Quando olhamos lá pra cima.

Mas o céu não nega o troco

Cá embaixo a quem se estima

Vai daí ser voz corrente

Que em Alfama toda a gente

Traz o céu no coração

É feliz por natureza

Ninguém pede mais riqueza

Que saúde, amor e pão!

14 comentários:

  1. Olá Luís
    Parabéns,amei o post.Brutal!
    Confesso que sentia saudades deste seu lado romântico,a mistura simbiótica do belo e do fantástico,música , Tejo, Sol e a cidade de Lisboa...agora que o inverno veio para ficar, esta beleza extasia a mente, aquece o coração, solta-nos para um novo dia melhor apesar de o ver pela vidraça acinzentado...ainda são 7,26H, possivelmente ainda não acordou, adoro levantar cedo para ver a nascer no Mar da Palha...hoje não foi dia!

    Sabe que a Diva a Amália Rodrigues fascina-me desde miúda...um domingo o meu pai mando-me trazer o Jornal o Século, habitualmente era o 1º de Janeiro depois da missa...na capa da revista a Diva envergava vestido comprido castanho árabe ornado a rendas e bem decotado...posava ao lado da piscina na sua herdade do Brejão...
    Isto para dizer que sou membro nº 12...sinto que fui "roubada" de lugar mais cimeiro...porque a pagar fui a 4...por ai... ASSOCIAÇÃO DIVA DO BREJÃO.
    Grupo abertoQualquer pessoa pode ver o grupo, os seus membros e o que estes publicam. adivabrejao@groups.facebook.com

    Beijos
    Isabel

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  2. Olá Luís

    O seu lado poético encanta, mesmo quando o (des)encantamento das ruínas de uma cidade impera. As vielas, as escadinhas, os encontros quase amorosos das varandas dos prédios, enternecem... Olhando o céu luminoso de Lisboa, por entre beirais e avistar o Tejo, enriquece a alma e reconcilia-nos com a vida.
    Um abraço
    if.

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  3. Estás no teu melhor quando entras pelo teu lado mais sensível a esta cidade que partilhamos.
    Sempre gostei muito das vistas da tua casa, perfeitamente fabulosas!
    Sei que é pequena, que te vês sempre a braços com a falta de espaço, que tens uma vizinhaça de meter medo, que a bicharada te invade o espaço, que o lixo impera pelas ruas, que para chegar aí é necessário subir até se ficar de língua ao canto da boca, que a tua escada só me faz lembrar a subida para o Purgatório, mas, quando se chega, finalmente, a tua casa, dá-se conta do trabalho hercúleo a que te deste para conseguires o teu pedaço de céu.
    É uma casa acolhedora e confortável, onde construíste o teu mundo
    Manel

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  4. Maria Isabel.

    Muito obrigado pelas suas simpáticas palavras.

    Sou um bocadinho enciclopédico. Gosto de tudo um pouco, faiança, gravura, arte sacra, porcelana, memórias familiares e por vezes de fazer umas incursões um pouco mais literárias como esta. Claro, há uma unidade que cola estes temas todos, o gosto pelo passado, pelas velharias, numa palavra, pela história.

    Por me dedicar a tantos assuntos, talvez não agrade sempre a todos. Talvez se me fixasse mais na faiança teria mais seguidores ou seria mais interessante enveredar sistematicamente por uma via mais literária ou poética como neste post.

    Mas, de facto, o enciclopedismo é uma marca determinante na minha personalidade e andarei sempre aqui a poisar de assunto em assunto.

    Não me canso de ouvir Amália. Creio que é daquelas cantoras que surgem cinquenta em cinquenta anos e apagam com o seu brilho todos os outros cantores do mesmo género, que lhes sucedem. E depois este fado da Amália há muito que me soava no ouvido, cada vez que espreitava da minha janela e depois foi só lembrar-me que estas fotografias colavam muito bem com o fado.

    Beijos

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  5. cara If

    Certeiras as suas palavras. Apesar do abandono, da ruína há uma beleza muito grande nestes becos, nestas calçadas escuras de onde por vezes se avista o azul deslumbrante do Tejo,

    Abraços

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  6. Muito obrigado pelo teu comentário, Manel.

    Fico sempre encantado pela forma como rediges.

    luís

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  7. Olá Luís,
    Quando estava para publicar o meu comentário perdi-o, e foi precisamente quando apareceram estas suas respostas, não sei se isso teve influência.
    Estava eu a dizer que da sua janela, para além do Tejo, vê-se o fado!
    Não sou grande apreciadora de fado, a não ser que o oiça numa casa castiça de Alfama, por exemplo, mas este tem uma letra muito bonita, muito poética.
    Já sabia que vivia no centro de Lisboa, mas agora vejo que mora mesmo no coração da Lisboa antiga e numas escadinhas, ainda por cima!
    Eu adoro percorrer ruas e ruelas nessas zonas, sempre que vou a Lisboa.
    Ainda na última vez andei com o meu marido pelas ruas da Mouraria, mas quando nos dispunhamos a subir em direção ao castelo um casal de moradores a quem pedimos uma informação aconselhou-nos a não nos embrenharmos muito por ali por causa dos assaltos. Devíamos andar com ar de turistas...
    Mas a verdade é que já não seguimos.
    Gostei muito de ver o céu e o chão da sua rua.
    Abraços

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  8. Maria Andrade

    Moro a cerca de 80 metros do Rossio, num bairro popular, muito lisboeta, com muita gritaria, sujidade, prédios degradados, mas com a tal beleza, com a tal musicalidade do fado.

    A Mouraria tem um lado mais perigoso, a Rua do Bem Formoso, a Caminho do Largo do Intendente, mas olhe eu já estou tão habituado que ando por lá loiro de cabelos ao vento. Claro, um dia tramo-me, mas entretanto tirei fotografias a uns prédios revestidos com azulejos nessa rua, que são um espanto.

    Abraços

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  9. Olá , Luís ! , deixe-me dar-lhe os meus parabéns por este post. Esse é o olhar que temos todos de lançar sobre o nosso país ...Devemos ver nele o belo que ele tem e receber dele a força para ir em frente.
    Um enorme BEM HAJA
    Quina

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  10. Luis,

    "Timeo hominem unlus libri." Advertia São Tomás de Aquino com um duplo sentido. Se poderia sugerir que o homem que só conhece um livro, mas que o domina bem e o conhece profundamente, é um adversário terrível,também poderia indicar, e talvez fosse este o sentido que quereria dar às suas palavras, que se deve temer aquele que baseiam o seu conhecimento numa única ideia, pensamento, doutrina, achando-se dono da razão, de modo a não haver o confronto de ideias, muito menos tem uma ideia completamente sua, porque a falta de outros conhecimentos, interesses, não lhe permitem o questionamento. Portanto o facto do Luis não se centrar num único tema só pode ser vantajoso para poder ter um entendimento global das coisas.
    E deixe-me dizer-lhe que o fado, e Amália, e Lisboa, fazem todo o sentido no seu blog, não só dedicado a antiguidades, mas também à tradição e à História. Felizmente tivémos a Amália para conseguir arrancar o fado aos estigma que carregava de género decadente, de má qualidade e ordinário. Refiro-me aos maus poemas que nunca fugiam muito à desgraçada que raquitica de fome foi abandonada pelo seu homem, ou as aventuras do "pintas" que conquista tudo o que use saia - não é que se tenham deixado de cantar, mas felizmente os poetas passaram a ser acompanhados pela guitarra. E não é que este fado, chamado "aristocrata" ou de "óperas" depreciativamente, não existisse já, até antes da Amália, mas era sobretudo o outro, o reles e ordinário que era passado.
    Para além disso, Lisboa é sempre Lisboa!

    Abraço

    C.

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  11. Caro C

    Belo comentário. Lisboa parece inspirar toda a gente.

    Concordo consigo, o enciclopedismo permite confrontar conhecimentos e significa a liberdade de espírito.

    A Amália cantou os melhores poetas, rodeou-se dos melhores músicos e era ao mesmo tempo erudita e popular. Via-a uma única vez ao vivo, num espectáculo único, que reuniu o António Variações com a Amália e fiquei impressionado. Em primeiro lugar, pela beleza da sua voz, apesar de já estar numa fase descendente e em segundo, pelas verdadeiras cenas de histerismo entre a assistência. Várias vezes algumas mulheres tipo povo invadiram o palco para a beijar e tiveram que ser retiradas por seguranças. Pensava que só os grupos rock conseguiam essa proeza, mas de facto a Amália era uma cantora especial.

    E depois apesar de muitas imagens do fado serem lugares comuns, nos velhos bairros lisboetas eles ainda fazem sentido. E claro, com estas fotografias pretendo sempre mostrar que as casas velhas são bonitas, que estes bairros tem que ser recuperados e que a nossa originalidade está aqui.

    Abraços

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  12. Cara Quina

    É sempre um gosto te-la neste blog e ler as suas palavras simpáticas.

    Um grande abraço

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  13. Pois como hoje, mais do que nunca, estes céus de que fala fazem sentido para mim!
    Num dia em que os céus de Lisboa, que eu não via desde o ano em que Win Wender filmou o filme de nome parecido com o assunto, hoje amanheceu enevoado, bem encoberto, me brindando com um clima triste e delicioso para começar o dia, e depois se escancarou num azul de doer a alma de tão lindo, me brindando com um sol quente e feliz, enquanto eu andava a caminho de conhecer em pessoa um querido amigo que fiz por esta rede de apreciadores de velharias, amigo este agora ainda mais querido, depois de uma fabulosa visita guiada particular pelos salões magníficos e ricos de deleite aos olhos do Museu de Arte Antiga.
    Obrigado, Lisboa! Obrigado, Portugal!
    abraços

    ps: fico assim quando meus gens se reconectam via um wireless mágico com suas origens.

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  14. Fábio

    Foi um prazer conhecer-te. Achei-te um homem civilizado, culto e muito curioso. Foi também interessante conhecer as colecções do maior museu português pelos olhos de um brasileiro. Fizeste perguntas que um português não faria, que me deixaram a reflectir sobre as respostas.

    Foi realmente um prazer

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