Esta peça pertencente ao Manel é um contador e é um dos móveis emblemáticos da originalidade, que o mobiliário português alcançou no século XVII, diferenciando-o dos congéneres europeus.
Contador holandês da Casa Museu Anastácio Gonçalves |
Nos Países Baixos e na Flandres também fabricaram contadores pintados muito bonitos. Em França, os marceneiros executaram os cabinets e os seus colegas espanhóis, os bargueños, móveis equivalentes ao contador.
Gabinet do Musée de Dijon |
Bargueño do Palácio Nacional de Sintra |
Mas os contadores portugueses, embora tenham adoptado a moda dos torneados holandeses, distinguem-se dos contadores europeus, em primeiro lugar porque não tem portas e depois porque são sempre feitos em madeira escura, o pau-santo, que vinha do Brasil.
As cores escuras do pau-santo a contrastar com as ferragens douradas. |
São decorados com ferragens douradas em forma de filigrana, uma influência da Índia, que aplicados no pau-santo, uma madeira muito escura, fazem um contraste que é exclusivamente português. Um contador português não se confunde com contadores franceses, espanhóis, holandeses ou alemães. Aliás esta originalidade estende-se a todo o mobiliário português século XVII, de tal forma que o historiador de arte americano Robert Smith designou o mobiliário desse período como o estilo nacional português.
As ferragens douradas recortadas |
A singularidade deste estilo do século XVII é sem dúvida consequência das influências exóticas recebidas em Portugal por via dos descobrimentos portugueses
Os contadores com a forma que vemos nesta peça do Manel foram manufacturados em Portugal a partir da segunda metade do século XVII e pelo século XVIII fora. Posteriormente, nos finais do século XIX, terá havido um revivalismo deste mobiliário seiscentista e tornou-se outra vez moda mobilar escritórios ou salas de jantar à moda do Século XVII. O contador do Manel deve ser um exemplar dos finais do século XIX, feito ao gosto da segunda metade de seiscentos.
O Saial com um anjinho e as pernas com as chamadas bolachas |
O Contador como o nome indica é um móvel destinado a servir a actividade de contar. Consequentemente, apresenta muitas gavetinhas, que serviam para guardar dinheiro, valores ou documentos comprovativos de receita e despesa, notas de dívida e outros documentos de contas.
O sistema de gavetas |
Este contador do Manel é chapeado a pau-santo, apresentado-se a estrutura do móvel e as gavetas em outra madeira. Sendo umamaterial muito duro, difícil de colar ou fazer malhetes com ele, o pau-santo é normalmente usado em forma de chapas, revestindo outra madeira que serve de esqueleto. O chapeado distingue-se do folheado por ser mais espesso do que as simples folhas.
Os típicos tremidos do contador português |
Este contador tem também uma particularidade curiosa. Pertenceu em tempos a um ramo da família Montalvão, os descendentes do General Celestino Santos Silva, que estiveram ligados a Timor e a Macau. Depois, da morte da última proprietária foi parar a uma casa de velharias próxima ao apartamento do Manel, que o comprou e está agora na sua casa do Alentejo.
Para quem quiser saber mais, recomendo a leitura da obra Mobiliário português: roteiro: Museu Nacional de Arte Antiga. Lisboa: IMC, 2000.
Olá Luís,
ResponderEliminarÉ um móvel magnífico este contador do Manel!
E foi uma circunstância muito feliz ele ter sabido da ligação a um ramo da família Montalvão. Assim, conhecendo-se a proveniência, fica-se a saber parte da história do móvel, o que lhe acrescenta valor, na minha perspetiva.
Gostei muito da forma como o Luís mostrou e fez o paralelismo com contadores de origem não portuguesa, todos muito bonitos mas bem diferentes dos nossos.
Estes móveis de pau-santo e tremidos, sobretudo contadores e mesas bufete têm efetivamente uma identidade portuguesa e em qualquer livro ou catálogo de antiguidades estrangeiro que inclua mobiliário – por exemplo os Miller’s Antiques Price Guides - são geralmente estes móveis que representam o mobiliário antigo português.
Neste, gostei muito do pormenor do anjo e das ferragens impecáveis. O trabalho de restauro do Manel deixou o móvel com um aspeto soberbo.
Muitos parabéns!
Abraços
É curioso verificar que os "tremidos" aparecem no século XVII por influência dos Países Baixos, onde, naquele período, tinha sido introduzida a plaina de tremidos.
ResponderEliminarA importação de peças daquela região, graças ao intercâmbio que existia entre Portugal e a Flandres, introduziu elementos fundamentais para o desenvolvimento do nosso mobiliário, não só ao nível dos elementos decorativos como também, por exemplo, no desenvolvimento do "armário".
Assim, os tremidos, à semelhança das volutas na arquitectura, pensa-se, constituem elementos decorativos introduzidos no nosso mobiliário, elementos que, a par dos torneados, definem por excelência o nosso mobiliário barroco.
Quanto ao desenvolvimento do próprio contador em si, julgo, e é uma teoria minha, terá derivado da arca medieval, móvel transportável, e que continha, escondidos no seu interior, escaninhos onde se guardavam objectos de valor, mais pequenos.
Estas arcas, em períodos posteriores, ganham gavetas, as quais já não se escondem no interior do móvel, mas abrem-se pelo alçado frontal, como as gavetas de uma cómoda.
Um pouco mais tardias que estas arcas, e também à sua semelhança, apareceram igualmente uma espécie de escritórios, mais pequenos, e igualmente transportáveis, com uma série de gavetas no seu corpo.
É de salientar que móveis mais antigos, deste tipo, possuíam ferragens em ferro, as quais são de uma fantástica simplicidade rústica.
Estes escritórios (caixas), ao desenvolverem uma estrutura inferior onde se apoiam e que lhes serve apoio (trempe), passam a designar-se por "contadores".
Aliás, é comum verificarem-se contadores com trempes e caixas que não foram executadas em simultâneo, sendo a trempe mais recente e de estilo diferente do da caixa.
Estes escritórios/caixas possuem muitas vezes um batente frontal, que esconde as gavetas, o qual, quando se abre, transforma-se numa superfície para escrever (como é exemplo o bargueño que apresentas, e que pertence ao Palácio Nacional de Sintra).
Nos nossos escritórios e contadores, raro se vêem estes batentes, sendo estes elementos mais comuns nos móveis espanhóis os quais, compreensivelmente, durante o período filipino, nos influenciam, aparecendo muitas vezes nos escritórios ditos indo-portugueses.
Este contador aqui apresentado pertence ao tipo que Robert Smith classifica como "Estilo Nacional Português", o qual teve início no final de seiscentos, princípios de setecentos.
As madeiras exóticas entram no nosso léxico (os móveis portugueses anteriores, deste tipo, eram fabricados em madeiras mais comuns no território), as ferragens deixam de ser em ferro, e passam a ser em metais dourado: cobre dourado, latão dourado, tambaca ou mesmo simples latão (como este meu), que fazem um contraste lindíssimo com os tons quentes, mas escuros, venados, das madeiras exóticas.
As ilhargas deste meu, ainda que não projectadas em chanfre como era usual nos primitivos, são fortemente almofadadas, à semelhança das gavetas (sempre à vista, como era uso nos móveis portugueses), e a par disto, todo o léxico do nosso barroco: as decorações em tremidos e ondeados, o trabalho de torno, com as bolachas, espirais, discos, esferas, até mesmo uma banda esculpida a coroar a trempe.
Mas não creio que ele seja muito antigo, talvez possa ter sido produzido por volta de meados de oitocentos, finais, o mais tardar.
Lá me perdi eu em história do mobiliário, mas o assunto é-me caro ... desculpa
Manel
Oi Luis
ResponderEliminarAqui no Brasil esse tipo de moveis com influencia portuguesa é muito comum de se encontrar em escritórios, livreiros, salas de jantar... Ele teve uma espécie de renascença por aqui no século XX quando havia se tornado o auge e era chique ter em casas burguesas moveis no estilo antigo como no Manuelino e renascentista
Eu possuo uma cristaleira no estilo manuelino com uma pequena diferença nos entalhes a minha foi feita em 1920 numa madeira chamada Imbuia
Se quiser posso enviar algumas fotos de moveis nesse estilo criados aqui no Brasil
Até mais
Ricardo
Maria Andrade
ResponderEliminarO mobiliário português do século XVII é de facto original. A propósito das suas palavras, acrescento que, em Espanha designam as cadeiras de couro lavrado desta época como "portuguesas".
Os contadores, cadeíras, bancos, arcas, camas de bilros e bufetes do século XVII português apresentam um estilo pesado, sólido, mas original. A Minha avó adorava peças deste tipo e hoje associo-lhe sempre este estilo. Recorda-me o cheiro da casa dela e a minha infância
Abraços
Abraços
Manel
ResponderEliminarPerdeste-te muito bem. Acrescentas-te com a tua sabedoria um contributo importante a este post, sobretudo quando explicaste a origem do contador nas arcas portáteis, levadas em cima das burras, que transportavam a colecta de impostos, o tesouro real, ou a tesouraria do mercador durante a Idade Média.
Faltou falar no correcto trabalho de restauro que mais uma vez fizeste.
Caro Ricardo
ResponderEliminarUma das coisas mais gratificantes deste blog é a presença de seguidores brasileiros. Estes amigos do outro lado do atlântico fizeram-me ver como ainda estamos próximos uns dos outros.
A moda de copiar os móveis do Século XVII nos finais do Séc. XIX e na segunda métade do XX tem a ver com uma certa vaga nacionalista. As famílias burguesas brasileiras ou portuguesas querem demonstrar o orgulho na sua história, mobilando as suas casas com móveis ao estilo de períodos da história mais gloriosos que os do presente. Essas famílias querem demonstrar que tem uma cultura diferente da americana, francesa ou inglesa.
Pode sempre enviar as fotografias que quiser parea o meu e-mail, que está no meu perfil.
Abraços e volte sempre
Luís
ResponderEliminarEste contador é dos mais elegantes e bonitos que tenho visto. O contraste entre os dois tons de madeira, as ferragens e o primoroso saial tornam-no numa peça fantástica. Se juntarmos a isto, a curiosa coincidência de, antes de ser pertença do Manel, ter pertencido a um ramo a família Montalvão, temos uma daquelas peças de mobiliário únicas e carregadas de história.
Parabéns ao Manel, por tão bela peça.
Abraços para si
Maria Paula
Maria Paula
ResponderEliminarEstes contadores só por si fazem uma sala e o Manel fez um belo trabalho de restauro. Julgo que ele não se importará com a publicidade gratuita.
A história de cada peça é uma coisa fascinante. Ultimamente trabalho na biblioteca de um museu e os meus colegas conservadores tem uma verdadeira preocupação em traçar a história de cada objecto, que por vezes é complicada e decorre ao longo de quatro séculos e eu fico sempre fascinado com esse trabalho de pesquisa que desenvolvem.
Abraços
Agradeço as referências tão simpáticas ao móvel e ao trabalho de restauro, que realmente me correu bem, mau grado não saber muito bem como lhe pegar, de início ... no entanto, depois, as ideias começaram a chegar e foi só pô-las em prática
ResponderEliminarManel
Olá Luís
ResponderEliminarMuito elucidativo o seu post e bem integrado na congénere produção europeia.
O contador do seu amigo está muito bem restaurado e demonstra o espírito revivalista do século XIX. É bem um exemplo do trabalho holandês,tão bem representado nos móveis que produziram, como os armários, os bufetes, as mesas e os contadores.
O contador português poderá derivar dos escritórios quinhentistas, tão apreciados, quer pela sua decoração, quer pela sua funcionalidade. No entanto, os portugueses apresentam algumas diferenças, bem evidentes pelas gavetas,dispostas frontalmente, e por assentarem numa mesa (trempe).
Os requintados contadores produzidos na Alemanha e na Áustria e somente acessíveis a famílias mais endinheiradas,começam a ser imitados no Oriente. A sua produção pode dever-se a artesãos orientais (sob modelos idos da metrópole) que os copiavam nas suas oficinas, a artistas portugueses estabelecidos em Goa e outras cidades ou ainda a artesãos orientais trazidos para Portugal e que aqui os executavam.
As ricas madeiras (ébano, teca e sissó) em que eram trabalhados,a decoração exótica e o embutido minucioso tornam-nos apetecíveis até pelas famílias reais, como foi o caso da austríaca e francesa.
Uma das originalidades da produção portuguesa foram os contadores ditos de "capela", por rematarem em forma triangular. Sobre estes pode ler-se o artigo de Francisco Hipólito Raposo, publicado na revista Oceanos, nº 19-20, de Novembro de 1994.
E mais não me alongo.
Cumprimentos
if.
Cara If
ResponderEliminarAlongou-se muito bem!!!
É engraçado, como através destas peças portuguesas é possível traçar, tal como a If o fez, a histórias das trocas comerciais e de ideias na Europa, bem como com o Oriente e as Américas.
Abraços e obrigado pelo alongamento
Tenho um contador herdado de uma tia avó, pertencente ao avô dela mas necessita de alguns restauros. Moro no Note do País e sei que há gente que o faz mas tenho receio de o entregar em mãos desconhecidas. Pode aconselhar-me alguém?
ResponderEliminarObrigada
Inês Vasconcelos
cara Inês
EliminarO dono deste contador faz restauro de mobiliário, mas está aqui em Lisboa. Se conseguir transportar o móvel aqui para o Sul, ele está disponível. No Norte não conheço ninguém, mas sugiro-lhe que escreva um e-mail para o Museu Nacional de Soares dos Reis, no Porto, a pedir o favor de lhe indicarem os contactos de restauradores de mobiliário aí no Norte. Certamente que no Museu trabalharão com gente de confiança.
Um abraço
tenho exactamente igual no alto pagina e gostaria de saber o seu valor no mercado
ResponderEliminarCaro Vítor Mango
EliminarEste é um blog de coleccionismo, de memórias familiares e de história. Não sou antiquário e também não comercializo antiguidades. Claro, em algumas áreas como a faiança ou porcelana tenho uma ideia dos valores do mercado, mas não é o caso do mobiliário.
Sugiro-lhe que pesquise nos catálogos das leiloeiras, por exemplo a Cabral Moncada, que normalmente estão on-line e procurar estes contadores dos finais do século XIX ou inícios do XX e saber porque preço são vendidos.
Um abraço
Estes contadores são também chamados de "burra" e daí deve provir o dito "estar com a burra cheia".
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