segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Galheteiro malegueiro

Hoje, a nossa amável seguidora presenteou-nos com um galheteiro todo branquinho, muito representativo de um género de faiança utilitária comum em Portugal e que é conhecido pelo nome de Malegueira.

Chamou-se Malegueira porque as primeiras faianças, que chegaram com abundância a Portugal vieram da cidade espanhola de Málaga e caracterizavam-se precisamente por serem todas branquinhas (O nome Malga deriva desta loiça). A partir do século XVI, começou a ser imitada no nosso País e desde essa época, a louça malegueira, branca e com nenhuma ou escassa decoração passou a ser produzida abundantemente, até ao principio do Século XIX. Com era branca e pouco ou nada ornamentada, a faiança malegueira era barata e destinada ao uso corrente dos conventos, das casas fidalgas, das boticas ou então para as casas dos menos abastados.

Aqui a inscrição Mafra não se refere a nenhum fabricante, mas sim ao cliente. As grandes casas religiosas encomendavam às oficinas de faiança grandes quantidades de loiça para uso corrente com o nome ou as insígnias da Ordem

Para os grandes dias e para a mesa dos abades, abadessas e madres superioras usava-se porcelana da china, bem entendido.

No site dos museus do Ministério da Cultura, o Matriz, encontrei duas peças com as mesmas marcas, um Púcaro (inv 1277) e um Cântaro (inv 765), pertencentes ao Palácio Nacional de Mafra e que estão datados do século XVIII

Para fazer este texto, usei como fonte de referência o excelente Faiança portuguesa: roteiro: Museu Nacional de Arte Antiga. - Lisboa: IPM, 2005

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Clotho: a mais nova das parcas


Esta estampa francesa representando Clotho é uma das minhas peças preferidas da casa do Manel.

Apesar de estar aqui representada com um luxuoso vestido de seda, próprio para um baile na corte em Versalhes, esta Clotho é uma das parcas, figuras temíveis e muito pouco simpáticas da mitologia greco romana, que presidiam aos destinos dos Homens.

Segundo a tradição clássica, as Parcas eram três irmãs, Clotho, Lachésis e Atropos e detinham o fio misterioso, que simbolizava o curso da vida humana e eram por isso representadas como fiandeiras.
Clotho tecia o fio da vida, Lachésis enrolava o fio no fuso e Atropos cortava o fio. No fundo, a primeira criava a vida, a segunda tratava da prossecução da vida e a última punha-lhe fim, com uma simples e precisa tesourada. (Ver imagem superior de Giovanni Battista Paggi)

Esta tradição da mitologia clássica sobreviveu no português actual, pois usamos na nossa linguagem corrente, muitas vezes expressões como “tecer o destino”ou o “frágil fio da vida”, mesmo que não saibamos, que estas metáforas tem origem no mito destas terríveis mulheres.
Esta Clotho sempre me fascinou por causa do realismo com que é representada a seda do vestido. Não é fácil representar as texturas e o cair dos diferentes tecidos. Sei disso, porque em jovem interessei-me por moda, comprei livros sobre desenho de figurinos e cheguei a pintar muitos croquis de vestidos, mas a seda era sempre representação difícil. Contudo, nesta estampa, ao olharmos para o vestido da Clotho, o artista conseguiu a proeza de nos fazer ouvir o frufru da seda de um vestido de corte, num salão de baile revestido a espelhos venezianos.

Fascinado com a Clotho, procurei saber mais e pesquisei sobre o impressor, o Monsieur Mariette. Fiquei um pouco confuso porque descobri que Mariette é o nome de família de uma dinastia de impressores, livreiros e coleccionadores, que tiveram a sua oficina em funcionamento nos séculos XVII e XVIII, em Paris, na Rue de S. Jacques. Esta rua fica na Rive Gauche e hoje é uma artéria, que a remodelação urbanística do Século XIX, de Haussman, tornou insignificante

Existiram portanto três senhores Mariette , primeiro, o Pierre Mariette, (1603-1657), o segundo Jean Mariette (1660-1742) e o terceiro, Pierre-Jean Mariette (1694–Paris 1774), o mais famoso de todos, que além de livreiro e impressor, foi um coleccionador famoso e crítico de arte.
Estava pois na dúvida sobre qual dos Mariettes tinha impresso esta estampa e fiz uma pesquisa mais aturada no site da Bibliothèque nationale de France e acabei por descobrir que o responsável por esta Clotho foi o Monsieur Jean Mariette (1660-1742), cujas obras tinham sempre esta assinatura característica I. Mariette, com o sinal identificador aux colonnes d'Hercules.

Presumindo que o Monsieur Jean Mariette tenha começado a assinar as suas próprias obras com cerca de vinte anos de idade, podemos datar esta gravura entre 1680 e 1742.

Estava resolvido o problema da autoria, mas resolvi ir um pouco mais além e tentar saber se esta estampa pertenceu a um livro, ou se o Jean Mariette foi um mero executor de desenhos dos outros. Não encontrei a resposta a estas perguntas, mas também na La Bibliothèque nationale de France, encontrei mais uma estampa com a sua assinatura, Madame de *** en Magdelaine, que retrata uma dama de corte, despojando-se das suas jóias como Maria Madalena fez outrora e o tratamento dos tecidos é exactamente igual ao da Clotho. A mestria inacreditável no tratamento dos tecidos luxuosos parece ser característica da obra de Jean Mariette

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Prato da Fábrica da Bandeira(?) ou minha mãe mandou-me à fonte e eu parti a cantarinha


A nossa seguidora misteriosa continua decidida a alimentar-nos todos a pão-de-, enviando imagens de peças de faiança fantásticas.

Desta vez, enviou-nos um prato com uma cena deliciosa, representando uma rapariga numa fonte, com dois cântaros e um ar pensativo. Já tive ocasião de explicar neste blog, que no passado ir à fonte era o único momento de liberdade das raparigas, ocasião para namoriscar e dar uma escorregadela perigosa. A coisa era de tal maneira, que a expressão partir a cantarinha tornou-se sinónimo de perder a virgindade. A velha canção infantil “minha mãe mandou-me à fonte e eu parti a cantarinha, ó minha mãe não me bata que eu ainda sou pequenina..." faz eco dos costumes desse tempo e bem podia ser a banda sonora que acompanha a cena deste prato irresistivelmente ingénuo.

No entanto, há também a hipótese de esta cena representar a Maria da Fonte, cuja revolta se deu provavelmente na altura em que este prato foi produzido. De facto, era hábito no século XIX as oficinas de cerâmica produzirem pratos representando os acontecimentos marcantes ou em voga. Os melhores exemplos disso são os pratos e estatuetas dos "meninos gordos", que representavam umas crianças muito gordas, a Ana e o Mateus, que foram exibidos pelas feiras e circos como curiosidade, entre 1840 e 1842 (Ver imagem enviada pelo Fábio Carvalho). As peças de faiança com os meninos Gordos são na sua maioria produzidas pelas fábricas do Norte, entre as quais a da Bandeira e portanto é de todo plausível que essas mesmas manufacturas se tivessem lembrado de fazer um prato com a Maria da Fonte.
E de facto, houve mais pratos a serem produzidos com esta jovem com a cantarinha ou Maria da Fonte, conforme se pode ver neste exemplar que o Mercador Veneziano me enviou, reproduzido do catálogo de um leiloeiro.

O Fábio Carvalho ainda conseguiu descobrir na net mais uma variante deste prato da Maria da Fonte ou da jovem que vai à Fonte. Difere dos outros dois pelas ramagens da árvore que serve de pano de fundo à cena.


Em termos de identificação do fabricante o prato não está marcado, mas já percebemos pelos exemplos acima mostrado a que fábrica é atribuído. No site matrizpix, o inventário fotográfico das colecções dos museus nacionais encontrei ainda dois pratos do Museu Nacional de Soares dos Reis, inv. 1104 e inv 1087 (fotos inferiores na ordem respectiva), muito semelhantes a este, quer ao nível das cores, quer da decoração floral da cercadura, atribuídos à Fábrica da Bandeira e datados do Século XIX. Podemos atribuír com segurança o prato da moça na fonte à Fábrica da Bandeira.

A fábrica da Bandeira situava-se em Vila Nova de Gaia e terá estado activa entre 1840 e o início do século XX. As suas produções confundem-se muitas vezes com as de Fervença.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Prato e galheteiro em faiança de Estremoz

A nossa seguidora continua a presentear-nos com as peças da sua colecção de faiança. Desta vez enviou-me por e-mail um prato e um galheteiro atribuídos a Estremoz.

Não se sabe grande coisa da Fábrica de Estremoz. Terá laborado entre 1773/4 e 1808. Até há pouco tempo pensou-se que existiram duas oficinas distintas. Hoje acredita-se outra vez, que só houve uma fábrica, mas com dois períodos bastante diferenciados entre si.

Na primeira fase, trabalhou o mestre Sebastião Gavixo (1773/74 a 1775), que tinha aprendido a sua arte no Porto e na Fábrica do Rato e portanto a primeira produção caracteriza-se pelo uso da flor do morangueiro e das faixas de Ruão. Uma parte dessas peças tem a a marca CX ou Estremoz.

A segunda fase dos mestres José Freme da Roza e Joaquim Freme da Roza (1773/74 a 1808.) caracteriza-se pelo domínio da policromia, com o uso de muitos motivos florais miudinhos, geométricos e umas pequenas paisagens muito delicadas. A fábrica terá terminado com a entrada dos franceses em Estremoz em 1808.

As peças da nossa amiga são nitidamente do segundo período.

No catálogo, Cerâmica neoclássica em Portugal. – Lisboa: IPM, 1997, consta um prato do Museu Municipal de Portalegre, inv 629, praticamente igual ao da nossa amiga e que está datado entre 1795 e 1808 (foto inferior).


Quanto ao galheteiro, no mesmo catálogo encontrei uma leiteira do Museu Nacional de Arte Antiga, inv 2365 com um mesmo ar de família e igualmente datado entre os anos de 1795 e 1808.
Embora vivendo nas terras de Vera Cruz, mas conhecedor de tudo o que é site sobre faiança, o Fábio Carvalho enviou-me uma imagem de um galheteiro, também atribuído a Estremoz, que saiu publicado no catálogo duma leiloeira lisboeta.
À laia de conclusão, podemos adiantar que Estremoz tal com Miragaia, Viana, o Rato, Sto António do Vale da Piedade, ou Massarelos, foi mais uma das muitas manufacturas criadas no ambiente favorável das reformas pombalinas e que prosperaram ao longo do reinado de D. Maria. Todas elas entraram profunda em crise com as invasões francesas, mas conseguiram sobreviver com muitas dificuldades, uma parte delas pelo menos até meados do século XIX, excepto Estremoz, que soçobrou de imediato.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Mais faianças do Museu do Açude: Miragaia


No ficheiro de imagens enviado pelo Fábio sobre a Colecção do Museu do Açude, no Rio de Janeiro constavam duas peças Miragaia, datadas do chamado segundo período de laboração da fábrica, isto é, entre 1822-1850.

A primeira é um vaso de faiança em tudo semelhante, à que existe na antiga casa de Manoel Baltazar da Cunha Fortes, na cidade de Ubatuba, estado de S. Paulo, aqui reproduzido em 22-10-2010
E também idêntico aos exemplares apresentados na exposição sobre a fábrica Miragaia, propriedade da Confraria do Santíssimo Sacramento de Miragaia, no Porto (imagens inferiores na ordem respectiva), igualmente reproduzido no blog, em 22-10-2010



Só a cercadura superior do exemplar do Museu do Açude difere das outras peças já mostradas em 22-10-2010. Tal como as outras, pertence a chamada série País, que dominou a produção do segundo período de laboração de Miragaia.
A segunda é uma a esfera também destinada a ser colocada num alto dum edifício, por cima duma balaustrada ou a ladear um portão e está também marcada Miragaia.
Esta peça aparece reproduzida no catálogo Fábrica de Louça de Miragaia, Lisboa: IMC, 2008, p. 103, embora não constasse da exposição. A autora do texto, Margarida Rebelo Correia, afirma que nunca viu nenhum exemplar semelhante em Portugal. Talvez os leitores do Porto e da Região Norte consigam descobrir no alto das casas antigas das suas terras peças idênticas a esta. Prometo publica-las no blog.

Pelo lugar onde estão, ambas as peças provam que a portuense Fábrica de Miragaia fazia muito bons negócios com o Brasil

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Là-bas, là-bas, de l'autre côté du miroir


Espelhos nunca são demais numa casa pequena. Reflectem, aumentam os espaços e criam janelas, que se abrem para outros mundos, que só na aparência são iguais a este.

Este espelho pertenceu à minha avô Mimi, que o terá mandado fazer em Braga, aos Mouras, nos anos 40 e apresenta-se no chamado estilo D. João V, com os concheados característicos daquele reinado. Fazia parte de uma mobília de quarto completa, toda em D. João V, que foi repartida entre mim e os meus irmãos.

Quando o recebi estava pintado de um dourado esverdeado bastante feio. Uma vez raspei-o ao limpa-lo e percebi que havia uma tinta dourada mais brilhante por baixo. Julgo que a minha avó quando o recebeu, achou-o demasiado brilhante e mandou-o escurecer, só que o resultado foi qualquer coisa de híbrido e desinteressante.

Um dia, estava a avivar com guache os dourados de uma peça antiga e por curiosidade experimentei usar aquela tinta no espelho num dos adornos laterais. Ficaram com um reflexo bonito. O Manuel também gostou e como tem um olho clínico para o restauro, aconselhou-me a repinta-lo integralmente. Assim o fiz a três tons de dourados, um muito vivo, outro em ouro velho e outro com cambiantes de vermelho. Os tons mais vivos foram para os frisos, os intermédios para preencher as superfícies maiores e o avermelhado para o interior das conchas, criando assim zonas de diferentes brilhos.

O espelho ganhou uma vida nova e agora reflecte o pequeno mundo de velharias da minha casa, transformando-o por efeitos de luz e óptica num outro mundo, que apetece visitar, atravessando o espelho para o outro lado

Là-bas, là-bas,
De l'autre côté du miroir,
J'aimerais tant qu'on m'y porte,
Qu'on s'y voit, qu'on y passe,
Oh, oh que je voudrais que l'on m'y porte,
Avant que quelqu'un ne le casse,
Là-bas, là-bas,
De l'autre côté du miroir,

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Outra vez a faiança Ratinho

A nossa seguidora, que acedeu amavelmente mostrar o magnífico prato de faiança neoclássico em amarelos e verdes, enviou-me também por e-mail três pratos Ratinho, com o intuito de eu os apresentar no blog.

Quando recebi as imagens, fui logo à estante buscar dois ou três manuais, para me rever o que já tinha lido sobre esta faiança produzida em Coimbra, mas confesso que perdi um bocado a vontade de descrever estes pratos e apeteceu-me mais ficar a contempla-los. A sua primitiva beleza é tão forte que as imagens valem por si, tornando as descrições meramente acessórias

Mas como o objectivo deste blog é didáctico, isto é, pretende ajudar o amador a identificar as velharias, antiguidades e velharias que tem lá em casa, aqui vai qualquer coisa para ajudar a enquadrar estas loiças

Segundo a Cerâmica de Coimbra: do Século XVI – XX / de Alexandre Nobre Pais, João Coroado, António Pacheco. Lisboa: Edições Inapa, 2007, a decoração da faiança Ratinho, poderá classificar-se genericamente desta forma:

-zoomórficos (os animais), vegetalistas (plantas) e geométricos, que são os mais antigos.
-figuras populares, masculinas ou femininas, figuras fantásticas, caricaturas e retratos.

Os dois primeiros pratos, doze flores e flor do linho (foto inferiores na ordem respectiva), estão no grupo dos vegetalistas e serão os mais antigos.






No catálogo António Capucho: retrato do homem através da colecção: cerâmica portuguesa do século XVI ao século XX. - Porto: Livraria Civilização Editora, 2004 é reproduzido um exemplar daquilo que a nossa seguidora chama decoração Flor do Linho. Nessa obra o prato em causa é designado por pré-ratinho e datado do 2º terço do Século XIX (foto inferior).


O terceiro pertence ao segundo grupo, à subcategoria dos retratos (foto inferior). Confesso que nunca tinha visto um exemplar desta última subcategoria. No referido catálogo da colecção do António Capucho aparece um prato com uma caricatura, mas um retrato identificável, do Serpa Pinto e ainda para mais datado é para mim uma imagem absolutamente nova, embora já soubesse por livros da existência de ratinhos com retratos.

A pintura de Serpa Pinto terá sido feita provavelmente a partir da fotografia, aqui apresentada, que terá aparecido em todos os jornais do País, pois no ano de 1890, aquele herói das campanhas de exploração colonial provocou em África, o chamado incidente Serpa Pinto, ao hastear a bandeira portuguesa junto do lago Niassa, numa região cobiçada pelos ingleses, desencadeando assim a questão do Mapa Cor-de-Rosa. Consequentemente, em 1890 Serpa Pinto era um homem de que toda a gente falava e as oficinas de cerâmica Coimbra aproveitaram a ocasião, para venderem mais uns pratos nas feiras, colocando-lhes o retrato do herói do momento.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Prato de faiança de Lisboa do 1º quartel do Século XIX


A propósito do post da faiança de Sto. António do Vale da Piedade, uma das seguidoras deste blog, muito amavelmente enviou-me por e-mail um magnifico prato da sua colecção, colocando-me a hipótese de se tratar de uma peça um fabrico daquela fabrica do Norte, pois apresenta a mesma delicadeza de desenho e cores.

Quando abri o ficheiro e vi a imagem fiquei absolutamente encantado e percebi de imediato, que a peça é muito mais antiga do que as faianças apresentadas de Sto. António de Vale da Piedade, que foram produzidas entre 1861-1886. O prato apresenta os amarelos e verdes e uma decoração miúda com flores e folhinhas, que estiveram muito vem voga nos últimos anos do século XVIII e ao longo do primeiro quartel do Século XIX. Embora não seja de todo um especialista na história do traje, parece-me também que a figura humana do centro enverga uma fatiota e um chapéu muito típicos dos finais do XVIII, princípios do XX.

Para não variar o prato da nossa seguidora não está marcado, o que complica a sua atribuição a uma fábrica específica, pois como referi antes, no período de transição entre o XVIII e XIX as decorações com grinaldas a amarelos e verdes estão na moda e o Rato, Miragaia, Massarelos, Bica do Sapato, Estremoz, Viana e Sto. António de Vale da Piedade produziram todos louça com esta decoração.

Esta cópia de decorações, cores e até moldes era muito frequente nessa época. Alexandre Nobre Pais e João Pedro Monteiro explicaram muito bem esse fenómeno da cópia de modelos e decorações da faiança, que tem origem na Fábrica do Rato. Com efeito, além de objectivos meramente comerciais de ganhar dinheiro a produzir e vender louça, a Fábrica do Rato tinha também por função servir como escola de formação para aprendizes de cerâmica vindos de todo o país. Segundo o espírito do iluminismo, que presidiu a esta fábrica de criação pombalina, pretendia-se melhorar o nível das manufacturas cerâmicas do Reino e assim, os jovens quando terminavam a sua formação no Rato e partiam para Estremoz, Viana, Porto ou Aveiro podiam levar consigo não só técnicas como desenhos e moldes. Assim se explica porque é por vezes a produção das manufacturas de faiança nesta época é tão parecida nos centros de produção de Norte a Sul do País.

Voltando a este prato, fiz alguma pesquisa sobre ele, sobretudo no catálogo da exposição, Cerâmica neoclássica em Portugal. – Lisboa: IPM, 1997 e pude constar o mesmo ar de família na faiança desta época.

Sto. António de Vale da Piedade produziu efectivamente loiça a amarelo e verde, mas os motivos mais são mais delicados, conforme se pode observar neste prato do Museu Nacional de Soares dos Reis, inv. 210, também datado do primeiro quartel do século XIX.

Encontrei bastantes semelhanças do prato da nossa seguidora com a loiça de Estremoz, nomeadamente com este prato datado de 1795-1808 da col. Francisco Caldeira Mora.
Mas, a peça mais próxima do prato da nossa seguidora, foi uma bacia de barbear pertencente ao Museu Nacional Machado de Castro, inv 9785, datada do primeiro quartel do século XX e com um fabrico atribuído a uma qualquer fábrica Lisboeta

Seja de que fábrica for o seu prato, a nossa seguidora tem uma peça do primeiro quartel do Século XIX, digna de Museu

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

O castigo do parricida


Há uns dois ou três anos quando o Manel comprou esta bela gravura do Século XVIII, tal como ele fiquei muito intrigado com o tema estranho, um homem que é conduzido vendado através duma cidade, com um cão, um macaco e um galo ao centro e ao fundo uma figura alegórica, que parecia representar talvez um rio. Ainda para mais a gravura não tinha nenhum título que esclarecesse a insólita representação.

Talvez por ter trabalhado tantos em anos em bibliotecas e arquivos, desenvolvi uma particular memória para livros, para fixar que este ou aquele assunto é referido naquele documento, que aquela imagem me é familiar e se encontra naquele livro e que por sua vez está debaixo daquela pilha de livros, em casa de alguém que conheço ou no gabinete de um colega. Peço-vos desculpa pela gabarolice, mas essa é de facto uma qualidade que todos os documentalistas desenvolvem e que me permitiu recordar-me de ter lido algures “não-sei-aonde” a descrição da cena, quando vi aquela gravura. Percebi que o aqui ali estava representado era o castigo particularmente atroz de um crime e lembrei-me que tinha lido uma descrição dessa punição, talvez para o incesto ou parricídio, num dos livros do Steven Saylor, um dos romancistas históricos mais empolgantes e rigorosos da actualidade.

O Manel que nestas coisas é muito curioso e persistente foi verificar e confirmou que a situação representada na gravura tinha sido de facto descrita pelo Steven Saylor, na obra, o Sangue Romano. Nesse romance, baseado num caso verdadeiro, Cícero defende Sexto Róscio, acusado de matar o seu pai, um dos actos mais abjectos para a sociedade romana, o parricídio, e consegue absolve-lo desse crime, que teria custado ao seu cliente um castigo semelhante ao descrito na gravura.

Roma era uma sociedade patriarcal em que o pater famílias dispunha de um poder absoluto, quer sobre os seus filhos, quer sobre todo um grupo de pessoas, que dele dependia, como os escravos e famílias de gente livre, mas mais pobres e das quais era patrono. Portanto, atentar contra a vida do pai era ameaçar uma forma de autoridade fundamental, em que se estruturava a organização social romana e como tal era considerado o pior dos crimes e merecia a mais atroz punição.

O castigo para o parricida foi estabelecido no tempo da república romana, ou mesmo antes e tinha sido definido por sacerdotes, em vez de legisladores, pois pretendia reproduzir a ira do pai Júpiter sobre o infame que ousa assassinar a semente que lhe deu a vida.

O horrendo castigo consistia numa série de passos que esta gravura apresenta muito bem. Depois do julgamento, o mau filho era conduzido para fora da cidade e toda a cidade era convocada ao toque de trombetas para assistir.

Eram colocados dois pedestais à altura dos joelhos do parricida. Este, já completamente despido, punha um pé em cada pedestal, ficando acocorado e com as mãos presas atrás das costas. Era depois chicoteado repetidas vezes, até ao ponto, em que o parricida pudesse ver o seu sangue correr pelo chão, sangue esse que lhe tinha sido dado pelo pai e assim compreendia o sacrilégio de ter ofendido a origem da própria vida.

Depois dos carrascos terem terminado o seu trabalho, o criminoso era conduzido até a um saco de peles, cosido de forma a não deixar entrar nem água, nem ar, enquanto que a populaça lhe atirava excrementos e o insultava. De seguida, o parricida era colocado no referido saco, o que significava que se estavam a devolve-lo ao ventre materno. Punham-se nesse mesmo saco os seguintes animais:

- Um galo e um cão, símbolos protectores do lar, que tinham falhado na naccção de proteger o pater famílias e eram por isso também castigados;
- uma serpente, que segundo se acreditava teria morto a sua mãe à nascença;
- Por fim, um macaco, a mais cruel paródia da humanidade feita aos Deuses
O saco era hermeticamente fechado e lançado ao Tibre, aqui representado pela figura alegórica do homem nu, reclinado sobre uma pedra, no canto inferior direito. O pobre homem tinha pois uma morte horrível e o seu cadáver acabava em mar alto, significando todo este percurso, que Júpiter tinha-o condenado em terra, tinha sido lançado a Neptuno, o Deus das Águas e este entregou-o a Plutão, o deus da morte e dos infernos.

Este era então o terrível castigo destinado aos parricidas, na Antiga Roma, mas agora importa falar um pouco sobre a gravura, que está assinada, mas não tem título nem data.

No canto inferior direito tem escrito "I. Wandelaar fecit" e ao centro "Lugdunum Batav. Ianssonii vander Aa excudunt:" No canto inferior esquerdo aparece a letra "B", sem mais nada.

Pieter van der Aa (Leida, 1659 — Leida, Agosto, 1733) terá executado a gravura e Joannes Janssonius (1588-1664) foi o impressor. Este último senhor notabilizou-se na Holanda na impressão de Atlas e outros documentos cartográficos hoje muito valorizados por alfarrabistas. Jan Wandelaar (1690-1759) terá sido o artista e ficou famoso pelos desenhos precisos de anatomia, que fez para a obra de medicina Tabulae Sceleti. – Leiden, 1747 (imagem inferior)

Lugdunum Batav era o nome latino que davam à cidade holandesa Leida, ou Leiden em neerlandês.

Não conhecemos muito mais sobre esta obra, mas segundo uma informação que encontrei na Internet, numa fonte que não me pareceu lá assim muito fidedigna, esta gravura terá feito parte de um livro, a De Rerum Natura, do poeta latino Lucrécio, impressa em Leiden, em 1725, pelo mesmo Joannes Janssonius. Ainda segundo essa fonte, neste caso Jan Wandelaar seria apenas o gravador de uma obra original do pintor holandês Frans van Mieris.
Consegui descobrir no google books um fac-símile on-line desta edição, que de facto continha algumas gravuras, mas nenhuma igual a esta. Contudo, do livro sexto da De Rerum Natura , só consegui consultar o 1º volume e pode ser que precisamente no segundo volume se encontre a referida gravura. Também não percebi porque razão esta estampa ilustraria a obra do poeta Lucrécio. É certo, que na antiguidade, os pensadores escolhiam a poesia para versarem temas como a filosofia, a história ou a ciência, mas na descrição do conteúdo do Livro Sexto da De Rerum Natura parece não haver lugar para uma gravura deste tema.

Enfim, o livro de onde esta gravura foi retirada permanece um mistério e aceitam-se sugestões

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Faiança da Fábrica de Sto. António do Vale da Piedade: Museu do Açude, no Rio de Janeiro

O nosso seguidor Fábio fez-me o favor de enviar um álbum de fotografias das colecções do Museu do Açude, no Rio de Janeiro, que é uma das mais completas colecções de faiança e azulejaria portuguesa no Brasil. O acervo foi reunido por Raymundo Ottoni de Castro Maya (1894-1968), um empresário e coleccionador brasileiro.

Está situado na floresta de Tijuca, no Rio de Janeiro, numa mansão neo-colonial, que serviu de cenário à popular telenovela Roque Santeiro, que em Portugal toda a gente viu (apesar de haver gente que não o confesse publicamente) e era nada menos nada mais que a casa da célebre Viúva Porcina, a Regina Duarte.

Mas não foi para falar de novelas que comecei a escrever estas linhas. Na realidade, entre muitas obras de faiança das fotografias do Fábio, houve três peças da Fábrica de Santo António do Vale da Piedade que me encantaram e que correspondem às três primeira fotografias deste blog. Tratam-se de duas taças e uma pinha, obras de faiança cujo uso era associado à arquitectura, tal como os azulejos e que foram concebidas para adornar os remates dos edifícios, os pilares que ladeiam um portão ou para decorar os jardins. Normalmente não reparamos muito nelas, pois estão lá no alto dos edifícios ou no resguardo dos jardins, mas é pena que são lindíssimas.

A Fábrica de Sto. António de Vale da Piedade foi fundada em 1784 pelo Genovês Jerónimo Rossi, vice-cônsul da Sardenha no Porto, na quinta de Vale Piedade em Vila Nova de Gaia e teve um período inicial de grande desenvolvimento industrial, exportando grandes quantidades da sua produção para a América.
No início do Século XIX, tal como todos os fabricantes sofreu um importante golpe com as perturbações causadas pelas invasões francesas e pela posterior abertura dos mercados nacional e ultramarino aos produtos ingleses.

Em 1814 a Fabrica está decadência. Rossi morre em 1821, mas as suas filhas continuam a explorar a fábrica e pedem renovação do alvará que obtém em 1825. Depois dessa data, a fábrica passa a ser explorada por Francisco da Rocha Soares, de Miragaia, até 1833.

Em 1852 encontra-se na posse de João de Araújo Lima, um dos industriais mais dinâmicos da sua época, fundador da Associação Industrial Portuense e acolhe muitos operários especializados que deixaram a unidade de Miragaia quando esta encerrou. À luz do que se expôs nestes dois últimos parágrafos, percebe-se porquê é que muitas produções Miragaia se confundem com as de Sto. António
.
Uma taça existente em Portugal, na Quinta do Chão Verde, Rio Tinto

Posteriormente à morte de Araújo Lima (1861), já sob a direcção de João do Rio (seu cunhado e administrador até 1886) introduziram-se modificações que levaram à produção de peças de ornamentação em relevo para interiores e exteriores. Provavelmente estas peças são da época da administração João do Rio, pois apresentam as marcas estampilhadas a azul tipícas desse período, conforme se pode ler no Itinerário da Faiança do Porto e Gaia. Lisboa: IMC, 2001, p 290

A Fábrica continuou a sua existência até 1930.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Registo de Azulejos: Nossa Senhora da Paz em Montemor-o Novo


Estes últimos tempos no blog tem sido muito dedicados à azulejaria, mas que hei-de eu fazer se o azulejos estão por toda a parte? E depois habituei-me a andar sempre com a máquina fotográfica na mochila e ando sempre de mochila, todos os dias, invariavelmente, de tal maneira, que as pessoas em Lisboa me perguntam muitas vezes se vou acampar.

Encontrei em Montemor-o-Novo este painel de azulejos na fachada da Ermida de Nossa Senhora da Paz, um pequeno templo, com uma cúpula de sabor mourisca, no centro histórico de Montemor-o Novo e que faz parte do percurso do Senhor dos Passos.
Representa a Nossa Senhora da Paz, está datado de 1729 e o desenho é de muito boa qualidade, quer da figura, quer da cercadura. Julgo que poderá ser classificado no chamado ciclo dos grandes mestres, que abrange precisamente o primeiro terço do Século XVIII.
Este período da história do azulejo português é caracterizado pela existência de desenhadores notáveis como António de Oliveira Bernardes, Policarpo de Oliveira Bernardes ou o Mestre conhecido pelas iniciais PMP. É também uma fase da azulejaria portuguesa em que o azul é uma cor absolutamente dominante.
É também interessante reparar que em termos iconográficos esta imagem se confunde facilmente com Nossa Senhora da Conceição, por causa da meia-lua, do globo terrestre, da auréola com as doze estrelas e dos querubins. O que no fundo as diferencia é o Menino Jesus, pois a Imaculada Conceição, representa a Virgem antes de dar à luz. Penso sempre que alguém se deveria dedicar a fazer uma iconografia sistemática da arte cristã em Portugal. Eu não me importaria nada de fazer parte de uma equipa que fizesse esse levantamento. Seria uma belíssima variante aos grupos de trabalho parvos, task forces e outras tolices de que tenho feito parte.