quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Uma dama, um cofre e um incêndio

Desde há muito anos que sou um comprador compulsivo de estampas. E esta que apresento hoje, é daquelas que comprei já há mais de vinte anos, mas que só há pouco consegui descobrir alguma coisa sobre a sua história.

Representa uma senhora, tendo aos seus pés um cofre cheio de moedas e ao fundo um prédio em chamas. A senhora segura um escudo com uma legenda, onde se lê Companhia de Lisboa. Pareceu-me desde logo óbvio, que esta dama em trajes greco-romanos era uma alegoria aos seguros e que a estampa terá sido recortada de alguma apólice, de um folheto anunciando uma companhia de seguros ou de um outro qualquer documento relativo à actividade seguradora.

A estampa é de pequenas dimensões
Quanto à data, pelo estilo da grinalda que enfeita o topo da estampa e pelas fatiotas da Senhora, pareceu-me tudo muito ao gosto neoclássico das primeiras décadas do Século XIX. Lá atrás, a casa em chamas, é um típico prédio pombalino, daqueles da Baixa, que ainda estavam a ser construídos no início do século XIX, pois como toda a gente sabe, a reconstrução pombalina, prolongou-se muito além do consulado do Marquês de Pombal.

Mas, na altura, fiquei-me por aqui, entretanto divorciei-me, mudei de casa, pendurei a estampa na casa de banho, a tapar um ponto de electricidade e nunca mais pensei muito nela, até há uns dias, quando me passou pela mão o livro A companhia de Seguros Fidelidade no seu primeiro centenário: 1835-1935. – Lisboa: Fidelidade, 1935. Como deverão calcular, não é suposto, nós, os bibliotecários lermos todos os livros que catalogamos. Mas pelo menos temos que os abrir, ler na diagonal o prefácio, os sumários, os índices e folheá-los, para identificar os assuntos que tratam. Assim, perfeitamente ao acaso, na página onde abri o livro descobri uma estampa com evidentes semelhanças com a minha, também de uma Companhia Lisboa. Embora o mundo das seguradoras não seja propriamente uma área que me a apaixone, fiquei de atenas no ar e desatei a ler as primeiras páginas da obra.


Estampa reproduzida na obra A companhia de Seguros Fidelidade no seu primeiro centenário: 1835-1935. – Lisboa: Fidelidade, 1935
Segundo esta obra, a primeira notícia da fundação de uma companhia de seguros é do ano de 1792. Nos anos sequentes vão aparecendo mais companhias, como por exemplo a Bonança, em 1808, que até há bem pouco tempo existia e depois de 1822, em data incerta a Lisboa ou Lisia, que subsistia, em 1835, no momento da Fundação da Fidelidade.

Mais tarde, por indicação do meu amigo de Outeiro Seco, o Humberto, descobri no site http://historiadoseguro.com a data exacta da Fundação da Companhia Lisboa, que foi no ano de 1819.

A Companhia Lisboa ou Lisia não durou muito mais tempo e foi em 1839, absorvida pela Fidelidade, que eliminou assim uma concorrente do mercado. A Lisboa parece que estava mais especializada na cobertura de sinistros causados pelos fogos, daí o incêndio representado na estampa, ao contrário da Fidelidade que começou a sua actividade com os seguros marítimos.

A Companhia Lisboa dedicava-se à cobertura dos estragos causados por incêndios
Finalmente, graças também ao meu amigo Humberto, que descobriria o tumulo de Alexandre Magno, se lho pedissem, confirmei a minha impressão inicial, de que esta estampa fez parte de um documento oficial. Com efeito, foi muito provavelmente recortada de um certificado de seguro, conforme se pode ver num documento datado de 1828, passado em nome de duas senhoras, a D. Maria Madalena de Lima e D. Francisca Gutier, que cobria o risco de incêndio de uma casa na Rua Filipe de Nery, n.ºs 21 a 23.

Imagem retirada de http://www.forum-numismatica.com/viewtopic.php?f=84&t=88334.

Quanto à Lísia, que no início, pensei tratar-se do nome do impressor da estampa, afinal foi um dos nomes da companhia de Seguro.

Durante muito tempo, pensei que "Lisia" fosse a assinatura do impressor ou gravador. Afinal era um dos nomes da Companhia de Lisboa

Mais, Lísia é efectivamente o nome da Senhora, que segura o escudo. Lísia é um termo hoje caído em desuso, mas usado pelos poetas dos finais do XVIII ou inícios do XIX, como Bocage ou a Marquesa da Alorna, como sinónimo de Portugal. Bocage escreveu em 1792,  um poema, Liberdade, onde estás? Quem te demora?, onde emprega precisamente a palavra Lísia, como sinónimo de Portugal, segundo li em http://lusofonia.com.sapo.pt/literatura_portuguesa/bocage.pdf.

Liberdade, onde estás? Quem te demora?
Quem faz que o teu influxo em nós não caia
porque (triste de mim!), porque não raia
já na esfera de Lísia a tua aurora?


Mas Lísia, não era só um termo literário. Era também representada na pintura, no desenho e na gravura, como uma mulher, uma alegoria, representando Portugal, conforme se pode ver numa estampa da Biblioteca Nacional, de 1838, intitulada Lysia apresenta às quatro partes do Mundo o retrato do grande Marquez de Pombal

http://purl.pt/6781
Em suma, esta Dama que figura na minha estampa, será afinal, Lísia, uma alegoria a Portugal.

Não encontrei muito mais informações sobre esta antiga seguradora, mas consegui datar a minha estampa com alguma segurança, entre 1819 e 1839,  perceber que foi muito provavelmente recortada de um certificado de seguro, descobrir graças aos meus amigos Maria e Andrade e Humberto quem foi esta Lísia e trazer à luz do dia esta Companhia de Lisboa ou Lísia, que produziu esta gravura com tema tão curioso.

11 comentários:

  1. Luís
    É interessante a sua pequena gravura sobre a "Companhia de Lisboa". É aliciante procurar informações e descobrir, pelos símbolos representados, o espírito da época em que foi fundada.
    O medo dos incêndios, numa cidade com deslocações dificultadas pela geografia da cidade, era uma preocupação para as pessoas.
    No entanto, os portugueses já, desde o século XIV, com a criação da Companhia das Naus, demonstravam um espírito inovador para o tempo - a existência de um seguro marítimo - para salvaguardar possíveis acidentes nas carreiras marítimas de comércio.
    if

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  2. Cara IF

    De facto o ramo dos seguros não é de todo a minha área. As companhias que aqui mencionei ao de leve são as antepassadas das modernas seguradoras portuguesas, surgidas nos finais do XVIII, inícios do XIX. Conforme referiu, no tempo dos Descobrimentos houve outras formas de seguro para apoiar a extraordinária actividade marítima da época.

    Tal como a IF, também achei graça a esta estampa, que revela o medo dos incêdios que existia no início do Século XIX. Aliás, toda a cidade antiga de Lisboa está cheia de registos de azulejos, feitos depois do Terramoto, dedicados a S. Marçal, que se acreditava proteger as casas e as pessoas dos fogos.

    Um abraço

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  3. Esta última achega introduzida pelo Humberto foi deveras curiosa, pois sabe-se agora de onde, exatamente, foi retirada a tua gravura, o que lhe dá um novo significado.
    E isto porque muitas vezes nunca sabemos de onde provêem as gravuras que adquirimos, pois são retalhadas a trouxe mouxe sem que se saiba de onde.
    Esta tua poderia ter sido proveniente de qualquer publicidade à companhia, por exemplo.
    Boa descoberta do Humberto
    Manel

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  4. Manuel

    A graça de escrever um blog sobre velharias é esta, obrigamo-nos a fazer alguma pesquisa, sistematiza-se os conhecimentos que se tem de sobre uma antiguidade e finalmente depois do post publicado, aparece sempre gente fornecendo-nos mais dados que desconheciamos sobre aquela mesma antiguidade.

    Um abraço

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  5. Sabe, Luís, o que me deixou intrigada em relação a esta sua estampa? (e bem tenho andado às voltas à procura de respostas) É o nome Lísia referente à figura feminina, que o Luís descobriu ser Lisboa. Eu conhecia este nome de um outro contexto, também do séc. XIX: uma legenda numa travessa de faiança atribuída a Coimbra, com decoração neoclássica e supostamente alusiva ao peródo das invasões napoleónicas. Está na pagina 73 do volume II de “Faiança Portuguesa” do Artur de Sandão e diz o seguinte essa legenda sob duas figuras de criança, representando alegorias: “Lízia e a Libardade a destra unirão”. Não sabia quem era a Lízia, mas vejo agora que pode efetivamente representar Lisboa, centro do poder político, a dar a mão à liberdade, ao libertar-se do jugo estrangeiro... Será que é isso? Mas qual será a origem deste nome dado a Lisboa?
    Estou cheia de interrogações hoje... :) mas por outro lado, graças a este poste, ganhei algumas certezas sobre coisas que desconhecia.
    Um abraço

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  6. Maria Andrade

    Realmente a Maria Andrade é uma cusca. Tem uma capacidade muito própria de cair sobre os assuntos e detectar aquele pormenor que mais ninguém reparou. Tive essa impressão logo no primeiro dia que a conheci no Museu e desde esse dia tenho verificado aqui muitas vezes essa sua qualidade.

    Não pensei muito no significado de Lísia. Achei também que teria um significado relacionado com Lisboa. Mas, por causa do seu comentário, parti para o Google (se estivesse no emprego poderia consultar o Dicionário da Academia) e lá descobri que Lísia é um daqueles termos antigos, caídos hoje em desuso, mas que os poetas no passado usavam muito.

    Bocage tem um poema, "Liberdade, onde estás? Quem te demora?", onde emprega precisamente a palavra Lísia, como sinónimo de Portugal, segundo li em http://lusofonia.com.sapo.pt/literatura_portuguesa/bocage.pdf.

    "Liberdade, onde estás? Quem te demora?
    Quem faz que o teu influxo em nós não caia
    porque (triste de mim!), porque não raia
    já na esfera de Lísia a tua aurora?"

    Em suma, no contexto desta estampa, Lísia, quererá dizer "Companhia de Lisboa, Portugal"

    Bjos e muito obrigado pela sua arguta observação

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  7. Bocage escreveu o poema em 1792, numa época em que a Lísia começava a aspirar aos ventos da Liberdade

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  8. A Marquesa da Lorna, uma poetisa do mesmo período também usa Lísia, como alegoria a Portugal. Talvez esta figura feminina da estampa represente precisamente Lísia.

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    1. Luís, não conhecia a utilização da palavra pela Marquesa de Alorna, mas por Bocage sim, não neste poema que refere, mas no último verso de um outro - "Lísia cantava Elmano, e Lísia o chora", em que ele imagina a própria morte. Sendo assim, quer dizer que Elmano, ou seja ele próprio, (Elmano Sadino era o seu pseudónimo árcade) cantava Portugal e agora, à hora da morte, Portugal o chora.

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  9. Ai de mim...
    Eu nem sequer vou abrir a boca, perante o conhecimento profundo da nossa literatura manifestado pela simpática comentadora e pelo dono do blog.
    Poesia não é o meu forte...se é que alguma coisa chega a ser o meu forte...pois de um modo geral pico aqui e acolá em inúmeras coisas e assuntos.
    Apenas posso acrescentar que acho a estampa mal empregada para estar na casa de banho. Se me permite uma sugestão, ficaria melhor enquadrada numa casa de banho uma antiga ilustração de publicidade a um sabonete ou água de colónia. Que tal?
    Decoração é comigo...;))


    Um beijinho

    Alexandra Roldão

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  10. Alexandra

    A Maria Andrade é licenciada em Línguas e Literaturas e essa sim, conhecerá bem a literatura portuguesa. Eu que sou de História não sei muito sobre a matéria. Limitei-me a fazer uma sucessão de pesquisas no Google com a legenda indicada pela Maria Andrade e fui parar ao Bocage e à Marquesa da Alorna. Depois o Humberto, referenciou-me a existência de uma estampa na Biblioteca Nacional representando a Lísia.

    Coloquei a estampa na casa de banho, pois na minha casa todos os espaços estão já ocupados por dezenas de estampas. Um dia, quando me sair o euromilhões A Lísia irá ocupar um lugar de mais destaque, aliás, terei que arranjar-lhe desde já uma moldura com mais qualidade.

    Bjos e obrigado pelos seus comentários e sugestões. Lol

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