quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Uma taça de chá da Companhia das Índias que afinal será inglesa


Os dias de chuva são sempre propícios para fazer boas compras nas feiras de velharias. A multidão some-se aos primeiros pingos de chuva e os feirantes, que querem fazer algum dinheiro, de modo cobrir pelo menos os custos da gasolina e vendem então as suas mercadorias a preços convidativos. Foi assim que eu e o Manel conseguimos comprar duas taças de chá, possivelmente companhia das índias, por um valor muito simpático.

Confesso que nunca percebi nada de nem de louça chinesa, nem de Companhia das Índias e a compra desta chávena foi um pretexto para me informar sobre esses assuntos.

Bem, ainda que correndo o risco de menorizar a cultura dos leitores deste blog, talvez conviesse começar por dizer que Companhia das Índias não é nenhuma fábrica de porcelana chinesa, embora seja um termo muito usado por antiquários e amadores de arte para designar porcelana da China, produzida sobretudo no século XVIII.


Este termo tem origens nas várias companhias europeias, criadas na Holanda, no século XVII e depois em Inglaterra e na França no século XVIII e que detinham o monopólio do comércio de produtos vindos das chamadas Índias Orientais, onde se incluía a China. Uma das actividades mais importantes dessas companhias coloniais era o comércio da porcelana chinesa, mas não era uma porcelana idêntica a que os chineses usavam para si. Essa porcelana era produzida especialmente para a Europa e correspondia a um gosto ocidental. As formas inspiravam-se nas peças de ourivesaria europeia e eram frequentemente objectos desconhecidos na China, como urnas, bacias degoladas, penicos, bourdaloues, chávenas com asas, entre outras. As decorações eram também executadas ao gosto europeu e podiam ser o resultado de encomendas precisas feitas a partir de gravuras, desenhos, fragmentos de tecidos ou papéis de parede. Havia mesmo quem encomendasse serviços de louça completa com as armas de família, a chamada porcelana armoriada. Por vezes, enviavam-se para China peças de porcelana europeia, como de Meissen ou Sèvres, caríssimas na altura, pois ficava mais económico encomendar reproduções a dezenas de milhares de km do continente europeu, do que comprar as originais. Também, se mandava vir da China louça branca, que depois era decorada na Europa.

Portanto, a designação companhia das Índias cobre um universo muito vasto, que vai desde a família verde, à rosa, passando pela porcelana armoriada, folha de tabaco até à azul e branca. Este universo é imenso, não só em variedade, mas em número. Por exemplo, a companhia das Índias Orientais holandesa terá feito chegar à Europa, 43 milhões de peças entre 1724 e 1794. Igualmente no século XVIII, a estima-se que Companhia das Índias orientais inglesas, terá sido responsável pela importação de 30 milhões de peças. 

Em Portugal, tentou-se criar também várias vezes uma companhia de comércio oriental, mas sem grande sucesso. Na prática, ao longo dos séculos XVII e XVIII, o comércio de porcelana foi feito por particulares, que pagavam uma percentagem à coroa pelos produtos transportados. Em todo o caso, avaliam-se em 10 milhões o número de peças de porcelana trazidas pelos portugueses.

Talvez por causa destes números assombrosos de porcelana chinesa feita ao gosto europeu, experimentei dificuldades em classificar a minha chávena de chá nas famílias típicas da chamada Companhia das Índias e encontrar peças idênticas. A minha taça parece corresponder a um gosto francês, diria mesmo que colheu inspiração nas decorações rocaille de Sèvres. Mas é um rocaille visto por um chinês, em que as tradicionais rosas de Sèvres, se transformaram nuns crisântemos muito orientais. 
Chávena de Sèvres. Colecção Harewood House
Em suma, as minhas pesquisas sobre esta chávena não foram muito conclusivas, até por que nos finais do XVIII, as fábricas de porcelana europeia inspiravam-se também nas louças das companhias das Índias e com efeito depois de publicar este post, a Maria Andrade, chamou-me a atenção para que esta peça afinal poderia ser inglesa. Com efeito, nos finais do século XVIII, algumas fábricas inglesas começaram a produzir louça inspirada na Companhia das Índias, nomeadamente New Hall (1782-1835), Worcester (fundada em 1751), Derby (fundada em 1750), Coalport, entre outras e o formato gomado desta chávena é muito típico da porcelana britânica desse período. Fiz umas quantas pesquisas na net nesse sentido, e com efeito encontrei muitas peças com decorações do mesmo género, com azuis e dourados, das fábricas acima mencionadas, normalmente datadas dos finais do XVIII,  mas sobretudo da New Hall, em particular o padrão 248 desta fábrica, cuja produção se terá iniciado cerca de 1800.

New Hall. Padrão 248, ca. 1800

Em suma é muito provável, que esta taça seja inglesa, dos últimos anos do XVIII ou dos primeiros do XIX.


Alguma bibliografia e links úteis:

Les Compagnies des Indes : route de la porcelaine / Jean-Pierre Kerneis, Robert Picard, Y. Bruneau. - [Paris] : Arthaud, 1966. - 386 p. : il.; 22 cm. - (Bibliothèque historique)

Porcelana de encomenda ou louça encomenda da China / César Valença. - Braga : Museu Nogueira da Silva, 1987. - 13-30 p. : il. ; 23 cm. - Separata de Forum, Braga, 2 de Outubro de 1987

Porcelanas e vidros / Mary Espírito Santo Salgado Lobo Antunes. - Lisboa : Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva, 1999. - 179 p. : il. ; 29 cm

http://gotheborg.com/qa/beginning.shtml

12 comentários:

  1. Caro Luís,

    Estou apaixonada!
    No entanto, se visse essa taça numa banca diria que se tratava de uma peça francesa...pois os dourados que apresenta são em tudo semelhantes ao estilo Vieux Paris. Contudo, quando olhada ao pormenor as flores verdes não se me afigurariam corresponderem àquele tipo de porcelana.
    Só sei que foi uma compra e tanto!
    Nos últimos tempos esta sua leitora tem adquirido aqui no burgo umas coisinhas interessantes numa lojinha de artigos em 2ª mão...os preços são extremamente convidativos, mas é preciso andar sempre em cima do assunto..senão...as peças mais giras voam num ápice!

    Beijinho

    Alexandra Roldão

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    1. Alexandra

      Sem dúvida que a inspiração longínqua desta chávena é a porcelana francesa, agora se é Companhia das Índias ou inglesa, como sugere a Maria Andrade, isso é que já não sei. Em todo o caso é uma peça muito requintada..

      Fico cheio de inveja dessa lojinha que descobriu. Esses sítios são os melhores para se descobrirem boas peças ao preço da chuva.

      Bjos e obrigado

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  2. Luís,
    Com esta sua delicada taça de chá trouxe-me a minha área de eleição no mundo das velharias, talvez a área que me motivou mais e a que me dediquei em vários postes no início o "Arte, livros e velharias"! E digo-lhe já que não hesitaria muito em atribuí-la a produção inglesa do início do século XIX.
    Aquela moldagem em gomos espiralados é para mim ium sinal inequívoco, tenho peças do mesmo formato e já mostrei algumas num poste já antigo de que vou deixar o link: http://artelivrosevelharias.blogspot.pt/2011/07/porcelana-inglesa-da-epoca-georgiana.html
    Para além do formato, a decoração no fundo da chávena e o filete dourado no interior do bordo são também típicos dessa produção, da época georgiana, Os dourados que geralmente associamos à porcelana francesa, também foram obviamente muito usados na produção inglesa de qualidade e eu também tenho alguns exemplares no blogue que atestam o facto, não só em taças mas também nas chamadas "coffee cans"
    Claro que me falta manusear a peça e ver o tipo de porcelana de que é feita. Se se tratar da verdadeira pata dura, de aspeto vítreo, dou a mão à palmatória, poderá tratar-se de uma peça feita na China já por influência da produção britânica, mas a minha convicção é mesmo de que a sua taça é inglesa.
    O facto não lhe retira qualquer valor, antes pelo contrário. Pelo menos em Inglaterra são muito mais valorizadas estas peças de produção local do que as chinesas de exportação que não sejam armoriadas.
    Não sei se o convenci, mas pode ao menos seguir um caminho de pesquisa neste sentido que lhe estou a apontar... ;)
    Fez uma bela aquisição!
    Beijos

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    1. Maria Andrade

      Sabe que consultei esse seu post e foi a sua leitura que condicionou a redacção do último paragrafo, em que ponho a hipótese de a taça ter sido produzida por um fabricante europeu, pretendendo imitar as companhias das Índias.

      Quando à pasta, tenho alguma dificuldade em dizer-lhe se ela é brilhante ou vítrea. No verso não tem qualquer marca ou número e apresenta só uns pontinhos negros, minúsculas imperfeições da cozedura.

      Em todo o caso, tenho a andado a pesquisar por New Hall porcelains e apanhei já algumas coisas com ar de família, nomeadamente o padrão nº 248, mas ainda nada de conclusivo. Vou continuar as minhas pesquisas e se conseguir chegar a alguma conclusão farei um novo post. No entanto, a dúvida ficou cá instalada a roer, a roer.

      Bjos e obrigado pelas pistas novas que me deu

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  3. É muito bonita Luís. É uma taça ou uma chávena?
    No Oriente o chá bebe-se em taças mas para o Ocidente produziam-se chávenas. Gosto de porcelana chinesa criada para o Ocidente.
    Se é uma taça era para bolos para acompanhar o chá, não é verdade?
    Tenho pena de não perceber do assunto, apenas sei dizer que gosto e que se não lesse o que escreveu me pareceria inglesa.
    Bom fim-de-semana com muito sol. :))

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    1. Ana

      As chávenas de chá mais antigas, como a que é aqui mostrada, não tinham asas. As asinhas são uma invenção do Ocidente.

      Depois do comentário da Maria Andrade, acabei por me convencer que a afinal esta chávena é inglesa, provavelmente dos finais do XVIII, de uma época em que algumas fábricas inglesas se inspiraram nas companhias das Índias. Por esse motivo tem um símbolozinho oriental em forma de cruz, para lhe dar o toque chinês.

      Enfim, quando as peças não estão marcadas, há sempre o risco de acertarmos ao lado e fazermos atribuições erradas. Por essa razão, é útil mostrar aqui as peças, pois muitas vezes alguém nos dá as pistas certas para identificar as peças.

      Um beijo

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    2. Obrigada, Luís.
      Pensei que os nossos navegadores traziam chávenas e não taças/ chávena nos carregamentos dos navios.
      Bj.:))

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    3. Ana
      Estas questões da terminologia das peças cerâmicas dão sempre origem a equívocos.

      Bjos

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  4. Quando vi estas taças, já há semanas atrás, estava sozinho, e já na altura as achei algo exóticas, mas na altura não estava com dinheiro e deixei-as. Depois, e estavas tu desta vez, num final de semana de mau tempo, acabaram por ficar mais em conta.
    De imediato me pareceram Companhia das Índias, para o que contribuiu o tipo de decoração e o sinal da cruz no interior da chávena.
    Se fosse uma pasta mais grosseira, diria que seria Satsuma, pois esta marca em cruz dentro de um círculo é uma das caraterísticas mais comuns destas peças, mas Satsuma é japonês, sendo, tradicionalmente, a maioria das suas peças originárias da ilha de Kyushu, e esta chávena, a ser oriental, não me parece nada que o seja.
    De acordo com "Dicionário de Símbolos", a cruz, na China, tem uma função de síntese e de medida, nela se juntam o céu e a terra, é onde o tempo e o espaço se confundem. Significa igualmente o numeral 10.
    Julgo ser um símbolo com alguma importância para o oriente, e que deve ter passado igualmente para a decoração da cerâmica/porcelana.
    Assim, a ser oriental, vejo esta peça a ser produzida mais na China que no Japão. A flor, que me parece um crisântemo e o azul profundo, dão alguma ideia dessa proveniência.
    No entanto, os arabescos dos dourados e a forma canelada, espiralada, do corpo da taça poderão ser indícios de ser europeia, como refere a Maria Andrade.
    Mas não consigo reconhecer se será ou não inglesa. Francesa não me parece, e Meissen também não.
    Mas acabo por colocar a hipótese de ser possível que seja uma produção inglesa de início do século XIX se a Maria Andrade o propõe, pois tenho a certeza que a conhecerá melhor que eu.
    Se a pasta é dura ou macia, não consigo perceber essa diferença, apesar de vir especificadas nas obras da especialidade; os meus conhecimentos vão até ao ponto de reconhecer que as paredes da taça são em porcelana de uma espessura muito fina, de uma qualidade muito boa e com uma pintura manual bem executada, e os dourados parecem ter sido colocados de uma forma algo mecânica, do que não entendo muito.
    Das várias peças que possuo e sei serem de porcelana Companhia das Índias, e que se podem classificar em diversas "Famílias", nenhuma me parece ter qualquer parentesco com esta decoração das taças.
    Assim, fico sem saber o que pensar, mas como são peças tão bonitas, basta-me apreciar-lhes a beleza
    Manel

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    1. Manel

      Com as pistas que a Maria Andrade me deu fiz várias pesquisas na net, quer nos sites de antiquários, quer no Victoria & Albert Museum e acabei por me convencer que esta chávena é inglesa. Nos finais do XVIII, há umas quantas fábricas inglesas a fazer este tipo de chávenas, com este formato em gomos espiralados, com decorações a ouro e a azul e que mantem alguns símbolos chineses, como a cruz envolta nuns raios de sol, para dar o toque oriental. Inspiravam-se na porcelanas Companhias das Índias e naturalmente também em Sèvres.

      Aliás, corrigi o texto no post.

      Um abraço

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  5. Luis,

    Ainda nem li o texto, nem os comentários dos colegas, a não ser uma linha da Alexandra.

    E concordando com ela, diria também que se trata de uma peça francesa, sobretudo por aquele moldado em canelura retorcida (nem sei se é isto mesmo, só quero me fazer entender).

    Se bem que, como tantas vezes por aqui foi dito, que louça no mundo não se inspirou na inglesa ou chinesa?

    Mesmo assim não daria meu voto para que fosse uma Cia. das Indias. Mas em se tratando de louças quse tudo é possível...

    Depois vou ao texto e tento voltar.

    Um abraço.

    ab

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  6. Amarildo

    Quando uma peça não está marcada, fazer atribuições é sempre um risco. Foi o que aconteceu neste post, em que presumi que a chávena fosse Companhia das Índias, feita a partir de algum modelo de Sèvres, embora não tivesse excluído a hipótese de ser uma produção europeia inspirada nessa louça ao gosto europeu encomendada na China. Mas graças ao olho clínico da Maria Andrade, muito treinado na cerâmica inglesa, consegui perceber que é muito provável que esta chávena seja uma produção inglesa, dos finais do XVIII, inspirada nas Companhias das Índias. Por exemplo, a cruz envolta nuns raios de sol é um símbolo chinês, que aqui foi mantido para dar o toque oriental à peça, toda cheia de dourados à moda francesa.

    Em suma, nesta pequena chávena de chá faz a síntese entre a China, a Inglaterra e a França e veio parar aqui as terras lusitanas, vá lá a gente saber como. Esta peça é o testemunho de um mundo, fruto dos descobrimentos portugueses e acabam por produzir obras originais, em que as influências da China, da França e da Inglaterra se entrecruzam.

    Um abraço

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