O meu amigo Manel comprou mais uma estampa, representando Santa Maria Madalena, que de todas as pecadoras arrependidas e canonizadas, é de longe a mais popular. Esta pequena gravura é uma representação típica da bela pecadora arrependida, vestida com trajes de cortesã, longos cabelos soltos e que medita ajoelhada diante de uma mesa, onde estão um crucifixo e uma caveira. No chão está uma caixa aberta com as jóias, de que ela se despojou e toda a cena é envolvida por uma cortina de luxo.
A gravura não está assinada e contem apenas uma legenda S. Maria Magdalena. Provavelmente os dados com a identificação do impressor foram cortados pela habilidosa Senhora, que encaixilhou a gravura. Abri a página da Sociedade Martins de Sarmento, o melhor site para identificar registos de santos e descobri uma estampa igual à do Manel, mas inteira, contendo os dados da impressão. A gravura foi impressa por Teotónio José de Carvalho, um senhor que esteve activo em Lisboa nos finais do XVIII, inícios do XIX e vendia-se na rua do Ouro, Loja 16B. Provavelmente uma boa parte dos compradores desta gravurazinha seriam frequentadores da Igreja da Madalena, que é ali nas imediações.
Estampa da colecção da Sociedade Martins Sarmento |
Mas não fiquei satisfeito e resolvi pesquisarem inglês e francês no Google sobre esta imagem daquela figura do Novo Testamento, designada antigamente em França por La Trés Sainte demoiselle pécheresse e os resultados foram surpreendentes. Encontrei duas placas de esmalte de Limoges, exactamente com o mesmo tipo de representação e ambas do século XVII. Há apenas pequenas diferenças aqui e ali. Como as placas são ovais, o pormenor da caixa de jóias foi cortado e sobre a mesa, acrescentaram o vaso de perfume, com o qual Madalena ungiu os pés de Cristo e que é um dos seus atributos mais característicos, de tal forma que ainda hoje, Maria Madalena é padroeira dos fabricantes de perfumes.
Imagem extraída do blog de Alain.R.Truong |
Imagem extraída do site de vendas Aguttes |
Apesar de mais de um século separar a produção das placas de Limoges e a estampa do Manel, as três tinham algo em comum, a mesma fonte iconográfica, que suspeitei desde logo que pudesse ser uma gravura. E com efeito, num desses sites de venda on-line, o “todocoleccion.net”, encontrei uma gravura francesa com a mesma representação da Madalena, ajoelhada em frente à mesa e vestida exactamente da mesma forma. A estampa não está datada, mas parece-me coisa do XVIII.
Imagem retirada de todocoleccion.net |
Continuando as minhas buscas, acabei por descobrir uma gravura mais antiga provavelmente do XVII, gravada por Nicolas Bazin (1633-1710), editada por Pierre Mariette II (1634-1716) e feita a partir de um desenho de Charles Le Brun (1619–1690) e que será muito provavelmente a fonte de inspiração das gravuras e dos esmaltes já mencionados.
Imagem retirada de https://picclick.fr/Gravure- |
Charles Le Brun foi um pintor régio na Corte de Luís XIV, com uma vasta obra de pintura, desenho, gravura e cartões para tapeçarias. Pintou pelo menos duas Madalenas, uma que se encontra no Louvre, outra no Museu de Grenoble, mas não tem nada a ver com as imagens das estampas e dos esmaltes, que venho aqui referindo. Já estava a praticamente a desistir de encontrar a pintura, que deu origem a esta gravura, quando encontro no site do British Museum uma outra estampa com uma cortesã semelhante a esta e onde se refere, que esta figura ajoelhada, foi extraída de uma grande composição de Charles Le Brun, datada de 1661, que está no Palácio de Versalhes, representando a família de Dario aos pés de Alexandre o Grande.
A família de Dario aos pés de Alexandre o Grande. Palácio de Versalhes |
Em suma, o Senhor Charles de Brun ou o gravador Nicolas Bazin tiveram a ideia de reaproveitar a princesa da família de Dario, acrescentar-lhe um crucifixo, uma caveira e uma caixa de jóias e transformaram-na numa bela Madalena penitente.
Pormenor do quadro "A família de Dario aos pés de Alexandre o Grande". A jovem que chora foi reaproveitada e transformada numa Maria Madalena Penitente |
As voltas que deste para chegar ao original ... verdadeiro trabalho de detetive, como já nos habituaste.
ResponderEliminarA peça original é lindíssima. Na tradução foi perdendo qualidades, e acabou por ser uma figura feminina desfigurada, ainda que vestida de forma principesca!
Muito boa pesquisa!
Não fazia ideia de onde teria vindo.
Mas nada melhor do que associar a filha (será filha? É conhecido que uma das filhas de Dario casou com Alexandre - um casamento de conveniência, claro) do rei Dario III, que foi vencido em várias batalhas por Alexandre, à figura controversa de Madalena.
Uma das mulheres de Dario (parece que o seu gineceu possuía mais de 300 mulheres), que foi capturada por Alexandre, tinha a fama de ser umas das mulheres mais belas do seu tempo.
Resta a dúvida se esta figura representada por Le Brun seria essa esposa de Dario ou então a filha que casou com Alexandre.
Seja como for, o percurso destas representações é complexo e nada fácil de estabelecer.
Manel
Manel
ResponderEliminarA quantidade brutal de imagens que os grandes museus, as bibliotecas e os antiquários colocaram on-line permitem ao colecionador amador associar diferentes gravuras, peças de artes decorativas e pinturas e encontrar entre elas um elo comum, como foi o caso desta tua Madalena, uma gravurazinha um pouco tosca e cujo arquétipo é afinal o detalhe de uma pintura do famoso Charles Le Brun, concebida para decorar o mais famoso palácio do mundo Versalhes. As viagens que as imagens fazem no tempo nunca nos deixam de admirar.
Pelo destaque que a figura tem no quadro da família de Dario, a jovem que foi transformada em Madalena, poderá realmente ser a mulher do Imperador Persa ou a filha, que veio a casar com Alexandre aos pés de Alexandre o Grande
Um abraço
Interessantíssimo! E a gravura é muito bonita. Boa tarde!
ResponderEliminarMargarida. Muito obrigado pelo seu comentário e votos de um bom fim-de-senana
EliminarBeleza, Luís. Gravura idem de uma santa que possui vários atributos, uma rica iconografia,a caveira, joias, perfume, o crucifixo, a imagem que tenho em gesso ela lê um livro de cabeça baixa. Circunspecta. Um sofrimento e arrependimentos terríveis.
ResponderEliminarMe lembraram do dia 22 de julho, dia de Santa Madalena, queria postar algo, mas esqueci...estou arrependido.
Veio bem a calhar este presente que você ganhou exatamente no mês de Madalena.
Não conhecia o site que você citou o Martins Sarmento. Ótimo para fuçar imagens de santos.
Abraços.
Jorge
EliminarSão fascinantes as representações de Maria Madalena, essa santa padroeira dos perfumistas, dos cabeleireiros, dos prisioneiros e das prostitutas.
Em França existia uma ordem religiosa, que assistia as prostitutas convertidas e que se tornou conhecida pelo nome delicioso de "Les Madelonnettes".
Também aprecio muito esta figura, cuja história maravilhosa introduziu na cultura Ocidental a ideia do perdão.
O site da Casa Martins Sarmento tem uma colecção que nunca mais acaba de registos de santos, toda digitalizada, só é pena é não ter um menu de pesquisa. Na prática, tem que folhear a colecção inteira para procurar o santo que pretende. Os "As" estão nas primeiras páginas, o "J" no meio e os "T" no fim.
Um abraço lisboeta
A ideia do perdão. Isso mesmo..."Les Madelonnettes" que nome genial. Deveria voltar essa designação, mas, não mais há as convertidas.
ResponderEliminarUm abração.
Jorge
EliminarA história da Madalena sempre me encantou, pois tenta transmitir às pessoas, que temos que perdoar, dar uma segunda oportunidade. Como Jorge bem sabe, antigamente, em todo o Próximo Oriente, as mulheres adulteras eram mortas por apedrejamento, hábito que subsistiu em alguns países que levam a lei islâmica aos extremos. A história da Madalena é um protesto contra essa prática do apedrejamento.
O francês consegue sempre arranjar uns nomes deliciosos para tudo.
Hoje, a ética sexual nos países ocidentais e muito permissiva e já não há arrependidas, mas a ideia de que é necessário perdoar manteve-se na nossa cultura, mesmo para os que não tem fé de qualquer espécie.
Um abraço