quinta-feira, 26 de julho de 2018

Como uma princesa persa foi transformada numa Madalena penitente

 
O meu amigo Manel comprou mais uma estampa, representando Santa Maria Madalena, que de todas as pecadoras arrependidas e canonizadas, é de longe a mais popular. Esta pequena gravura é uma representação típica da bela pecadora arrependida, vestida com trajes de cortesã, longos cabelos soltos e que medita ajoelhada diante de uma mesa, onde estão um crucifixo e uma caveira. No chão está uma caixa aberta com as jóias, de que ela se despojou e toda a cena é envolvida por uma cortina de luxo.
 
A gravura não está assinada e contem apenas uma legenda S. Maria Magdalena. Provavelmente os dados com a identificação do impressor foram cortados pela habilidosa Senhora, que encaixilhou a gravura. Abri a página da Sociedade Martins de Sarmento, o melhor site para identificar registos de santos e descobri uma estampa igual à do Manel, mas inteira, contendo os dados da impressão. A gravura foi impressa por Teotónio José de Carvalho, um senhor que esteve activo em Lisboa nos finais do XVIII, inícios do XIX e vendia-se na rua do Ouro, Loja 16B. Provavelmente uma boa parte dos compradores desta gravurazinha seriam frequentadores da Igreja da Madalena, que é ali nas imediações. 
Estampa da colecção da Sociedade Martins Sarmento

Mas não fiquei satisfeito e resolvi pesquisarem inglês e francês no Google sobre esta imagem daquela figura do Novo Testamento, designada antigamente em França por La Trés Sainte demoiselle pécheresse e os resultados foram surpreendentes. Encontrei duas placas de esmalte de Limoges, exactamente com o mesmo tipo de representação e ambas do século XVII. Há apenas pequenas diferenças aqui e ali. Como as placas são ovais, o pormenor da caixa de jóias foi cortado e sobre a mesa, acrescentaram o vaso de perfume, com o qual Madalena ungiu os pés de Cristo e que é um dos seus atributos mais característicos, de tal forma que ainda hoje, Maria Madalena é padroeira dos fabricantes de perfumes.
Imagem extraída do blog de Alain.R.Truong
 
Imagem extraída do site de vendas Aguttes 
Apesar de mais de um século separar a produção das placas de Limoges e a estampa do Manel, as três tinham algo em comum, a mesma fonte iconográfica, que suspeitei desde logo que pudesse ser uma gravura. E com efeito, num desses sites de venda on-line, o “todocoleccion.net”, encontrei uma gravura francesa com a mesma representação da Madalena, ajoelhada em frente à mesa e vestida exactamente da mesma forma. A estampa não está datada, mas parece-me coisa do XVIII.
Imagem retirada de todocoleccion.net
Continuando as minhas buscas, acabei por descobrir uma gravura mais antiga provavelmente do XVII, gravada por Nicolas Bazin (1633-1710), editada por Pierre Mariette II (1634-1716) e feita a partir de um desenho de Charles Le Brun (1619–1690) e que será muito provavelmente a fonte de inspiração das gravuras e dos esmaltes já mencionados.
Imagem retirada de https://picclick.fr/Gravure-ancienne-MARIE-MADELEINE-PLEURANT-Nicolas-BAZIN-253631299911.HTML
 
Charles Le Brun foi um pintor régio na Corte de Luís XIV, com uma vasta obra de pintura, desenho, gravura e cartões para tapeçarias. Pintou pelo menos duas Madalenas, uma que se encontra no Louvre, outra no Museu de Grenoble, mas não tem nada a ver com as imagens das estampas e dos esmaltes, que venho aqui referindo. Já estava a praticamente a desistir de encontrar a pintura, que deu origem a esta gravura, quando encontro no site do British Museum uma outra estampa com uma cortesã semelhante a esta e onde se refere, que esta figura ajoelhada, foi extraída de uma grande composição de Charles Le Brun, datada de 1661, que está no Palácio de Versalhes, representando a família de Dario aos pés de Alexandre o Grande.
 
A família de Dario aos pés de Alexandre o Grande. Palácio de Versalhes
Em suma, o Senhor Charles de Brun ou o gravador Nicolas Bazin tiveram a ideia de reaproveitar a princesa da família de Dario, acrescentar-lhe um crucifixo, uma caveira e uma caixa de jóias e transformaram-na numa bela Madalena penitente.
Pormenor do quadro "A família de Dario aos pés de Alexandre o Grande". A jovem que chora foi reaproveitada e transformada numa Maria Madalena Penitente 

 

8 comentários:

  1. As voltas que deste para chegar ao original ... verdadeiro trabalho de detetive, como já nos habituaste.
    A peça original é lindíssima. Na tradução foi perdendo qualidades, e acabou por ser uma figura feminina desfigurada, ainda que vestida de forma principesca!
    Muito boa pesquisa!
    Não fazia ideia de onde teria vindo.

    Mas nada melhor do que associar a filha (será filha? É conhecido que uma das filhas de Dario casou com Alexandre - um casamento de conveniência, claro) do rei Dario III, que foi vencido em várias batalhas por Alexandre, à figura controversa de Madalena.
    Uma das mulheres de Dario (parece que o seu gineceu possuía mais de 300 mulheres), que foi capturada por Alexandre, tinha a fama de ser umas das mulheres mais belas do seu tempo.
    Resta a dúvida se esta figura representada por Le Brun seria essa esposa de Dario ou então a filha que casou com Alexandre.
    Seja como for, o percurso destas representações é complexo e nada fácil de estabelecer.
    Manel

    ResponderEliminar
  2. Manel
    A quantidade brutal de imagens que os grandes museus, as bibliotecas e os antiquários colocaram on-line permitem ao colecionador amador associar diferentes gravuras, peças de artes decorativas e pinturas e encontrar entre elas um elo comum, como foi o caso desta tua Madalena, uma gravurazinha um pouco tosca e cujo arquétipo é afinal o detalhe de uma pintura do famoso Charles Le Brun, concebida para decorar o mais famoso palácio do mundo Versalhes. As viagens que as imagens fazem no tempo nunca nos deixam de admirar.

    Pelo destaque que a figura tem no quadro da família de Dario, a jovem que foi transformada em Madalena, poderá realmente ser a mulher do Imperador Persa ou a filha, que veio a casar com Alexandre aos pés de Alexandre o Grande

    Um abraço

    ResponderEliminar
  3. Interessantíssimo! E a gravura é muito bonita. Boa tarde!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Margarida. Muito obrigado pelo seu comentário e votos de um bom fim-de-senana

      Eliminar
  4. Beleza, Luís. Gravura idem de uma santa que possui vários atributos, uma rica iconografia,a caveira, joias, perfume, o crucifixo, a imagem que tenho em gesso ela lê um livro de cabeça baixa. Circunspecta. Um sofrimento e arrependimentos terríveis.
    Me lembraram do dia 22 de julho, dia de Santa Madalena, queria postar algo, mas esqueci...estou arrependido.
    Veio bem a calhar este presente que você ganhou exatamente no mês de Madalena.
    Não conhecia o site que você citou o Martins Sarmento. Ótimo para fuçar imagens de santos.
    Abraços.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Jorge

      São fascinantes as representações de Maria Madalena, essa santa padroeira dos perfumistas, dos cabeleireiros, dos prisioneiros e das prostitutas.

      Em França existia uma ordem religiosa, que assistia as prostitutas convertidas e que se tornou conhecida pelo nome delicioso de "Les Madelonnettes".

      Também aprecio muito esta figura, cuja história maravilhosa introduziu na cultura Ocidental a ideia do perdão.

      O site da Casa Martins Sarmento tem uma colecção que nunca mais acaba de registos de santos, toda digitalizada, só é pena é não ter um menu de pesquisa. Na prática, tem que folhear a colecção inteira para procurar o santo que pretende. Os "As" estão nas primeiras páginas, o "J" no meio e os "T" no fim.

      Um abraço lisboeta

      Eliminar
  5. A ideia do perdão. Isso mesmo..."Les Madelonnettes" que nome genial. Deveria voltar essa designação, mas, não mais há as convertidas.
    Um abração.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Jorge

      A história da Madalena sempre me encantou, pois tenta transmitir às pessoas, que temos que perdoar, dar uma segunda oportunidade. Como Jorge bem sabe, antigamente, em todo o Próximo Oriente, as mulheres adulteras eram mortas por apedrejamento, hábito que subsistiu em alguns países que levam a lei islâmica aos extremos. A história da Madalena é um protesto contra essa prática do apedrejamento.

      O francês consegue sempre arranjar uns nomes deliciosos para tudo.

      Hoje, a ética sexual nos países ocidentais e muito permissiva e já não há arrependidas, mas a ideia de que é necessário perdoar manteve-se na nossa cultura, mesmo para os que não tem fé de qualquer espécie.

      Um abraço

      Eliminar