sábado, 21 de março de 2020

Memorabilia: bordados feitos cabelo humano


O meu amigo Manel comprou recentemente uns preciosos bordados feitos de cabelo humano, encaixilhados numas molduras ovais. O primeiro apresenta um floreiro, isto é, uma taça com flores, tendo na base as iniciais LPG, e o segundo é uma espécie de grinalda ou coroa envolvendo um P e aquilo, que me parece um S e um L entrelaçados.

Estes objectos primorosos, que hoje tem um valor meramente decorativo, no século XIX estiveram em voga entre as classes abastadas e tinham um significado simbólico muito forte. Executados a partir de cabelos humanos de entes queridos, que já tinham partido, estes bordados eram a forma poética de as pessoas conservarem qualquer coisa de uma mãe, de um pai ou de um filho, nem que fosse apenas uma madeixa de cabelo. Por esta razão, estas composições bordadas aparecem associadas a conjuntos de letras, que correspondiam às iniciais dos falecidos e por vezes emolduram a fotografia do morto. Contudo, nem sempre o significado era fúnebre e estes trabalhos poderiam ser feitos a partir da trança, que se teve na juventude, da madeixa do jovem, que tanto se amou, ou do caracol loiro de um filho de que se quis conservar a lembrança da meninice.


Normalmente, estes preciosos bordados eram executados por oficinas especializadas e ao longo do século XIX publicaram-se livros com exemplos de composições possíveis.



Como estas peças estavam um bocadinho sujas, o meu amigo Manel desmontou-as todas e descobriu algumas coisas muito interessantes. Para enchimento da parte posterior, onde assentam os bordados, foram usados jornais franceses, um deles está mesmo datado, de 31 de Maio de 1869, o que permite atribuir a estas peças um eventual fabrico francês, muito embora em Portugal, nesta época, entre as pessoas abastadas e instruídas era comum subscrever publicações períodicas francesas. Em todo o caso estes bordados terão sido executados por volta de 1870, mais ano, menos ano. Igualmente, atrás de um bordado, o Manel encontrou o desenho, que serviu de base à composição.



Estes tocantes bordados são um símbolo da luta contra o esquecimento, que todos travamos diariamente, mesmo que não se deixe de olhar o futuro de olhos bem abertos.





Para redigir este texto basei-me exclusivamente nas informações da seguinte obra:

Frederic Marés Museum: guide. Barcelona: Ajuntament de Barcelona, 2011. p-176-177

9 comentários:

  1. Realmente, desmembrar uma obra destas é elucidativo sobre o processo de fabrico que se utilizava em objetos, hoje totalmente caídos em desuso e no esquecimento e até considerados de forma algo duvidosa.
    Fui obrigado a desmontar estas peças porque havia bocadinhos de cabelo que se tinham soltado e andavam livremente a balançar no interior, entre a calote exterior, arredondada, de vidro, e a lâmina de vidro interior, onde se colam os pedaços de cabelo a formar o desenho.
    Por outro lado, as molduras de madeira tinham pedaços em falta da tinta negra que os revestia, e estavam totalmente cheias de orifícios provenientes da atividade de xilófagos que se tinha espalhado por essas molduras. E, mais grave, estavam ativos, pois, dos orifícios, soltava-se uma fina poeira esbranquiçada, significativo da atividade daqueles perniciosos insetos!!!! Foi necessário tratar a madeira, solidificar algumas partes, que pareciam uma esponja, tantos orifícios tinham, raspar a camada de tinta, e cobrir com uma nova camada da mesma cor e textura que a original possuía.
    E também tive algum trabalho para conseguir manter a camada de papel negro texturado que revestia a parte de trás, e que se estava igualmente a desfazer.
    Pelo que me aprecebi, quando desmontei estas peças, elas foram construídas a partir de uma fina lâmina de vidro algo translucido, sobre a qual se colava, na face de trás, uma porção de um papel que se assemelha ao "papel de seda" (não sei se o seria na verdade, mas ele continua a ser o mesmo, não lhe toquei) da cor do marfim velho.
    Pela parte da frente eram então colados os bocados de cabelo, a formar uma composição previamente desenhada.
    Inicialmente era feita uma espécie de "esteira" com os fios de cabelo, colocados lado a lado, os quais teriam sido previamente mergulhados em cola, pelo que formavam áreas compactas que, depois de seca a cola, se recortavam com as formas que se queriam, as quais se colavam, agora, desta vez, à fina lâmina de vidro.
    Para que a fina lâmina de vidro ficasse protegida, fazia-se um enchumaço bastante espesso de papel de jornal, que se colocava na parte traseira dela. São estes papeis de jornal que aparecem na fotografia. Todo o conjunto era envolvido, na parte de trás, por um papel igualmente negro, com uma textura muito rugosa.
    Tenho mais uma peça feita em cabelo humano, mas essa outra apresenta uma técnica totalmente diferente.
    Há um desenho que é bordado sobre linho muito fino, só que em vez do bordado ser executado em linha, é-o com cabelo, tirando partido das muitas nuances que existem, desde o cabelo louro até ao mais escuro. É um trabalho de grande paciência, mas com um efeito surpreendente.
    Vi em Barcelona, neste Museu Frederic Marés que mencionas, obras absolutamente sensacionais e com uma qualidade excecional, igualmente executadas em cabelo humano.
    De ficar com a"boca aberta" perante tanta paciência e beleza conseguida com um material que tão estranho é para nós, hoje em dia.
    Hoje temos alguma sensação de que se trata de algo "macabro". Enfim, "mudam-se os tempos, mudam-se as vontades ..." lá dizia o poeta!
    Manel

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    1. Manel

      Creio que um dos teus prazeres quando comprar velharias é a possibilidade que elas te dão de desmonta-las, repara-las, retoca-las ou limpa-las. De facto, mal compras uma peça antiga, despareceste para a tua oficina e passas lás a tarde toda uma esquecida, sem colocar sequer o nariz cá fora.

      O teu comentário é uma descrição minuciosa da técnica, com que estas duas peças foram executadas, que certamente será preciosa, para aquando alguém, um profissional do restauro, daqui a uns anos, fizer uma pesquisa no google. Encontrará um texto que certamente lhe facilitará o trabalho.

      Vou corrigir o texto relativamente às iniciais.

      Um abraço e obrigado pelo teu comentário

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  2. Esquecia-me de te dizer que na segunda peça as letras que vejo, para lá do "P", que esta não me parece oferecer dúvida, são um "S", a primeira e um "L" a segunda.
    Manel

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  3. Olá, Luís. Eu acho super bonita a execução dos bordados, os riscos e a finalidade em homenagear os mortos queridos com trabalhos feitos com seus cabelos, acho que quem os mandava fazer sentia a dor da perda mais amenizada.
    Eu conheço a coleção de escumilha do Museu do Instituto Feminino da Bahia, acho que é o único aqui da Bahia que reúne tantos quadros feitos com os cabelos assustadores. Sempre os vejo mantendo uma certa distância, pois têm para mim um quê, ou muitos quês, de morbidez. Enfim, me dão certa agonia.
    Mas, enfim são bonitas as realizações.
    Recentemente em São Paulo fui visitar a coleção de bordados de Nina Sargaço e ela me mostrou, como um troféu, um par de brincos feitos de cabelo, tipo um trançado em forma de gota engastada em ouro. Ela ama, e eu fiquei com um pé atrás. O par de brincos, suponho, seriam joias de luto.
    Fuçando o Google atrás de joias de escumilha fui dar em uma tese de mestrado de Marize Malta da UFRJ, "Entre afetos e Estranhamentos: Objetos Maus e Cabelos no Mundo da Arte."
    Ela cita o museu de Salvador e descreve a confecção das joias com cabelos que seguia o mesmo princípio da renda de bilro, mas sem o uso da almofada.
    Um abraço.

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    1. Jorge

      Muito obrigado pelo seus contributos para este post. Conforme referi no blog, para escrever este texto usei exclusivamente o guia da casa-museu Frederic Marés, em Barcelona e não tinha uma ideia da extensão desta arte dos bordados com cabelo humano. Pelo vistos existiu também no Brasil.

      Estes, que eu mostrei poderão ser eventualmente franceses, mas no século XIX, por todo o mundo civilizado, as pessoas instruídas e cultas liam em francês e encomendavam naquele País livros e revistas em francês. Portanto, estes trabalhos poderão ser também portugueses. Enfim, quem sabe.

      No catálogo dessa casa-museu em Barcelona, referem também essas joias de luto, feitas com cabelos humanos.

      Vou procurar a na net a tese dessa Senhora, Marise Malta, para conhecer melhor estes objectos, que apesar de macabros não deixam de ser fascinantes e tocantes.

      Quando o meu filho era pequeno, eu próprio cortei-lhe uma madeixa de cabelo, que guardei numa caixinha. Na época tinha o cabelo de um castanho muito clarinho. Creio que deixei essa caixinha em casa da minha ex-mulher, mas emociono-me ao pensar nela, pois recorda-me quando lhe dava banho e o penteava. Enfim, somos uns sentimentais.

      Um abraço alfacinha

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    2. Entrei no Google para ver as escumilhas do nosso museu Henriqueta Catharino e vi muitas joias que não lembrava. Só lembrava dos quadros. A procedência de todos deve ser francesa, acho que aqui na Bahia não se fazia esse tipo de trabalho. As famílias ricas daqui mandavam confeccionar fora, suponho. Da próxima vez que for lá vou atentar para a fabricação e a quem pertenceram os tais trabalho com fios cabelos.
      Eu guardo a trança louríssima de minha irmã que estavam com uma tia. Se eu n fizesse isso se perderia. Aliás preciso procurar kkkk
      Um abraço.

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    3. Caro Jorge

      Andei a ver na net a coleção de escumilha do Museu do Instituto Feminino da Bahia e tem peças lindas. A hipótese de serem encomendadas em França é plausível. Como bibliotecário, já trabalhei em fundos do século XIX e inícios do XX e nesses tempos as pessoas abastadas recebiam catálogos franceses e encomendavam livros e revistas naquele País e estavam a par de tudo o que se escrevia em França. É perfeitamente possível, que através de uma revista francesa tivessem lido um anúncio de quem fazia estes trabalhos e tivessem feito a encomenda. Sei também que havia catálogos com os modelos possíveis editados também em França.

      Um abraço

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  4. Salve Luis! Adquiri no mercado de pulgas de Pelotas um camafeu e ao abrir descobri que era uma joia de luto com dois compartimentos. Em um havia uma foto de um jovem Senhor à modo do século XIX o outro já estava vazio. Provavelmente havia uma mecha de cabelo. O fundo da foto era emoldurado por fino papel de seda roxo o que comprova ser uma joia votiva à memoria de um ente falecido. Minha esposa e eu guardamos a foto. Sabemos que durante tempo ela esteve junto ao peito dolorido de uma mãe ou quiçá esposa. São anônimos, histórias e vivencias misteriosas para nós. Uma luta constante de permanecer vivo na memória contra o esquecimento irmão gêmeo do tempo que a tudo devora. Essas jóias e obras de arte nos lembram de da máxima que está gravada em alguns portões de campos santos: Nós que aqui estamos por vós esperamos! Mas como cristão meu coração se consola nas promessas divinas:""Porventura pode uma mulher esquecer-se tanto de seu filho que cria, que não se compadeça dele, do filho do seu ventre? Mas ainda que esta se esquecesse dele, contudo eu não me esquecerei de ti." (Isaías 49 : 15) ainda: João 11:25-26 ARC
    "Disse-lhe Jesus: Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá; e todo aquele que vive e crê em mim nunca morrerá. Crês tu isso?" Abraço d´além mar!

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    1. Caro Edwin

      Muito obrigado pelo seu comentário tão interessante.

      No guia da guia da casa-museu Frederic Marés de Barcelona aparecem reproduzidas algumas dessas joias de luto feitas com cabelo humano.

      Pessoalmente acho esses objectos muito comoventes e tocantes. Creio que todos os povos sempre sentiram a necessidade de manter viva a memória dos antepassados. Os africanos faziam-no através das narrativas orais, com os feitos dos que já tinham partido. Os romanos tinham uma divisão da casa para guardar as máscaras de cera dos antepassados e nós, na civilização judaico-cristã, temos a crença na imortalidade das almas, a genealogia e sobretudo a História, disciplina científica, que no fundo é um culto aos mortos, uma luta contra o esquecimento.

      Eu próprio que sou bibliotecário, conservo e dou voz a todo aquilo que centenas ou milhares de autores escreveram e que agora estão mortos. A minha missão é contribuir para que o pensamento deles continue a viver.

      Um grande abraço

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