A nossa seguidora misteriosa decidiu enviar-nos por e-mail uma peça atribuída à Fábrica da Bica do Sapato.
Apesar de as faianças deste centro de fabrico serem das mais procuradas pelos coleccionadores e antiquários o conhecimento da sua produção é escasso. Na realidade, sabe-se através dos documentos de arquivo, que a Fábrica existiu entre 1796 e 1818 e que em 1824 já não constava dos mapas estatísticos das fábricas do Reino, que se efectuavam nas altura.
Sucedeu-lhe no mesmo sítio, na calçada dos Cesteiros, ali para Santa Apolónia, mas uma década mais tarde, a Fábrica de Vítor Roseira, que produziu milhares de azulejos paras as fachadas dos prédios lisboetas.
A única peça que se conhece marcada da Fábrica da Roseira é esta Lavanda, que pertence a uma colecção particular e foi a partir dela que Artur Sandão, o celebre especialista em cerâmica, por comparação estilística, fez pela primeira vez uma série de atribuições a outras peças sem marca e a partir dessas, os antiquários fizeram mais outras quantas atribuições.
Esta explicação para a existência de uma única peça marcada da Bica do Sapato não se prende com o acaso, mas antes, porque na sociedade de antigo regime portuguesa, ainda corporativa, era necessário a uma fábrica, que pretendesse entrar em funcionamento, requerer um alvará à Junta de Comercio, provando ser capaz de fabricar produtos de qualidade. Assim tal como o operário para passar a mestre sapateiro ou alfaiate tinha que apresentar a obra-prima, a fábrica candidata ao Alvará submetia à consideração da referida Junta uma peça de grande qualidade e com assinatura. Esta Lavanda talvez tenha sido uma dessas peças.
Escrevi estas palavras com base num dos textos de Alexandre Nobre Pais e João Pedro Monteiro presente na obra Cerâmica neoclássica em Portugal. – Lisboa: IPM, 1997
Obrigado por mais essa aula!
ResponderEliminarabraços
Fábio
A terrina é uma peça que não consigo deixar de admirar, tal a sua qualidade.
ResponderEliminarTodos nós, aqui, nesta pequena comunidade, não podemos deixar de experimentar um prazer estético na nossa produção cerâmica mais rude, por tudo aquilo que ela representa, como a repetição de formas que séculos de uso permitiram adaptar à função, o vidrado algo baço que cobre a superfície como camada de seda, de que hoje é difícil encontrar par, os brancos tintados de uma tonalidade amarelada, azulada, esverdeada ou acastanhada, que servem de fundo ao traço imaginativo do artista/artesão, que repetiu motivos tradicionais, copiou outros provenientes de paragens longínquas ou então, obra suprema, decidiu recriar modificando ou adaptando, por tudo isto, e muito mais, não é possível deixar de admirar a nossa cerâmica.
No entanto, e a par de tudo isto, apareceu uma segunda vertente na nossa cerâmica do século XVIII, liderada pela influência europeia introduzida pela mão de Brunetto, que veio instalar-se da Real Fábrica do Rato, e que se caractariza por uma produção de um cunho mais internacional, mais erudito, de que, creio, esta terrina deve ser uma herdeira.
É o período de ouro da nossa cerâmica, pois data do último quartel do século XVIII a fundação das principais fábricas do país, como Massarelos, Juncal, Darque (Viana do Castelo), Miragaia, Cavaquinho, Estremoz, as de Vandelli em Coimbra e no Porto (Cavaquinho), Santo António do Vale da Piedade e, por fim, a da Bica do Sapato.
Sabe-se que a Real Fábrica do Rato partilhava pintores com a da Bica do Sapato, como Francisco de Paula e Oliveira, por isso não seria de estranhar que a influência duma extravasasse para a outra, e vice-versa.
Fico extasiado perante o recorte do pé desta terrina, a discreção da forma das asas, a delicadeza e elegância do desenho decorativo, o uso controlado das cores, enfim, até a própria forma do bojo está perfeitamente adequada. Nada é forçado, tudo parece fluir com uma naturalidade que não deixa de nos impressionar pelo equilíbrio.
Nada está a mais, e ainda que a cor forte colocada na pega da tampa possa parecer ferir o conjunto, está a equilibrar a faixa da mesma cor que percorre a base da peça, e é uma boa forma de a coroar condignamente.
É uma peça absolutamente fantástica, obrigado aos donos por permitir a sua divulgação (não sei se eu o faria, ou talvez o fizesse a contragosto, o que só vem abonar a favor daqueles) e a ti porque a publicaste com uma literatura perfeitamente clara e elucidativa.
Manel
Manel
ResponderEliminarObrigado pelo teu comentário muito bem escrito e muito conhecedor, em que sintetizaste perfeitamente as características da produção cerâmica do último quartel do Século XVIII. Foi brilhante
Obrigado pelo seu comentário, Caro Fábio
ResponderEliminarOlá Luís
ResponderEliminarMais uma deslumbrante e valiosíssima peça da nossa faiança.Bem haja à seguidora misteriosa.
Excelente o comentário do Manel que completou o seu. Uma verdadeira história de faiança portuguesa a rivalizar com o livro do José Queiroz.
A talhe de conversa diz ele "foi através de um amigo e carta de recomendação dele, que se dirigiu a casa do coleccionador da peça que apresenta assinada Bica do Sapato, na altura pertença do Sr.Dr Eça Azevedo, amável o recebeu deixou tirar fotos e estudar a peça.
Acrescenta ser a primeira que vê sem ser do tipo vulgar conhecida como faiança sapateira. Este belo exemplar feito decerto com destino especial, de pasta mais fina, do mais apurado esmalte e de mais cuidada decoração, número de perfeições que lhe dão, em conjunto,outro aspecto. Acrescenta que a julgar pelo compasso do anjo segura pelas pontas, é possível que a bacia, hoje incompleta,deveria ter o gomil, fosse feita para oferecer a um arquitecto, seria Mateus Vicente, autor da Basílica da Estrela, segundo diz, jurando presunção, deveria ter negócios com a fábrica do Rato e da Bica do Sapato que forneceram azulejos.
A Bica do Sapato primou nos reinados de D.José e de D. Maria I por decorações de flores,festões pendentes,paisagens e marinhas, motivos que repetem na azulejaria.
Na loiça, estes ornamentos reduzem-se muitas vezes, a simples repregos, como troncos de árvores, trechos de paliçadas e arbustos, que se antepõem a rápidas indicações marítimas ou camponesas, quase sempre na cor de vinho.
Na Bica do sapata as peças pintadas nas cores tradicionais do século XVIII, azul, verde, amarelo, cor de vinho e cor de laranja.
Remata o autor que parte da produção de Estremoz, certamente foi para ali levada por um pintor da Bica do Sapato e também a da fábrica de Darque, em Viana do Castelo.
Nelas a decoração tem, nas composições, o carácter das faianças da Bica do Sapato, e, na maneira de pintar,o sabor das de Darque".
Pois quem saberá a origem da bela peça apresentada?
Beijos
Isabel
Cara Isabel
ResponderEliminarO seu comentário veio muito a propósito e de de facto a Lavanda apresentada faria conjunto com um Gomil. Só nos resta imaginar a beleza do Gomil e Lavanda juntos.
A produção de faiança destes finais do XVIII, príncipios do XX é toda ela muito delicada e bonita e com um certo ar de família, sem dúvida, porque a Fábrica do Rato servia de escola aos ceramistas da época.
Beijos