sábado, 19 de novembro de 2011

Estampa do século XVII: D. Fernando I, Rei de Portugal


Mesmo muito antigas, as gravuras continuam-se a comprar baratas. Com moldura e tudo, esta custou-me tuta-e-meia, numa feirante, que em tempos foi minha colega de trabalho na Universidade Católica. Naquela época, era muito certinha a vestir, mas deve-se ter fartado de viver em frente a um computador, atender chamadas, a trabalhar das 9 às 6 horas e por consequência resolveu virar feirante.



Comprei esta estampa, porque há tinha três gravuras que herdei, representando os reis de Portugal. Faziam parte de uma colecção maior, que se encontrava no Solar dos Montalvões, em Outeiro Seco e que foi repartida pelos vários herdeiros. Portanto, tentei no fundo, de alguma forma reconstituir um pouco dessa colecção.



Posteriormente à compra, limitei-me a mandar arranjar um passe-partout aceitável para esta estampa e pregar uns cantos de metal dourado na moldura e coloca-la junto aos Reis de Portugal, que vieram de Outeiro Seco.

Depois há uns tempos, lembrei-me de procurar saber mais sobre esta estampa, isto é, de que livro tinha sido arrancada, como já é habitual.



Fiz uma pesquisa pelas primeiras palavras da legenda Ferrandvs Portvgalliae Rex IX. vixit ann. XLIV. obiit a.o MCCCLXXXIIIb e em menos de 3 minutos estava no site da Biblioteca Nacional Digital, descobrindo a que livro pertenceu esta estampa.


O exemplar da Biblioteca Nacional

A gravura fazia parte da obra Philippus prudens Caroli V. Imp. Filius Lusitanae Algarbiae, Indiae, Brasiliae legitimus rex demonstratus, que foi impressa em Antuérpia, na officina Plantiniana em 1639. O livro foi escrito por um tal Senhor Joanne Caramuel Lobkowitz, que era um homem completíssimo, matemático, escritor, filósofo e também historiador e é basicamente um ensaio para justificar a legitimidade de Filipe II em ocupar o trono português. Por isso, a obra apresenta uma galeria de todos os reis de Portugal, do qual Filipe II é o corolário lógico e legítimo. Descobri depois que esta publicação seiscentista se encontra integralmente digitalizada na Biblioteca Nacional de lisboa e é um encanto. Podereis desfolha-la em http://purl.pt/14358/1/index.html


Foi ilustrada por bons gravadores e artistas flamengos da época. A Flandres, que corresponde grosso modo a actual Bélgica, pertencia à Espanha e os filipes não pouparam dinheiro em artistas para embelezar este libelo, que justificava perante todos, que o reino de Portugal lhes pertencia por direito.

O frontispício da obra

O Frontispício é magnifico e está assinado por Erasmus Quellinus II (1607-1678), um pintor flamengo que trabalhou com Rubens.


Natureza morta de Eramus  Quellinus

Mas o que é mais curioso, é que este retrato de D. Fernando é aproveitado de outra obra mais antiga, Anacephalaeoses id est, summa capita actorum Regum Lusitaniae do Padre António Vasconcelos, também impressa na Flandres, em 1621.

Os desenhos das gravuras da Anacephalaeoses são da autoria de outro artista flamengo, Cornelis Galle (1576-1650) e o Erasmus Quellinus limitou-se retoca-los. No caso desta estampa, a diferença entre as duas versões é o nome do Rei, que nesta versão de Quellinus está FERRANVUS em vez de Ferdinandus.

Este Senhor Galle foi um gravador e um artista talentoso, que trazia atrás de si a tradição de uma família de gravadores. Viajou para Itália onde tomou conhecimento das obras de Raphaël, Ticiano, Guido Reni e das quais executou inúmeras gravuras, mas celebrizou-se sobretudo como gravador de obras de Rubens.


Judite e Holofernes de Rubens por Galle
Aliás os dois artistas que participaram nesta obra estão os dois à sombra de Rubens, por assim dizer.

É curioso, que quando comprei esta estampas por meia dúzia de euros, não imaginei toda a história que carrega esta simples folha de papel.

4 comentários:

  1. Jesus, e quanta história o Luís conseguiu descobrir a partir de uma legenda numa folha de papel!!! Fico maravilhada com estas suas pesquisas e descobertas!
    A gravura já me atrai só pelo facto de ser antiga e de ter feito parte de um livro antigo, mas então toda a história a ela associada deliciou-me.
    Dou por mim a pensar que o Luís deve ter o olhar muito treinado para descobrir gravuras nas feiras… Eu quando por lá ando só vejo louças :), é para isso que estou mais formatada, e mais raramente livros antigos. Santos e gravuras de que também gosto muito é raríssimo aparecerem-me à frente, mas acredito que na Feira da Ladra apareçam mais.
    Continuação de boas pesquisas, mas primeiro… tenha um bom domingo!

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  2. Maria Andrade

    Digamos que tenho o olho treinado por muitos livros antigos que me passaram pela mão e de uma forma quase intuitiva, sei quando uma estampa é realmente velha. Ou seja se pensar um pouco, sei dizer porque é antiga. O papel é grosso, apresenta marca de água e aquelas estriazinhas que se vêm à contra luz, buraquinhos feitos por bibliofagos e manchas de humidade. E depois, tive um pai que ensinou a gostar de gravura. Dizia-me que se não se pode ter pinturas originais boas, não se devem comprar cópias, mas antes gravuras, que são bonitas e baratas.

    abraços

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  3. Ai! A que trabalhos supérfluos se deu Filipe II de Habsburgo. Não carecia!
    Eram vários os pretendentes ao trono de Portugal, mas nenhum com o peso e poder de Filipe!
    Apesar de ser efetivamente um herdeiro político direto, tinha maior razão que essa ... tinha a força das armas, que, aliás, utilizou, comandadas pelo duque de Alba (quando vejo, na televisão, a que ainda detém o título de duquesa de Alba, só me dá vontade de me lançar ao chão a rir! Como as coisas se mudaram de forma radical! Bem, no final de tudo, e para se vingar do seu triste e patético aspecto, é ela que ainda habita Liria!).
    E as armas deste Habsburgo eram de peso!
    Não sei quantos na Europa conseguiriam resistir-lhes, pois lutou contra quase toda ela, desde a Inglaterra, passando pela França até aos Países Baixos, e era dono de um império onde o sol não se punha!
    Mas ele achou que era a solução mais lógica, anexar o país vizinho.
    Estas razões literárias não eram mais que flores para ornamentar o ramalhete, para que ele cheirasse melhor!
    Ainda bem que, pelo menos, mandou fazer gravuras decentes de quem o antecedeu no trono de Portugal! Do mal o menos!
    Esta é muito bonita, a par das outras que possuis. E está primorosamente executada.
    Durante muitos anos também me punha essa questão a que o teu pai deu resposta.
    Que utilizar para me rodear de coisas aceitáveis nas paredes?
    Cópias, só se forem de muito boa manufatura (Rembrandt foi bastas vezes copiado por artistas de mérito e, algumas dessa cópias, têm tanto interesse quanto os originais), mas, para estas, uma pessoa não tem, igualmente, capacidade económica.
    Fazer eu próprio as minhas pinturas ... bem, seria um enjoo! A diversificação é importante!
    E, durante anos, tive as minhas paredes com alguns, poucos, desenhos, aguarelas e um ou outro óleo, meus. Sempre me saíam baratinhos!
    Depois tinha algumas obras de alguns artistas contemporâneos que admirava, e que consegui adquirir, e um bric-a-brac feitos das coisas mais díspares, mas a que achava interesse, pois eram coisas genuínas.
    As gravuras vieram depois, por tua influência, e talvez por ver que eram peças que poderiam preencher as minhas necessidades de possuir uma qualidade miníma.
    Manel

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  4. Manel

    Há uma ampla literatura com caracter político, antes e depois da Restauração. Uma justifica a legitmidade dos Filipes, a segunda, portuguesa, prova que foram uns usurpadores.

    Mas não há dúvida que nesta obra os Filipes contrataram os melhores artistas flamengos, gente habituada a executar pinturas dos melhores mestres da época.

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