segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

O leque da pequena Cândida (1919-1929)

Há uns anos descobri na casa da família materna um embrulho, com uns 3 ou 4 cadernos escolares, preenchidos com uma letra infantil, uma lousa da escola e um leque infantil com um gato. O referido embrulho estava identificado como tendo pertencido a Maria Cândida, uma das irmãs da minha mãe, que morreu com 10 anos de idade. Emocionei-me com o pouco que a Maria Cândida deixou da sua existência, pois para além destes cadernos e do leque com o gatinho, que imaginamos que deveria ser o seu pequeno tesouro, ficou uma fotografia dela morta e julgo que é a única imagem dela. Claro, as suas roupas passaram para os irmãos mais novos, porque nos anos vinte, não havia lugar para a desperdícios ou superstições em vestir aos vivos roupa que pertenceu a mortos.




Também já não há ninguém que se lembre da pequena Maria Cândida viva. A minha mãe nascida em 1927, já não se recordava dela. A irmã do meio a Francisca também poucas memórias tinha dela. Sabia que era parecida com a irmã, tinha as mesmas pernas compridas de aranhiço, mas só por causa desta fotografia. Só a Maria Adelaide, a irmã mais velha se lembrava da Maria Cândida. Recordo-me de a ouvir contar que os pais lhe tinham prometido uma surpresa e ela convenceu-se que era uma boneca. Quando finalmente a surpresa nasceu na forma de uma menina, a Maria Cândida, a minha tia Maria Adelaide chorou e chorou de desgosto durante horas inconsoláveis, sentada nos degraus de uma escada, pensando na boneca que não recebeu.


Tirando estes pequenos episódios quase patéticos, não restou quase nada dos 10 anos de vida da Maria Cândida. Já não há ninguém vivo que a tivesse conhecido para a chorar. Ficou este leque com o gatinho.


10 comentários:

  1. Olá Luís
    Interessantes e carinhosas as recordações da pequena Maria Cândida. Uma fotografia, adormecida no tempo, com as vestes de um anjo, pronto a entrar no céu. Antigamente havia a necessidade de reter as imagens, principalmente de crianças,em fotografias tiradas nas suas mortalhas.Embora o condicionalismo fosse muito triste, as pessoas queriam guardar uma última recordação.Encaravam a morte com naturalidade.
    Vivi, bastante mais nova, uma experiência análoga. Na aldeia, em Trás-os-Montes, vieram pedir-me para fotografar um bébé, acabado de falecer. Na altura fi-lo com bastante sacrifício, mas hoje, já bem mais velha, compreendo a necessidade dos pais ficarem com uma lembrança do filho.
    Cumprimentos.
    If

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  2. Sim, creio que se trata de manter uma lembrança de um ente querido, como os antigos romanos mandavam fazer efígies tumulares, ou moldar uma placa de cera na cara do recém morto, para que constasse do panteão familiar, e que, em ocasião cerimoniais, saía à rua transportado por familiares.
    Ou aqueles túmulos medievais (costume que extravasou mesmo este período) de estatuária jacente.
    Fico sempre nostálgico com este tipo de produção, mas entendo-lhe a necessidade.
    Mais uma vez, ainda que a ideia seja algo mórbida, dou conta que estas irmãs todas (esta inclusive) me fazem recordar a cara da tua filha. Os genes estão presentes!
    Manel

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  3. Confesso, Luís, que me deixou um pouco emocionada este seu texto e as imagens que o acompanham.
    A morte de uma criança é algo que nos toca sempre, mas aqui penso que ganhou mais dramatismo pela presença de um objeto pessoal - uma ternura, o leque com o gatinho - certamente alvo da estima desta menina, que não teve tempo para ser a sua tia Maria Cândida.
    Não conhecia esta prática de fotografar as crianças depois de mortas, mas compreende-se que numa época em que havia poucas ou nenhumas fotografias em vida, os pais quisessem ficar com uma imagem dos seus filhos tão cedo desaparecidos.
    Muito tocante e bem escrito!
    Um abraço

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  4. Cara If

    É bem verdade. Existia este hábito de fotografar as crianças mortas. Durante a vida, os pais não tinham dinheiro para fotografar os seus filhos, por isso, quando a criança morria, mandavam fazer a única imagem dela. Conheço pelo menos 3 fotografias destas na minha família. Para a fotografia, montavam também um espectáculo à volta do caixão com crianças vestidas de anjinhos, que à luz da sensibilidade moderna parece macabro. No entanto, tal como a If, hoje tenho uma maior compreensão para com esees esses rituais fúnebres.

    Abraço

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  5. Manel.

    Talvez esta fotografia me tenha tocado tanto, porque revejo nela a minha filha, mas também a minha mãe e as irmãs. Tem de facto os mesmos genes.

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  6. Olá Luís!

    Os Romanos acreditavam que só morríamos quando fossemos completamente esquecidos pelos vivos.
    Sorte que restou este pequeno gatinho, que o Luís juntou a ela para a não deixar morrer.

    Um abraço
    Jmalvar

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  7. Maria Andrade

    Muito obrigado pelas suas simpáticas palavras. Este tipo de fotografias era de facto um hábito corrente. Esta está assinada pela sua mãe (minha avó materna) e destinava-se a ser oferecida ao padrinho da menina. Por qualquer motivo que se me escapa, a fotografia nunca chegou a ser oferecida e ainda bem, pois assim chegou até nós.

    Abraços

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  8. Joaquim

    Que bonitas e oportunas palavras. No fundo, definem este blog dedicado não só às velharias, como também às memórias.

    abraços

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  9. Que história interessante!
    Parabéns pelo blog!
    Bjos da Bruh!

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  10. cara Bruh Floripa

    Muito bem vinda ao meu blog e obrigado por ter gostado desta história um pouco triste, mas ao mesmo tempo tão comum.

    Abraços e volte sempre

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