Nossas Senhoras indo-portuguesas. Col. do Museu Histórico e Nacional do Rio de Janeiro |
O marfim de elefante era o mais usado para esculpir estas estatuetas, da qual este Menino Jesus bom pastor é um bom exemplo. Apesar de serem feitas na costa Ocidental da Índia, os seus artistas preferiam usar dentes de elefante africano, em vez dos elefantes indianos. Os dentes dos paquidermes africanos são maiores que os indianos. Dentro dos africanos, davam-se preferência aos dentes dos elefantes de regiões húmidas, como do Gabão e do Congo pois apresentam um marfim com poucos veios e de cor muito mais branca que aqueles criados nas savanas mais secas.
Estas esculturas indo-portuguesas representavam temas cristãos e constituíam meios eficazes usados pelas Ordens religiosas para ensinar ou converter ao catolicismo homens e mulheres nascidos budistas, muçulmanos ou hindus. Os temas mais típicos eram o Paraíso, a Árvore de Jessé, as Santas Mães, A Virgem, O Presépio, a Sagrada Família, o Menino Jesus deitado, vários santos, mas sobretudo Cristos crucificados e o Menino Jesus bom Pastor.
Menino Jesus Bom Pastor. Col. do Museu Nacional Machado de Castro |
Como o nome indica, esta escultura apresenta o Menino Jesus como pastor, com um cordeiro ao ombro e rodeado de outras ovelhas, que representam obviamente os seres humanos. É uma iconografia que remonta aos primeiros tempos do Cristianismo, ao período em que a nova religião se praticava em segredo nas catacumbas romanas e ilustra a parábola Eu vos digo que do mesmo modo, haverá mais alegria no céu por um só pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que não precisam de conversão (São Lucas, 15,4-7).
Esta parábola retratada pelo menino que recuperou a ovelha perdida fala-nos da importância de cada indivíduo, de um único individuo entre milhões. Cada um pode rever-se na ovelha resgatada e esperar ser salvo por um Deus superior.
O doce Bom pastor desapareceu durante a Idade Média e só ressurgiu na arte europeia durante a Contra-reforma e com um particular vigor na Índia, nos séculos XVII e XVIII, onde as ordens religiosas procuravam mostrar com estas imagens aos hindus ou budistas que todos eram ovelhas importantes para a Igreja, mesmo os mais intocáveis.
Por outro lado, houve um fenómeno muito curioso, pois a iconografia do Bom Pastor foi reinterpretada por artesãos nascidos hindus ou budistas, segundo as suas tradições religiosas tornando-os casos excepcionais de sincretismo artístico.
No hinduísmo, uma das encarnações de Vishnu é Krischna, também chamada Govinda, que significa Pastor. Este Krischna foi perseguido na infância por um tio que o queria matar e a sua mãe fê-lo criar no campo, no meio de uma família pobre, como pastor entre os pastores. Esta figura do menino ameaçado, deus e pastor é das mais populares na Índia e é natural que os novos católicos de Cochim ou Goa se sentissem mais confortáveis se pensassem em Jesus como uma figurinha próxima de Krischna.
A atitude budista: o desligamento das coisas terrenas. Escultura do nosso amigo do Norte |
Do Budismo, estes meninos Jesus, recolheram a atitude de êxtase, caracterizada pela expressão ausente, os olhos fechados, os dedos apoiados na têmpora e a face inclinada contra a mão direita. Foi com esta que Buda atingiu a iluminação ao fim de 49 dias de meditação, sentado à sombra de uma figueira.
Peanha de Menino Jesus Bom Pastor. Museu Nacional Machado de Castro. |
Estes Meninos Bons Pastores indianos estão sentados em peanhas, cheios de figurinhas e com uma significação que pode ser complexa. A obra do nosso seguidor do Norte é das mais simples e está muito danificada. Podem-se ver cordeirinhos aqui e acolá e talvez as folhas de uma palmeira, mas muitos destes Bons Pastores estão sentados em montes, cheios de figurinhas, como santos, representações da natividade, pássaros bebendo em fontes sagradas, ou uma gruta com uma Maria Madalena arrependida, deitada à moda indiana, que foi a posição adoptada por Buda para morrer. A simbologia destes montes é naturalmente cristã, pois alude ao Calvários e ao Presépio, mas a distribuição em andares das figuras sugere as torres dos templos indianos.
Col. de Bons Pastores do Museu Histórico e Nacional do Rio de Janeiro |
Enfim, a simbologia destes montes é tão complicada, como é fino o lavor destes trabalhos em marfim.
Além de admirar o trabalho artístico deste Menino Jesus, gosto também do seu significado histórico. Mostra os descobrimentos Portugueses não só como a façanha heróica dos portugueses, que nos ensinaram nos livros da quarta classe, à força de muita reguada, mas também como um fenómeno artístico onde se cruzaram o cristianismo, o budismo e o hinduísmo.
Alguma bibliografia:
- A expansão portuguesa e a arte do marfim. - Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991
- Arte do marfim / Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses ; coord. Mafalda Soares da Cunha. Porto : C.N.D.C., 1998
Caro Luís
ResponderEliminarTenho gostado muito destes posts que tem dedicado à iconografia do Menino Jesus. Quando vi a fotografia da imagem do seu seguidor do Norte, dei comigo a achá-Lo diferente do habitual, parecendo-me antes um pequeno pajem. Não conhecia a representação do Menino Jesus Bom Pastor e, não sei, se sugestionada pelos seu texto e por outra imagens que entretanto fui pesquisando, acho até, que a posição das pernas da imagem da terceira fotografia,são também fruto da influência de que fala.
Cada vez mais, acho que o Luís deveria pensar seriamente em transformar estes seus posts, num livro. Contribuiria muito mais pela divulgação cultural do que qualquer Ministério ou Secretaria de Estado. É que, para além do aspeto didático dos seus textos, eles têm o condão de nos predispor para a vontade de queremos saber mais e isto, quanto a mim é que é difícil de se conseguir.
Beijos e bom fim de semana.
Olá Luís,
ResponderEliminarNão tenho podido estar muito pela internet, tenho que resolver problemas de acesso, mas tive que vir dizer-lhe que achei este seu post mais um contributo de primeira qualidade para o conhecimento da nossa herança cultural. O que aprecio mais nestes posts é que ao contrário dos livros da especialidade, aqui as coisas importantes e interessantes são ditas em linguagem simples e cativante, com uns toques de humor que prende a atenção de qualquer um de nós.
Por isso, que me perdoe a Maria Paula por esta ligeira discordância :) mas prefiro ler os textos do Luís neste meio despretensioso que os torna acessíveis de uma forma tão agradável.
Eu convivi desde miúda com um Menino Jesus Bom Pastor, em casa da mesma família onde há o outro Menino Jesus com o vestidinho, por isso estas imagens indo-portuguesas sempre me despertaram interesse em museus e em catálogos, mas fartei-me de aprender aqui coisas novas, nomeadamente a explicação desta iconografia e a influência que aqui haverá das mitologias hindu e budista.
É engraçado que nessa família ouvi sempre referirem-se a este Menino Jesus como um S. Joãozinho. Tendo a peça há várias gerações, pouco conhecedores de antiguidades e da história desta iconografia, era o que ali viam por causa das ovelhas ou cordeiros que estão representados. E eu adorava saber que se podia desmontar e voltar a montar, as peças encaixavam todas com espigões... São aquelas memórias que ficam muito bem guardadas e que aqui vim recuperar.
Parabéns ao seu amigo e seguidor que tem uma peça invejável!
Abraços
Maria Paula
ResponderEliminarObrigado pelo seu comentário. De facto, tento adaptar o que leio nos livros de arte, simplificando, de forma a tornar o seu conteúdo próprio para a internet, onde ninguém consegue ler grandes textos.
Quanto à posição das pernas da terceira fotografia, tem toda a razão, é perfeitamente oriental.
Beijos
Maria Andrade
ResponderEliminarPercebo esse problema da falta de tempo. O mesmo se tem passado comigo. Falta-me tempo para escrever aqui e comentar os blogs desta comunidade. Houve a morte da minha mãe, estive também de férias e este fim-de-semana esqueci-me do PC no Alentejo.
A iconografia do Menino Jesus Bom Pastor confunde-se frequentemente com S. João Baptista, por causa do cordeirinho e da vestimenta em pele de ovelha. Talvez por isso chamassem S. Joãozinho a esta figura.
A arte indo-portuguesa, a arte nambam, a arte afro-portuguesa, a porcelana de exportação ou companhia das Índias são fenómenos gerados pelos descobrimentos portugueses. A esse propósito, há uns tempos, falou-se na criação de um Museu dos Descobrimentos em Lisboa, o que para mim é uma tolice, pois quase todos os museus lisboetas são sobre os Descobrimentos. Basta entrar no Museu Nacional de Arte Antiga e admirar as cómodas em pau-santo, o mobiliário indo-português, as faianças, a porcelana chinesa, os marfins e os biombos namban para se ter uma percepção muito boa do que foram os descobrimentos portugueses na arte, nas ideias e no comércio.
Bjos e obrigado
Boa tarde,
ResponderEliminarna procura de mais informações sobre a arte indo-portuguesa, encontrei o seu blog por acaso e tomei a liberdade de deixar aqui o link para uma peça que pus à venda no eBay: http://www.ebay.com/itm/200832429307?ssPageName=STRK:MESELX:IT&_trksid=p3984.m1555.l2649
Cumprimentos.
Luiz, possuo uma escultura de casal imperador e imperatriz toda talhada em marfim e uma mesa,cmo posso te enviar por email fotos,todas estao a venda.
EliminarCaro Paulo
ResponderEliminarMuito obrigado pelo seu comentário e a sua peça é muito bonita
Um abraço
Tenho uma imagem do Menino Jesus Bom Pastor de origem portuguesa e gostaria de lhe mostrar para ver seus comentários
ResponderEliminarCaro(a) anónimo(a)
EliminarTerei muito gosto em ver imagens da sua peça e se souber alguma coisa de útil, partilharei consigo. Pode escrever para montalvao.luis@gmail.com
Um abraço