quinta-feira, 21 de junho de 2018

Santa Helena: pagela francesa do século XIX

Desde os meus trinta e poucos anos, fui-me tornando aos poucos num coleccionador de santinhos em papel, o que é um hábito estranho, já que sou um ateu empedernido. Talvez porque tenha sido sempre um homem com o gosto de estar contra a maré e até de chocar, comecei a comprar aquilo que para as pessoas do meu meio, gente de esquerda ou descristianizada, era insuportável, os santinhos, as virgens e os Cristos e outras imagens piedosas. Normalmente, o meu coleccionismo por estas imagens foca-se no século XVIII, mas por vezes gosto de algumas das pagelas do século XIX, estampadas em papel finamente recortado, como esta Santa Helena, que comprei na Feira de Estremoz pelo preço irrecusável de um euro.

Esta pagela foi impressa em Paris, por L. Turgis Le Jeune, activo entre 1855–87. A casa Turgis (1828-1928) foi uma das maiores editoras de pagelas e outras beatices do seu tempo e em 1858 abriu até uma filial em Nova Iorque, para satisfazer as encomendas dos milhões e milhões de católicos, apostólicos e romanos de todas as Américas. Portanto, as estampas da Casa Turgis encontram-se um pouco em todo o mundo Católico, são baratas e apesar de uma certa religiosidade piegas, que denotam, não deixam de ter um certo charme.
 
O verso da pagela. Impressa em Paris por L. Turgis Le Jeune
Esta Santa Helena viveu entre 250 e 329 no espaço do antigo Império romano e foi mãe do primeiro imperador cristão, Constantino e terá sido ela quem descobriu na Terra Santa a Cruz onde Cristo foi supliciado, bem como os pregos e outros instrumentos do martírio. Helena é uma figura interessante. Terá tido uma origem humilde e trabalhava numa estalagem quando conheceu o general Constâncio Cloro, com quem casou e teve filhos. Este Constâncio Cloro estava preparado para grandes voos e acabou por chegar a imperador de Roma, não sem antes repudiar a pobre Helena, cuja origem humilde não combinava muito bem com os cargos importantes que veio a acumular. Porém, quando o Imperador Constâncio Cloro morreu, quem herdou a púrpura imperial foi Constantino, o filho de ambos, que chamou a mãe à corte, concedendo-lhe o título de Augusta, bem como alguma preponderância nos negócios de estado. Segundo a tradição, terá sido Helena quem influenciou Constantino no sentido de conferir liberdade de culto aos cristãos através do édito de Milão, em 313.
A iconografia típica de Santa Helena: a Cruz, a coroa, o manto imperial e os três pregos da Cruz
Contudo Helena notabilizou-se na história Cristã, por ter descoberto a cruz onde Cristo foi supliciado, numa viagem que empreendeu à terra Santa, transportando-a de volta consigo para Constantinopla.
 
No fundo Santa Helena é a precursora de um vasto movimento que se estenderá por toda a Idade Média e Idade Moderna de procura de relíquias relativas à vida de Cristo, da Virgem e das centenas de santos, que preenchem o calendário católico. Depois dela, empreendem-se viagens à Terra Santa e à Ásia Menor para encontrar o dedo de um santo ou o manto de uma mártir ou a unha de uma santa. As igrejas orgulhavam-se de ter nas suas colecções de relíquias, objectos tão estranhos aos nossos olhos contemporâneos, como o cordão umbilical do Menino Jesus ou o seu prepúcio ou uma pena da pomba do Espírito Santo. Pedacinhos da Cruz eram então às centenas por toda a Europa, de tal forma que no Renascimento, os humanistas comentavam com ironia que se juntassem em todos os lenhos da Santa Cruz, um barco inteiro não seria suficiente para os transportar.
 
Na verdade, esta proliferação de relíquias tem uma explicação, que faz sentido do ponto de vista religioso. No passado, quando se fundava uma igreja nova, por exemplo dedicada a um santo mártir, pedia-se a uma igreja mais antiga para ceder um dente da caveira do mesmo santo e era à volta dessa relíquia que erguia o novo templo.
 
 

Em conclusão, Santa Helena é a pioneira desta procura incessante de relíquias, que é um dos traços mais fortes de todo o Cristianismo. Também por essa mesma razão, no cristianismo ortodoxo, Helena de Constantinopla é a padroeira dos arqueólogos.
 
Alguma bibliografia e links consultados:
 
Iconographie de l'art chrétien / Louis Réau. - Paris : Presses Universitaires de France, 1955
 
 

8 comentários:

  1. Uma beleza a estampa. Tenho no livro A Luz Perpétua uma gravura de Santa Helena muito bonita. Como vc, adoro um santinho antigo e velho que ninguém mais presta atenção e joga fora - é bom que eu pego! - eram tão lindos e delicados...adoro quando compro um livro e cai um santinho de dentro, se tem "dizeres" atrás tanto melhor.
    Se a Santa Helena é padroeira dos arqueólogos, por extensão, ela pode ser também a padroeira daqueles que gostam de velharias. Aliás a Helena parece ter sido uma acumuladora, "guardadeira" de coisas velhas, "futucadeira" de brechós de sua época e doida atrás de uma relíquia, uma velharia.
    Antonio Carlos Magalhães político famoso aqui na Bahia era devoto de Santa Helena - a mãe tinha o nome da santa. No pescoço ele levava inúmeras medalhas e entre elas estava, é claro, a da padroeira dos loucos por velharias.
    Salve Santa Helena! Que nunca nos falte um pedacinho de papel velho em casa.
    Um abraço.

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    1. Jorge

      A família da minha mãe era muito religiosa ( aliás naquela época eram todas) e nos velhos livros de devoção, que existiam naquela casa, encontrei muitos santinhos ao folhear aqueles livros e foram sempre momentos comoventes.

      O gosto e o culto das relíquias que dominou toda a Idade Média e Moderna criou um colecionismo, cujas peças estão hoje nos grandes museus europeus. Para guardar as preciosas relíquias, os abades, os papas, os bispos ou os reis encomendam aos ourives ou aos escultores relicários em ouro, prata, marfim ou nas melhores madeiras, adornados com pedras preciosas e finamente trabalhados. O culto das relíquias criou verdadeiras obras de arte. Aqui no Museu Nacional de Arte Antiga temos por exemplo o relicário da Rainha D. Leonor, que é uma das obras-primas deste Museu. Veja a imagem em http://www.museudearteantiga.pt/colecoes/ourivesaria/relicario.

      Portanto, o Jorge tem toda a razão, quando afirma que Santa Helena é também padroeira dos colecionadores e acumuladores.

      O culto de Santa Helena foi dos mais populares em todo mundo cristão. Helena deve ser um dos mais comuns em toda a cristandade.

      Um grande abraço

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  2. Sempre achei piada a este tipo de papel rendilhado, quer seja fabricado de forma mecânica, quer seja do tipo dos "canivet", estes sim, feitos de forma artesanal.
    Os últimos denotam uma paciência sem limites, como aquela que eu gostaria de ter.
    Creio que esta tonalidade azul acinzentada do entorno ficará muito bem com uma moldura dourada a folha.
    Terás de ter paciência até encontrar uma, ou então, talvez até já a tenhas nas que vais comprando avulso.
    Manel

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    1. Manel

      Estas pagelas francesas do XIX com os seus rendilhados feitos mecanicamente tem o seu encanto. Claro, os canivets mais antigos, feitos à mão são mais espectaculares, mas muitos raros.

      Como são pequeninas estas pagelas são fáceis de colocar em qualquer parte. qualquer canto de parede serve.

      Um abraço

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  3. Olá, Luís, aqui em Salvador, na Basílica, há uma série de bustos relicários do XVII muito bonitos, todos trazem um ossinho qualquer, uma coisinha do santo, um fragmento. Há alguns anos vieram as relíquias de Santo Antonio de Lisboa para o Brasil. Relíquias itinerantes, peregrinas.
    Na Itália tem muita coisa...
    Minhas relíquias são os meus papeis velhos que coloco no blog.
    Abraço.

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    1. Jorge

      Adoro relicários. Há-os de todos os tipos e feitios, mas um dia gostava de ter um daqueles que são um braço com uma mão. Mas essas peças são normalmente caras.

      Como escrevi no blog, na fundação de uma igreja está quase sempre uma relíquia, além de que muitas delas colecionavam relíquias, que eram objecto de intensa devoção.

      A relíquia em si tem sempre um valor simbólico. Pode ser apenas uma madeixa de cabelo de quem nos foi muito querido, ou uma simples folha anunciando um detergente, que estava na moda na nossa infância e que de algum modo nos transporta aquele tempo.

      Um abraço

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  4. Também gosto de pagelas antigas e esta é bem bonita. Bom dia!

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    1. Margarida

      Estas pagelas francesas do século XIX tem muita piada. É curioso que na edição portuguesa dos Souvenirs pieux da Marguerite Yourcenar escolheram uma destas pagelas do século XIX para a capa, o que resultou lindamente.

      Bjos

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