quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Uma menina holandesa: figurinha em biscuit da Gebrüder Heubach


Há muito que não escrevia nada no blog. Mudei de casa no passado dia 29 de Agosto e como sou colecionador de velharias, foi uma mudança épica. Passei todo o mês de Agosto a embalar tarecos, de seguida, ao longo de Setembro e Outubro a desencaixotar, escolher novos locais e a pendurar e assim continuarei por mais uns tempos. Pelo caminho mandei fazer obras e ainda houve que lidar com toda a papelada, que uma mudança implica, de que não me apetece sequer referir, pois este é um blog de memórias e velharias e não um movimento cívico de cidadania. Mas, estou numa casa bastante maior, num bom sítio, com metro a 5 minutos a pé e estaciono o carro à frente de casa. Numa palavra, sobrevivi e estou bem.



Para me recompensar de todo este esforço, ao longo do qual perdi quatro ou cinco quilos, comprei on line uma figurinha de biscuit, uma menina holandesa. Apesar de na página de internet onde a encontrei não haver referência a marcas nem fotografias destas, percebi logo pela rosto da menina que só podia ser da Heubach, essa fábrica alemã da Turíngia, que celebrizou pela graça e qualidade das suas figurinhas de biscuit, mas também pelas bonecas para as meninas brincarem e que tanto umas como outras são hoje em dia disputadas pelos colecionadores. Com efeito, tenho um piano baby desta marca, que tem exactamente a mesma carinha laroca desta menina.

O meu piano baby da Gebrüder Heubach


No momento da transação, quando desembrulhei a peça e observei-lhe as costas, percebi que não me tinha enganado e lá estava a marca incisa com os raios de Sol usada pela Gebrüder Heubach.

A marca foi usada pela Heubach entre 1882 e 1915,



O passo seguinte foi procurar mais informações sobre esta menina em biscuit na internet, já que não disponho de bibliografia sobre o assunto. A marca foi usada pela Heubach entre 1882 e 1915, mas na maioria das páginas, que consultei atribuem estas figurinhas a um período que vai entre 1900 a 1910. Esta menina holandesa foi fabricada em diversas variantes, uma, como esta que comprei, sentada com um par de baldes, uma outra versão com dois cestos e outra ainda sem nada nos lados, mas também sentada. Igualmente tinha o seu par, um menino holandês, também ele com diversos tipos de recipientes em cada lado. Foram também produzidas em vários tamanhos e ainda em porcelana, o que desconhecia, porque acreditava que a firma anteriormente referida se tinha especializado nas figuras de biscuit.






Como referi anteriormente, a Gebrüder Heubach estava localizada no Sul da Alemanha, na Turíngia, mais exactamente em Lichte, um centro de produção de porcelana muito activo, onde funcionava uma escola de artes, na qual as fábricas de cerâmica recrutavam muito artistas, o que explica a qualidade destas figurinhas. Tenho até o palpite que quem concebeu o meu piano baby e esta holandesa foi o mesmo artista. Mas pesquisar em sites alemães é complicado e não tenho acesso à bibliografia sobre o assunto para emitir grandes opiniões. Uma senhora alemã, Dagmar Lekebusch publicou até uma monografia sobre o assunto Gebrüder Heubach: ein thüringischer Porzellanbetrieb und seine Figuren im Wandel der Zeiten (1843-1938), onde fez um levantamento dos artistas que colaboraram nesta fábrica e dedicou um capítulo só para as figurinhas holandesas, mas infelizmente só índice da obra se encontra on-line.


Esta figurinha de menina holandesa foi fabricada pela Gebrüder Heubach mais ou menos entre 1900-1910 e deve ter estado muito protegida, ao longo dos seus 120 anos de existência, pois não tem uma única falha, um dedo quebrado, vestígios de colagens ou uma racha, como é habitual nestas peças. Estaria numa vitrina, bem fechada, fora do alcance das crianças, para as quais estas figurinhas, pareceriam brinquedos preciosos muito apetecidos para tocar, mexer e inventar histórias com elas. Felizmente, há muito que deixei de ser criança e posso pega-las e admira-las.




Algumas ligações consultadas:


terça-feira, 13 de agosto de 2024

Um prato de Miragaia marcado




Nos últimos anos tenho publicado pouco sobre faiança portuguesa. Não porque tenha perdido o interesse, mas coleccionar terrinas, molheiras, pratos, jarras e travessas é uma prática que implica ter espaço e na assoalhada e meia em que tenho vivido até agora, já não há paredes livres, nem tampouco tampos de móveis para expor mais peças. Alguns dos pratos foram até parar ao tecto, de acordo com uma inspiração colhida no Palácio de Santos em Lisboa.

Mas a carne é fraca e como estou em vias de mudar de casa, comprei noutro dia por um preço absolutamente irrecusável um prato de sopa, do motivo País, com a marca incisa, SP, dentro de uma reserva oval. Quando o adquiri, já não me recordava exactamente a que correspondia a marca SP, mas sabia que este motivo País tinha sido produzido por quatro fábricas, Miragaia, Santo António de Vale da Piedade, Alto da Fontinha e ainda Viana. Como as peças de Viana são uma variante mais característica este prato só ó poderia ser das três primeiras fábricas e portanto o preço que paguei foi baixo. Os exemplares marcados têm sempre maior valor económico, mas também um interesse acrescido para o conhecimento e evolução e produção desta ou daquela fábrica.

A marca incisa, SP, dentro de uma reserva oval


Cheguei a casa e foi consultar o catálogo da exposição Fábrica de Louça de Miragaia. - Porto : Museu Nacional do Azulejo, 2008, que é fundamental para quem se interessa por faiança e logo na página 250, estava reproduzida esta marca, como sendo de Miragaia, do segundo período de laboração da fábrica, entre 1822-1850. Fiquei todo contente, pois tinha acertado na mouche e comprado um prato Miragaia autêntico.




Em termos de funcionalidade, parece-me um prato de sopa. Mas curiosamente, no catálogo da exposição de Miragaia, os autores não usaram as expressões prato de sopa ou raso, mas sim prato com covo acentuado ou pouco acentuado. Já tinha lido que a terminologia para designar a louça de servir neste 2º quartel do século XIX era diferente daquela que usamos hoje dia, o que provavelmente explica essas designações dos autores do referido catálogo. Consultei então o Itinerário da faiança do Porto e Gaia, do qual consta um glossário dos termos usados na época. Assim, o prato raso individual, no qual se serviam alimentos sólidos era designado por prato ladeiro ou de guardanapo. Ao prato apropriado para comer sopa, de caldeira mais funda da que o prato ladeiro chamava-se prato sopeiro.

Em suma, este é um prato sopeiro com a decoração País, fabricado por Miragaia, na cidade do Porto, entre 1822-1850.



É certo que o prato foi muito mal tratado ao longo dos seus quase duzentos anos de existência e por isso foi mais barato, mas também não vou usa-lo. Irá para uma parede na minha nova casa a aí terminará os seus dias numa reforma tranquila.



Alguma bibliografia consultada:

Fábrica de Louça de Miragaia. - Porto : Museu Nacional do Azulejo, 2008.

Itinerário da faiança do Porto e Gaia. - Lisboa : Instituto Português de Museus, 2001.

sexta-feira, 26 de julho de 2024

Um faqueiro de prata formado por três gerações




Desde há uns tempos para cá tenho publicado as minhas pequenas aventuras para completar o faqueiro de prata da minha avó Mimi, estilo D. João V, que foi dividido pela família. Assim, tenho vindo a juntar peças de várias épocas e estilos, portuguesas na sua maioria, uma outra francesa e até uma alemã e um belo dia darei um jantar para a família, com um faqueiro em prata.

Estes meus textos impressionaram a irmã do Manel, a Manuela, que resolveu oferecer-me um grande conjunto de talheres soltos, uns de prata, outros de alpaca e outros ainda de metal com baixa percentagem de prata, a chamada prata francesa. Alguns em mau estado, outros a precisar apenas de uma limpeza profunda Em todo o caso, isto não foi uma prenda, foi um prendão, se é que o termo existe em português.

O primeiro trabalho foi separar por material, prata, alpaca e metal prateado e depois por serviço e destaquei um conjunto ainda grande de 17 talheres, muito simples e bonitos, que em tempos terão formado um faqueiro, que iria à mesa nos jantares e almoços dos dias de festa. Desse faqueiro, sobraram as colheres de sopa, em número de 7 e as de doce, em número de 10.

As colheres de doce


Aparentemente é um conjunto coeso, um faqueiro, qualquer coisa que se ofereceu a uma menina família no dia do seu casamento, mas à medida que o ia limpando, fui encontrando marcas de diferentes ourives, cidades e épocas.

As marcas de prata são um assunto complicado de deslindar. Existem as marcas, que atestavam se a prata tinha a percentagem definida por lei, feitas pelos ensaiadores até 1887 e depois dessa data, pelas contrastarias e ainda as marcas dos ourives. Finalmente, para dificultar tudo isto, as marcas são minúsculas e encontram-se desgastadas pelas limpezas sucessivas,

JCA é uma marca de ourives atribuível a Júlio Cesar Amado,

A chamada bicha


Do conjunto das colheres de doce, nove apresentam marca de um ensaiador de Lisboa, a letra L maiúscula coroada e as iniciais do ourives, JCA. Além disso, apresentam o ziguezague característico, vestígio do método, que ensaiador tinha para examinar a qualidade e autenticidade da prata, em que retirava com um buril um fiozinho do metal. Tradicionalmente este ziguezague é conhecido pela marca da bicha e o seu uso desapareceu década de 80 do século XIX, com a criação das contrastarias.


Inventário de marcas de pratas portuguesas e brasileiras : século XV a 1887



Segundo o Inventário de marcas de pratas portuguesas e brasileiras de Fernando Moitinho de Almeida, Rita Carlos JCA é uma marca de ourives atribuível a Júlio Cesar Amado, sócio da Associação dos Ourives e Artes Anexas, citado em 1887 e que aparece associado as marcas de ensaiador L-46.0 e L-52.0. A marca do ensaiador destes talheres corresponde à L-46.0, datável entre 1870-1879. Portanto, 9 das colheres de doce terão sido fabricadas entre 1870 e 1879.

Inventário de marcas de pratas portuguesas e brasileiras : século XV a 1887


Mas estas 9 colheres apresentam ainda uma terceira marca, a chamada cabeça de velho. Após as reformas da década de 80 do século XIX, que passaram as competências dos ensaiadores municipais para o governo central, a partir de 1887, foi usada esta marca para certificar as pratas antigas ou pura e simplesmente sem marca

A cabeça do velho


Marcas de contrastes e ourives portugueses / Manuel Gonçalves Vidal



Esta Cabeça de velho apresentada uma forma usada em Lisboa, e creio que foi usada até aos anos 30 do século XX. Talvez por ocasião de umas partilhas, em que se tenha mandado fazer uma avaliação, alguém tenha pedido este contraste.






Marcas de contrastes e ourives portugueses / Manuel Gonçalves Vidal



A última colher de doce apresenta a marca de garantia de prata Javali, usada na contrastaria de Lisboa, entre 1887 e 1938 e a marca é do ourives de Lisboa, António José da Costa, registada em 1887 e cancelada em 1925. Portanto a colher terá sido fabricada entre 1887 e 1925 e é posterior ao restante conjunto.

As colheres de sopa mais antigas


Das 7 colheres de sopa, quatro apresentam a marca de um ensaiador de Lisboa, com a letra L maiúscula, encimada por uma coroa. Parece-me a marca igual ao dos talheres de doce, L-46.0, do Inventário de marcas de pratas portuguesas e brasileiras, datável ente mais ou menos 1870-1879.

Marca do ensaiador de Lisboa. Não consegui ler a marca do ourives


Contudo a marca de ourives é diferente e não a consegui ler. As sucessivas limpezas da prata e as lavagens desgastaram a marca.

Na colher da direita, a mais antiga, cabo foi soldado à concha. As colheres da esquerda, mais recentes, foram feitas numa só peça  


Enquanto estas 4 colheres, apresentam um sistema de fabrico, em que o cabo é soldado à concha, as restantes três colheres foram feitas numa só peça e são mais recentes também. O contraste é o javali, marca de garantia da contrastaria do Porto, usada entre 1887 e 1938 e o ourives foi Joaquim Pinto de Magalhães, que registou a marca em 1922. As duas colheres de sopa terão sido fabricadas em 1922 e 1938.


Marcas de contrastes e ourives portugueses / Manuel Gonçalves Vidal


Em suma, este conjunto de talheres do mesmo serviço terá sido adquirido progressivamente entre 1870 e 1938 pela família da sogra da irmã do Manel. Sendo que Senhora nasceu em 1909, esta terá comprado as peças mais recentes, completando um serviço já grande, iniciado pela sua mãe, ou mais certamente por uma avó. No fundo deve corresponder a três gerações. Naturalmente seria muito maior do que é actualmente. Dele fariam parte as facas, os garfos, os talheres de servir e colheres de chá, mas foi desaparecendo com as vicissitudes do tempo, que sempre afectam todas as famílias, por vezes de forma infeliz.

É um serviço muito simples e esta característica torna-o intemporal, ficando bem numa mesa em qualquer estilo, moderno ou clássico.




Bibliografia:

História das marcas e contrastes : metais nobres em Portugal,1401-2003 / Maria Nogueira Pinto ; rev. Benedita Rolo. - Lisboa : Mediatexto,2003.

Inventário de marcas de pratas portuguesas e brasileiras : século XV a 1887 / Fernando Moitinho de Almeida, Rita Carlos. - Lisboa : Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2018

Marcas de contrastes e ourives portugueses / Manuel Gonçalves Vidal ; anotações de Fernando Moitinho de Almeida. - Lisboa : Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1974


Um agradecimento especial ao André Afonso pela identificação de algumas marcas e à Teresa Lança por conseguir fotografar e ampliar as minúsculas sinalefas dos ourives.

domingo, 9 de junho de 2024

Uma menina em biscuit dos anos 20 ou a história de uns sapatinhos de verniz



Ultimamente, tenho escrito por aqui pouco. Não que me faltem temas, mas neste mês parece que ando num campo minado e cada vez que dou um passo para um lado ou para o outro, para traz ou para frente rebenta uma chatice ou um problema qualquer. Por essas razões resolvi escrever sobre um assunto, que nunca me dá muito trabalho, uma figurinha em biscuit. Estas estatuetas em biscuit são normalmente de origem alemã, fabricadas nos finais do século XIX, inícios do século XX, algures na Turíngia ou no Saxe e raras vezes estão marcadas e por essa razão é difícil encontrar informações na net, a não ser que por um acaso da sorte, haja um vendedor nos Estados Unidos, na Alemanha ou França, que esteja a vender uma exactamente igual, mas marcada. Mas os alemães fabricaram tantos destes bonequinhos em biscuit que é essa probabilidade é quase impossível. Assim, sendo, muitas vezes, resta-me escrever sobre os sentimentos que me despertam.


Esta menina sentada já a namorava há quase dois anos na banca de um vendedor na Feira de Estremoz. O senhor de vez em quando trazia-a, eu namorava-a à distância, porque normalmente o dono não costuma fazer preços acessíveis, depois desaparecia e eu pensava que já tivesse sido vendida, reaparecia novamente até que acabei por compra-la por um preço muito simpático.

Os meus irmãos e e eu vestidos com roupa de ir ver a Deus. Sou o mais pequenino.

Achei-lhe muita graça pois parecia que estava sentada, exibindo os seus sapatinhos novos. Recordo-me que por volta dos meus cinco anos tive uns sapatinhos de verniz, daqueles que só se usavam em ocasiões especiais, como se costuma dizer, para ir à Madrinha ou ir ver a Deus. Aliás, há uma fotografia dos meus irmãos e eu, no baptizado de um primo, o Tozé, em que tenho esses sapatinhos calçados, embora já um bocadinho cambados, pois era muito irrequieto. Nessa fotografia tirada talvez por volta de 1968 ou 1969, os meus irmãos estão em ponto branco, enquanto eu estou prestes a desfraldar-me e as meias estão todas enrodilhadas no fundo. Mas gostava tanto daqueles sapatinhos de verniz e tive tanta pena de deixar de os calçar, pois em três tempos deixaram-me de me servir. Quando há uns 16 ou 17 anos voltaram-se a usar-se os sapatos muito bicudos e apeteceu-me imenso comprar um desses modelos em verniz, mas fui ameaçado por amigos e filhos, de que não sairiam à rua comigo com esses sapatos calçados.

Mas voltando à figurinha em biscuit, ela foi-me vendida como paliteiro, embora não acredite muito nisso. Os paliteiros em louça são coisas muito portuguesas. Quanto muito será uma fosforeira, ou muito mais provavelmente um bibelot.

Além do pormenor dos sapatinhos, achei muita graça ao chapéu e vestido da menina que me parecem já dos anos 20, de um período em que a costureira Jeanne Lanvin (1867-1946) já tinha revolucionado a moda infantil, ao começar a desenhar os modelos para a sua própria filha, Marguerite, todos eles muito mais simples práticos, do que a chamada moda fin-de-siècle.

Como a própria Jeanne Lavin recordava no tempo da minha infância as meninas eram vestidas de forma lamentável, como sacos de bombons, marujas de catálogo ou pior ainda como damas de meia idade anãs.

A menina usa polainas nas pernas

E com efeito a menina de biscuit não usa laçarotes complicados nem uma profusão de rendas e folhos. Tem um chapéu discreto na cabeça e um vestido simples alargando para baixo, com as golas e as mangas em amarelo. Podia ser quase um traje contemporâneo, não fosse um pormenor, que esse sim, caiu definitivamente em desuso, umas polainas. Com efeito, consultando na net antigas revistas de moda doa anos 20 encontra-se ainda figurinos com muitos meninos e meninas usando polainas nas pernas.

Um figurino do início dos anos 20


Bem sei que menina em biscuit fabricada nos anos 20 do século passado na Alemanha, não é uma obra de arte, embora a peça tenha sido muito bem executada e pintada. Mas o que me agrada nela sobretudo é recordar-me aqueles sapatinhos de verniz, que tive em criança.



Alguns links consultados 

sexta-feira, 17 de maio de 2024

Uma jarra de opalina possivelmente de François-Théodore Legras



Desde há um tempo descobri o encanto das opalinas, esses vidros em cuja composição entrava óxido de estanho e cinzas de osso, conhecidos em português por vidros coalhados. Embora já fossem fabricadas em Veneza desde o século XVI, foi no século XIX, em França, que a produção de opalinas atingiu o seu apogeu decorativo e técnico. É certo que outros países também fabricaram vidros com composições semelhantes, nomeadamente a Inglaterra, na cidade de Bristol e a Boémia, na actual República checa,

Mas o que aparece mais nos mercados de velharias em Portugal são opalinas francesas da segunda metade do século XIX e que se compram preços razoáveis.

Na última feira de Estremoz comprei esta jarra muito bonita, que foi durante anos a fio usada para pôr flores, pois ainda tinha dentro restos de um lodo no interior, que foi uma chatice remover. A peça foi-me vendida como francesa e de facto o seu estilo decorativo foi obviamente inspirado na porcelana de Sèvres do século XVIII. Digamos que esta jarra é uma reinterpretação arte nova da porcelana de Sèvres do tempo de Luís XV.

Decidi então confirmar esta minha impressão, fazendo uma série de pesquisas por imagem no Google e encontrei uma jarra exactamente igual no portal de antiguidades WordPoint.com, mas cujo fabrico estava atribuído ao centro vidreiro Harrach, ou Harrachov, na Boémia, do período Loetz, cerca de 1880.




Fiquei um bocadinho desconcertado pois achei esta jarrinha com um estilo muito francês e também não me pareceu que tivesse sido fabricada por volta de 1880. A sua decoração já é muito 1900. Procurei no google por Harrarch e por Loetz e percebi que correspondem a dois centros de fabrico distintos da Boémia, o primeiro na cidade de Harrachov e o segundo em Klostermühle, hoje em dia, Klášterský Mlý. Em suma, o antiquário que tem isto à venda no Word Point confundiu alhos com bugalhos. Em todo o caso, prossegui as minhas buscas na net pelas opalinas Harrachov e de Loetz, em Klášterský Mlý e não encontrei nada semelhante. Os vidros checos de cerca de 1900, no chamado estilo secessão, nome usado na Europa Central para a Arte Nova, são sempre muito imaginativos, quase delirantes e pouco nada tem a ver com esta jarrinha, uma reinterpretação arte nova da porcelana de Sèvres.

A mesma jarrinha que estava à venda no Word Point aparecia também reproduzida no Pinterest, com a mesma legenda indicando, que era da Boémia, de Harrach, mas alguém deixou um comentário, chamando a atenção que a peça poderia ser eventualmente de Legras e resolvi explorar essa hipótese. Este Legras era o Senhor François-Théodore Legras (1839-1916), director das Verreries de Sant Dennis e que durante vigência da sua direcção, modernizou completamente a fábrica, conseguindo que os seus produtos fossem premiados várias vezes na nas exposições universais entre 1880 e 1900. A produção das Verreries de Sant Dennis era muito diversificada e ia desde produtos utilitários, a objectos de luxo, passando por criações arrojadas ao nível de vidreiros franceses famosos como Gallé, Daum ou Lalique.

Até há pouco tempo muito mal conhecida, a obra de François-Théodore Legras foi objecto de um catálogo sistemático, "François-Théodore Legras, verrerie artistique et populaire française / Marie-Françoise Jean-François Michel, Dominique et Jean Vitrat. -Paris : éditions Manufacture d'Histoire, 2012.


Jarra à venda no e-bay

Partindo dessa hipótese, encontrei então umas quantas opalinas como uma decoração muito semelhante à minha e cujos vendedores as identificavam como sendo de François-Théodore Legras, citando sempre as páginas 256 e 257 do acima referido catálogo, para justificar essa atribuição. Claro, eu não tive acesso ao catálogo, mas como um dos vendedores é nada menos nada mais que o Leiloeiro Drouot, umas das casas mais conceituadas no mundo das antiguidades, parti do princípio, que consultaram o referido catálogo e que atribuição que fizeram está correcta.



Conjunto posto à venda pelo Leiloeiro Drouot,


Em suma esta jarrinha de flores em opalina terá sido fabricada por volta de 1900, muito possivelmente pela Legras et Cie (Verreries de Sant Dennis) e é um exemplo da qualidade dos produtos dessa fábrica, uma reinterpretação elegante ao gosto de 1900 do estilo da porcelana de Sèvres do Século XVIII.





Ligações consultadas:





sábado, 20 de abril de 2024

Uma faca de manteiga em prata francesa do início do século XX


Como já aqui expliquei, ando a completar um faqueiro de prata herdado da minha avó Mimi, uma coisa em estilo D, João V, dos anos 30 do século XX, de um ourives do Porto. Mas decidi ir comprando as peças ao sabor dos meus impulsos, sem me preocupar que sejam do mesmo estilo da mesma época ou até do mesmo país. No fundo, estou a fazer uma colecção de talheres de prata, em que compro mais por paixão, do que por verdadeira necessidade, já que pouco ou nada recebo em minha casa. Bem sei que isto é pouco racional e tonto e talvez devesse comprar antes um fogão com placa vitro cerâmica ou até um robot de cozinha, que segundo ouvi dizer, faz coisas maravilhosas. Mas ao mesmo tempo que vou comprando pratas, vou começando a estudar um pouco melhor o assunto, do qual não sabia quase nada e o colecionar tem sempre este lado positivo, pois estimula o desejo de saber e conhecer mais.

O cabo está decorado num estilo vagamente Luís XVI 


Este talher de servir que apresento foi comprado em conjunto com mais outros cinco talheres, todos em prata francesa, por um preço muitíssimo convidativo na Feira de Estremoz. É uma faca de manteiga muito bonita, num estilo vagamente Luís XVI e corresponde a um hábito muito requintado do passado. Se hoje em dia, nos apetece barrar um pãozinho com manteiga logo pela manhã, usamos uma faca qualquer e andor que se faz tarde, pois é preciso sair de casa a correr, para apanhar um comboio, o metro, ou um autocarro para chegar ao emprego. Mas antigamente havia estes hábitos refinados. Lembro-me que em casa dos meus pais, quando se ofereciam lanches ajantarados colocavam a uso uma faquinha antiga de manteiga em madrepérola, que era um mimo.

Punção de garantia oficial da França, a cabeça de Minerva, usada entre 1838 e 1973


A faca apresenta no cabo o punção de garantia oficial da França, a cabeça de Minerva, usada entre 1838 e 1973. É uma prata de boa qualidade, pois tem o nº 1 à direita da cabeça. Na lâmina, há uma segunda marca, talvez do ourives. Contudo na época, em que este talher foi produzido, finais do século XIX, inícios do XX, os ourives franceses assinavam a prata de lei com um punção em forma de losango, contendo as suas iniciais ou um símbolo da casa e esta marquinha é rectangular, forma normalmente reservada às ligas com uma quantidade baixa de prata, ou metal prateado. Na prática, isto quer dizer que o cabo é em prata de Lei, de boa qualidade e a lâmina é de uma liga com baixa quantidade de prata, mas também certamente mais sólida e resistente.

Marca de Robert Louis, com estabelecimento, na rue du Temple, nº 7, em Paris, activo em 1917


No site https://www.silvercollection.it/ descobri que esta marca em forma rectangular, contendo as iniciais LR, uma asa, uma palma, três estrelas em cima e quatro em baixo foi usada pelo ourives Robert Louis, com estabelecimento, na rue du Temple, nº 7, em Paris, activo em 1917. Esta Rue do Temple, fica no bairro do Marais onde no passado se encontravam muitas oficinas e estabelecimentos de ourives.

Em suma, esta faca de manteiga é francesa, feita por volta de 1917, mas não consegui apurar se o ourives parisiense Robert Louis produziu só a lâmina, se também o cabo.



É certo que não sirvo pequenos almoços de categoria a ninguém, nem sequer lanches ajantarados para usar esta faca de barrar a manteiga no pão, mas quando os meus filhos aparecem para jantar, utilizo-a para cortar o queijo e é um prazer toca-la. Depois de lavar a loiça, não a arrumo logo, deixo-a um dia ou dois na mesa, ao lado do computador, para admira-la e agora percebo muito melhor o fascínio que a prata sempre exerceu na história da humanidade.

A faca mede 21 cm de comprimento


Ligações consultadas:




quarta-feira, 10 de abril de 2024

Uma elegante junto a pratos ratinho em 1913



Há uns tempos, tentando encontrar notícias sobre os tribunais de guerra criados para o julgamento de conspiradores monárquicos, após as duas primeiras incursões de Paiva Couceiro, resolvi bater todo o ano de 1913 da Ilustração Portuguesa, revista de actualidades, disponível on-line na Hemeroteca Digital. Mesmo quando se têm um objectivo preciso, folhear revistas antigas é uma perdição e rapidamente nos distraímos a ver os anúncios antigos, os figurinos das últimas modas, as crónicas mundanas ou ler notícias de conflitos, que na altura eram muito actuais, como a segunda guerra balcânica e que hoje foram remetidos para notas de rodapé dos manuais de oficiais de história.

Entre todas essas actualidades do passado, encontrei a notícia de um serão literário no Mosteiro de Alcobaça, com fotografias dos vários participantes e chamou-me logo a atenção, o retrato do poeta Afonso Lopes Vieira (1878—1946) e da sua mulher à saída do Mosteiro. Durante o período em que fui bibliotecário na Universidade Católica coordenei o tratamento do espólio de António Sardinha (1887-1925) e existiam muitas cartas de Afonso Lopes Vieira, que se distinguiam de imediato das outras, porque aquele poeta tinha uma caligrafia linda, muito pessoal, mas legível e usava ainda um papel timbrado com o motivo de uma vieira. Desde logo, percebia-se que era um esteta. Também me recordo muito bem de ver a sua casa de S. Pedro de Muel, que era e é um encanto. Apesar de ligado ao Integralismo Lusitano, a seguir ao 28 de Maio de 1926, demarcou-se do Salazarismo. Sempre simpatizei com esta figura, embora tenha aprofundado pouco ou nada sobre a sua obra.

O poeta Afonso Lopes Vieira


Este serão literário ou festa de arte foi organizado por Manuel Vieira Natividade (1860-1918) , ouviu-se muita poesia e naturalmente os convidados eram mulheres e homens de cultura. À saída ou à entrada do evento, os convidados percorreram o mercado semanal de Alcobaça e um casal elegante parece ter-se encantado com as cerâmicas. A jovem muito elegante com uma saia muito cingida e um lenço artisticamente enrolado parece estar a passar dinheiro ao senhor. Não sei o que compraram, se a cerâmica vidrada, se a panela de barro ou os pratos ratinhos no canto esquerdo. Nesta época, em 1913, neste meio de pessoas como o poeta Afonso Lopes Vieira ou o Manuel Vieira Natividade, que valorizavam a tradição, a história e a etnologia era provável que se apreciassem os ratinhos, estes pratos de faiança com uma decoração inconfundível.

Os ratinhos estão no canto inferior esquerdo

Achei muita graça a esta imagem, pois quanto vejas fotografias antigas de mercados e feiras, tento sempre identificar, que tipo de cerâmicas, se encontravam à venda, mas a definição é sempre má e nunca consigo descortinar nada. Mas desta vez, tive sorte e encontrei pelo menos três ratinhos, acabadinhos de sair da oficina em 1913.


Fonte consultada: Ilustração portuguesa, nº 394 (8 Setembro de 1913)