Para quem gosta de coisas antigas e não tem muito dinheiro, a faiança inglesa do séc. XIX é uma boa opção para fazer uma colecção ou pura simplesmente para decorar com charme uma sala ou uma cozinha com dois ou três pratos antigos.
A louça inglesa do século XIX atingiu altíssimos níveis de qualidade, as suas paisagens são sempre sedutoras e nas feiras de velharias vão-se encontrando bons exemplares a preços razoáveis.
O meu amigo Manel foi comprando aqui e acolá muita louça inglesa e a peça que vos apresento hoje é das minhas preferidas. É uma travessa de grandes dimensões, 42 x 34 cm , mas com um formato muito particular, tem sulcos ao longo da superfície, que depois conduzem a uma concavidade maior. Servia para servir carne assada. Pelos sulcos escorria o molho, que ia ter à concavidade, onde com uma colher era fácil recolher o molho para os respectivos pratos. por cá, Miragaia também fabricou este tipo de travessas, mas curiosamente designaram-nas por Peixeiras, pois eram usadas para servir peixe. Segundo a Maria Andrade, esta readaptação portuguesa dos meat dish, explica-se talvez pelo maior hábito de comer peixe que sempre existiu em Portugal, sobretudo no litoral, ao contrário dos nossos aliados ingleses que sempre comeram mais carne.
A travessa não tem qualquer carimbo ou monograma, pois os fabricantes nem sempre marcavam todas as peças de um serviço, mas como os ingleses e americanos tem centenas de bons sites sobre faiança antiga, rapidamente descobrimos muitas outras peças com esta decoração, marcadas como HAMILTON/STOKE. A decoração é conhecida entre os antiquários e coleccionadores pelo nome de Fisherman with Nets, cuja tradução livre será pescadores lançando as redes. Em todo o caso, segundo indicação do MAFLS há notícia de este motivo ilustrado na travessa ter também surgido em
peças com a marca, impressa, Tams & Co. (The Dictionary of Blue
& White Pottery, 1780-1880, vol. I, p.138
Não encontrámos muitas informações na net sobre este fabricante. Descobrimos que a fábrica pertencia a um tal Robert Hamilton, nascido em 1779 e activo entre 1811-26. Este Senhor era genro do industrial de cerâmica Thomas Wolfe, que por sua vez tinha sido sócio de Josiah Spode, outro patrão da indústria cerâmica e a sua fábrica estava sediada em Stoke-on-Trent, no Staffordshire. Portanto o Senhor Robert Hamilton tinha a sua fábrica no principal centro cerâmico de Inglaterra, estava relacionado familiarmente com outros industriais do ramo e ao seu lado existiam fábricas de louça, que hoje quase são lendárias no meio dos antiquários e coleccionadores, como Spode ou Minton.
Faiança Hamilton. Um típico padrão decorativo da época. Paisagem campestre, com vaquinhas, um rio e um castelo em ruínas ao fundo |
Este enquadramento serve para demonstrar que a produção de Robert Hamilton é muito representativa da louça inglesa das duas primeiras décadas do Século XX.
Neste período, o estilo da faiança de Spode servia de modelo para muitos fabricantes ingleses. Spode tinha popularizado o transfer way na loiça azul, técnica que consiste em usar uma gravura numa placa de cobre, que era estampada num tecido, que depois era aplicado na loiça ainda em forma de biscoito. Este processo permitia decorar a loiça com complicados e refinados desenhos retirados de gravuras. E de facto nessa época Spode inspirou muitas fábricas de faiança inglesa, que produziam mais ou menos todas, tipos decorativos da mesma natureza.
Spode. Ruínas italianas, outro motivo decorativo típico da faiança inglesa. |
Em primeiro lugar os motivos chineses, do qual o mais célebre é o padrão do salgueiro ou Willow pattern, seguiam-se depois um infinito número de ruínas em Itália, as paisagens campestres inglesas, como por exemplo as decorações com vaquinhas, que Sacavém veio a imitar mais tarde e ainda os motivos indianos, inspirados nas gravuras Thomas Daniell. Portanto, Herculaneum não foi de todo a única a inspirar-se nas estampas com paisagens indianas e também chinesas de Thomas Daniell.
Faiança Hamilton. O Canton River inspirou-se nas estampas de Thomas Daniell, que este fez após a sua viagem à Índia e à China |
Nas duas primeiras décadas do Séc. XIX, também segundo o modelo de Spode, a decoração tendia a ser muito preenchida e os azuis eram mais escuros. Este foi um período de crescimento exponencial da indústria cerâmica inglesa. Devido as guerras napoleónicas, as manufacturas francesas e alemãs estiveram impossibilitadas de exportar. Os ingleses aproveitaram esta fraqueza da indústria continental e invadiram livremente o mercado americano e quando finalmente a guerra acabou, conquistaram também os mercados europeus com os seus produtos baratos e boa qualidade.
Faiança inglesa destinada ao mercado americano, com paisagens e monumentos dos EUA. Foi produzida pela Ridgway e representa a biblioteca de Filadélfia. Foto de Z & K Antiques |
Os ingleses chegaram a produzir loiça especialmente destinada ao mercado norte-americano, normalmente com tons azuis mais escuros e representando vistas e paisagens de monumentos e cidades americanas. Aliás eu e o Manel chegamos a nos interrogar se a decoração desta travessa não representaria uma paisagem americana, o edifício que se vê ao fundo com uma arquitectura palladiana poderia talvez ser Monticello, a casa de Thomas Jefferson, mas é um palpite arriscado e sem grande fundamento. Em todo o caso, não é seguramente uma paisagem inglesa, pois na velha Albion não existem palmeiras.
Monticello. A casa de Thomas Jefferson, na Vírgina |
Enfim, não conseguimos apurar que vista esta travessa representa, ou se será mesmo paisagem real. Em todo o caso, é uma peça que representa a qualidade o charme da faiança inglesa do século XIX.
Alguma bibliografia:
An introduction to English pottery / by Giselda Lewis. - London: Art and Technics, 1950
Ligações:
http://www.blueandwhite.com/museum.asp
http://www.thepotteries.org/location/districts/stoke3.htm
http://collections.vam.ac.uk/item/O78051/plate-hamilton-robert/