Sempre simpatizei com a figura de Santa Catarina de Alexandria, essa mártir do século III, tão sábia e culta, que um certo romancista, Jean Marcel, na sua obra Hypatie ou la fin des dieux, colocou a hipótese de que a lenda, que envolve a vida desta santa seria um eco da existência da célebre filósofa, astrónoma e matemática, Hipácia de Alexandria, que foi massacrada no século V pelos cristãos, já que as suas convicções científicas punham em causa os dogmas do cristianismo.
Mas talvez a minha simpatia por esta santa remonte a uma das minhas primeiras recordações de infância, teria eu talvez uns quatro ou cinco anos e na Casa de São Vicente, onde a minha mãe era educadora, assisti a uma espécie de auto, que era uma encenação daquela música popular “A santa Catarina, prelim perlim pépé, Era filha do rei, Seu pai era pagão, prelim perlim pépé, Mas a sua mãe não. Na época fiquei muito impressionado com a cena em que a pobre Catarina é morta pelo pai e creio que ainda hoje, sempre que vejo um quadro ou uma escultura representando Santa Catarina, quase inconscientemente trauteio aquela lengalenga.
Todas estas considerações servem para justificar, a razão porque comprei mais uma representação de Santa Catarina, desta vez uma pintura em cobre, que suspeitei de imediato, tratar-se de obra do século XVII. A iconografia da Santa está aqui reduzida aos seus elementos essenciais, a espada, pela qual foi degolada, a palma, que significa o martírio e um traje luxuoso de princesa ou rainha. Falta aqui a roda pela qual foi martirizada, mas a pintura está um bocadinho suja e eventualmente poderá estar escondida pelo verdete no canto inferior esquerdo.
Mostrei esta pintura aos meus amigos o Joaquim Caetano, a Maria João Vilhena e o Anísio Franco, que foram de opinião, que esta pinturinha teria sido executada no século XVII, provavelmente em Espanha, por um pintor indeterminado da escola de Sevilha e que representará efectivamente Catarina de Alexandria.
Chamaram-me também a atenção para o entrelaçado de pérolas que adorna o cabelo da Santa, que é muito semelhante aos que foram usados por Josefa de Óbidos, na gravura datada de 1646, representando Santa Catarina, bem como no casamento místico de Santa Catarina, da colecção do Museu Nacional de Arte Antiga, inv. 197.
O casamento místico de Santa Catarina da col. do MNAA. Repare-se que o entrelaçado de pérolas no cabelo da santa é semelhante ao da minha pintura |
No verso deste cobre há uma legenda manuscrita, que eu ainda tive esperança que fosse o nome do pintor. Enfim, seria muito mais interessante se a minha Santa Catarina tivesse um autor. Contudo, a Maria João Vilhena, que é uma paleógrafa desenvolta, leu imediatamente a dita anotação e o que está lá escrito é o seguinte último figurado. Portanto, a legenda manuscrita não se reporta a um autor, mas provavelmente a uma etapa da criação artística. Talvez este pequeno cobre fosse um estudo, para uma composição maior, enfim, só Deus sabe.
Último figurado |
Em todo o caso esta Catarina de Alexandria, fica muito bem nas paredes da minha casa, recordando-me sempre aquela cantinela, que ouvi pela primeira vez por volta de 1968, A santa Catarina, prelim perlim pépé, Era filha do rei…
Alguma bibliografia e links consultados:
Josefa de Óbidos e a invenção do barroco português / coord. científica Anísio Franco, António Filipe Pimentel, Joaquim Oliveira Caetano e José Alberto Seabra de Carvalho. - Lisboa : Museu Nacional de Arte Antiga : INCM, 2015.