quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Um menino Jesus do século XVIII ou votos de boas festas a todos os seguidores velharias do Luís


Como já escrevi muitas vezes aqui no blog não sou muito dado escrever sobre efemérides e quadras festivas. Creio que a única excepção, que abro é para o Natal, pois gosto de arte sacra e esta altura é uma excelente ocasião para mostrar mais uma estampa com uma anunciação ou uma natividade.

Este Menino Jesus em barro estava em casa dos meus pais desde que me lembro. Encontrava-se deitado numa caminha com um colchão capitonné em seda, num móvel da sala de estar. A caminha acabou por se estragar, não sei se fomos nós quando éramos miúdos, que a escangalhámos ao querer brincar com ela, se foi um gato que houve lá por casa ou se uma mulher-a-dias, mais abrutalhada. O que é certo é que a caminha perdeu dois pés, uma das urnas da cabeceira e foi arrumada durante décadas num armário.



Quando, os meus irmãos e eu partilhámos, o recheio de casa do meu pai, escolhi de imediato este Menino Jesus rechonchudo e consegui com algum esforço redescobri a sua caminha encafuada num armário.
O Menino Jesus está deitado numa cama do tipo "lit bateau"

Enquanto o menino Jesus é seguramente coisa do século XVIII, constatei agora que caminha é uma peça mais moderna. É uma cama ao estilo Império ou Restauração (1800-1830), aquilo que os franceses chamam um lit bateau, pois inspira-se nas formas de um barco, mas provavelmente até é mais tardia, talvez no final do XIX ou início do Século XX. O colchão terá sido confeccionado por alguma antepassada cheia de devoção.

O menino deitado no colchão colchão capitonné em seda


Sempre achei que este Menino Jesus era uma daquelas imagens de devoção muito popularizadas pelos conventos femininos no século XVII e XVIII, em que as irmãs costuravam enxovais completos para vestir o Santo Menino, com capas, roupa interior, sapatinhos, chapéus e encomendavam até a um marceneiro camas e cadeiras, que reproduziam os modelos de mobiliário da época. Até já mostrei aqui alguns exemplos dessas móveis em miniatura, destinados ao Menino Jesus e que pertencem à colecção do Museu Nacional de Arte Antiga.

Para além dos conventos, esta peculiar devoção ao Menino Jesus difundiu-se pela sociedade, prolongou-se pelos séculos XIX e mesmo XX e as famílias mais abastadas tinham sempre um ou mais destes Meninos Jesus, com vestidinhos em seda bordados a ouro e prata ou deitados numa caminha. Como refere Ana Alcoforado no catálogo da exposição "O Menino dos Meninos" O contraste entre a inocência e felicidade do Menino e o horror do sacrifício ao qual estava predestinado, emocionava os corações, levando à multiplicação de imagens com esta tipologia.

O orifício para colocação do resplendor

Contudo, resolvi mostrar esta imagem aos meus colegas do Museu Nacional de Arte Antiga, Anísio Franco e Maria João Vilhena, que me confirmaram tratar-se de uma peça do século XVIII e me chamaram a atenção para uns quantos pormenores. A imagem apresenta um buraquinho no alto da cabeça para a colocação de um resplendor e o corpo do menino Jesus foi repintando. Por último e o mais importante, o Anísio Franco reparou que o menino Jesus, apresenta um orifício em forma triangular entre as nádegas, o que indica, que estaria fixo por um espigão a uma peanha ou a outra imagem, quem sabe se uma Nossa Senhora ou até mesmo um Santo António. Portanto este Menino Jesus, não era para ser visto deitado numa caminha, mas sim na posição vertical.
No rabiosque no menino há um pequeno orifício em forma triangular, revelando que estaria fixo por um espigão a uma peanha ou a uma outra imagem, talvez uma Nossa Senhora ou a um Santo António. 


Num momento qualquer, que nunca conseguirei precisar, a peanha perdeu-se ou alguém retirou esta imagem de uma Nossa Senhora e o Menino Jesus do século XVIII foi disposto numa cama ao gosto Império ou Restauração.

As obras de arte vão sendo modificadas ao longo dos tempos e quando chegam às nossas mãos já são diferentes do momento em que saíram da oficina do pintor, do santeiro ou do marceneiro e agora não sei se deva respeitar a colocação do Menino Jesus na caminha, como estava em casa dos meus pais ou arranjar uma peanha para o colocar em pé, para corresponder melhor a forma para a qual ele foi concebido.




Alguma bibliografia:

O Menino dos meninos / textos Ana Alcoforado. - Coimbra : Museu Nacional de Machado de Castro, 2007

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Uma vue d'optique de Bruxelas do início do século XIX



O meu pai sempre me dizia que quando não se tem dinheiro para comprar boa pintura, é sempre preferível adquirir gravuras, do que reproduções industriais de quadros célebres ou óleos de má qualidade. Por um preço aceitável ou mesmo muito em conta é possível encontrar gravuras impressas nos séculos XIX, XVIII e até do XVII nos mercados de velharias.

E com efeito cresci numa casa com estampas na parede, aprendendo a gostar a gostar delas e quando o meu pai morreu, escolhi umas quantas para decorar o meu apartamento de uma assoalhada e meia.

Uma das que seleccionei foi esta Vue de l'Hôtel des États-Généraux à Bruxelles, uma gravura aguarelada, que me pareceu de imediato coisa do início do século XIX, a julgar pela indumentária das personagens, que se passeiam em frente ao edifício dos Estados Gerais, ou melhor dizendo do Parlamento.


No topo, o título da gravura apresenta-se com as letras invertidas, o que indica de imediato que se trata de uma vista óptica. As vues d’optique como eram conhecidas em francês, eram gravuras destinadas a serem visualizadas numas caixas ópticas, que davam uma sensação de perspectiva e profundidade a quem espreitava para dentro delas, conforme já expliquei no meu post de 24 de Setembro de 2013. Como as caixas ópticas ou zogroscópios continham um espelho, as imagens eram visualizadas invertidas e as legendas das vues d'optiques eram então impressas da direita para a esquerda.




Uma Caixa Óptica do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra. Reparem que no tabuleiro de baixo está a estampa.


Estas vues d’optique fizeram a sua aparição em meados do século XVIII em plena altura do grand tour, essa grande viagem, que os ingleses abastados faziam a Itália para se instruírem e os seus impressores inspiram-se nas vedutas, isto é, as pinturas ou gravuras com vistas dos monumentos de Roma ou Veneza, que os turistas britânicos compravam naquele país. Contudo, além do título invertido, as vistas de óptica apresentavam características próprias, distintas das outras gravuras. Eram montadas sobre cartões, os pontos de fugas e perspectivas eram muito bem definidos, as cores fortes eram usadas nos planos mais próximos e as mais suaves nos planos longínquos e normalmente representavam vistas de arquitectura, monumentos, praças, igrejas, palácios ou parques. A ideia era que quando colocadas nas caixas ópticas e vistas através de espelhos e lentes, estas gravuras pudessem criar uma ilusão de profundidade. Algumas delas eram até picotadas e quando se colocava uma luz a azeite ou óleo no aparelho, o espectador ficava com a ideia de ver a praça de uma qualquer cidade iluminada à noite.

Uma vista de óptica noturna. Foto de Le monde en perspective: vues et récréations d’optique au siècle des Lumières:


As vistas de óptica tornaram-se populares na Europa e eram usadas com fins científicos, para o estudo da arquitectura, das leis da perspectiva e da óptica ou para que os estudantes pudessem ampliar a sua visão do mundo, educando o gosto. O nosso Museu da Ciência da Universidade de Coimbra conserva uma colecção notável destas caixas ópticas. Mas estas gravuras e respectivos instrumentos de leitura foram também coleccionados por famílias nobres ou de grandes burgueses como forma de elevada distracção ou para educação ou dos seus filhos. Apesar de a partir de 1830, a produção das gravuras com vistas de óptica ter começado a decair, o seu uso manteve-se nas feiras pelo século XIX fora, onde por uma simples moeda, pessoas que nunca tinham saído da sua região podiam espreitar nos zogroscópios vistas de Paris, Roma, Bruxelas ou Londres.

À Paris, chez Basset, Rue de St. Jacques, nº 64

Quanto à minha estampa foi impressa em Paris, no Basset, na rua de São Jacques, nº 64, conforme se pode ver no canto inferior esquerdo. A cidade de Paris era um dos principais centros impressores destas estampas e a maioria deles tinham oficina na Rua de São Jacques. Na Biblioteca Nacional de França encontrei a notícia de autoridade referente a este Basset. Trata-se de Paul-André Basset (1759-1829) um impressor e comerciante de estampas, vistas ópticas e papéis pintados. Através deste registo consegui perceber, que a oficina de Paul-André Basset esteve no nº 64 da Rue de St. Jacques entre 1805 e 1817. Até lá estava no número 670 da mesma rua. Portanto esta «Vue de l'Hôtel des États-Généraux à Bruxelles» parece ter sido impressa entre 1805 e 1817. 

Dembour et Gangel edits à Metz


Contudo, no canto inferior direito existe uma segunda referência “Dembour et Gangel edits à Metz”, que se reporta à associação dos editores Adrien-Népomucène Dembour e Gangel, formada em 1840. Possivelmente, a casa Dembour et Gangel de Metz reeditou por volta de 1840 uma estampa mais antiga da casa Paul-André Basset, datada entre 1805 e 1817. A minha vue d'optique de Bruxelas será então da última fase da produção deste tipo de estampas.

Foto retirada de Le monde en perspective: vues et récréations d’optique au siècle des Lumières:


Actualmente as vistas ópticas parecem-nos um pouco ingénuas. Mas é porque as vimos a olho nu, sem ser através de uma lente e um espelho. Além disso, hoje em dia andamos sempre de mala aviada viajando de Paris para Tóquio, fazendo escala em Tel-Aviv e temos os olhos saturados de imagens da internet ou da televisão, sem esquecer os milhares de fotografias partilhadas através dos telemóveis. Mas por volta de 1840, quando esta estampa foi editada viajava-se pouco e havias poucas imagens disponíveis sobre Paris, Berlim, Roma ou Londres e espreitar pela lente de uma destas caixas ópticas era ver um mundo novo.


Algumas obras e links consultados;



Le monde en perspective: vues et récréations d’optique au siècle des Lumières: les collections montpelliéraines de vues d’optique au château de Flaugergues. - Perpignan: Direction régionale des affaires culturelles du Languedoc-Roussillon, 2014