Em Outeiro Seco, no Solar dos Montalvões, ainda há vestígios de um antigo quarto secreto, que durante muitos anos, alimentou de fantasias a minha imaginação de menino e depois de jovem. Na realidade, como vim a saber mais tarde, já a casa era uma ruína com os tectos caídos a desvendar todos os segredos, esse quarto, era uma espécie a espécie de divisão interior, cuja porta se podia tapar com um armário e que normalmente servia de arrumos, junto à casa de banho.
Hoje, escreverei um pouco sobre a história que está associada a esse quarto secreto, que é não só um episódio familiar antigo dos Montalvões, mas também faz parte de um conjunto de acontecimentos da história da região de Chaves e de Portugal e que começa logo a seguir á implantação da República, em 1910, quando os monárquicos levaram a cabo três tentativas para derrubar o regime, todas elas ocorridas no Norte do País e que afectaram a vida das terras da raia.
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Henrique Paiva Couceiro |
Essas três insurreições tiveram todas como responsável Henrique Paiva Couceiro (1861-1944), um militar, que se tinha distinguido em campanhas pacificadoras em Angola e Moçambique e idealista ao ponto, de levar a cabo duas tentativas para invadir Portugal a partir da Galiza, sem grande apoio do rei D. Manuel II, sem o suporte do Governo espanhol, que não estava interessado em chatices com o País Vizinho, com poucas armas e homens sem treino militar. No entanto, apesar de todas essas limitações, fez correr tinta e mais tinta nos jornais, sobressaltou as populações fronteiriças e provocou movimentações de exércitos de um lado para o outro. Tentarei aqui descrever como é que esses acontecimentos se relacionaram com a vida da família Montalvão e de Outeiro Seco.
Diz-se muitas vezes, que a República foi implantada em Lisboa através de uma revolução e no resto do País por telégrafo, isto quer dizer, que na Província os ideais republicanos tinham uma expressão reduzida e que para a maioria da população, cerca de 80 a 90 por cento de analfabetos, república ou monarquia eram conceitos abstractos, aos quais eram quase indiferentes. Claro existia a fidalguia local que por tradição era monárquica e os sacerdotes, que também defendiam a aliança entre o trono e o altar. Estes dois grupos tinham tendência a ser os líderes das comunidades rurais onde estavam inseridos e reagiram à república, embora sem uma convicção por ai além. Nestas categorias, incluíam-se os montalvões e o Padre Rodrigues Liberal Sampaio, unido a essa família por laços de sangue.
Assim, logo nos finais de 1910, à semelhança do que aconteceu um pouco por todo o Norte de Portugal, nalgumas aldeias do Concelho de Chaves, como Vilela Seca, Valdanta, Vilar de Nantes houve manifestações de hostilidade para com o regime. Em Outeiro Seco, os partidários da república, que tentaram fazer uma sessão de propaganda, foram recebidos por uma espécie de jacquerie ameaçadora, armada de facas, foices e estadulhos. Uma coluna militar foi chamada a intervir para dominar a população e também para prender o meu trisavô, o Padre Rodrigues Liberal Sampaio, que segundo constou na altura, teria sido o instigador do motim. Esta versão consta da obra A República em Chaves / Júlio M. Machado. Chaves: Grupo Cultural Aquae Flaviae, 1998 e é confirmada pela tradição familiar, que data este acontecimento, logo em 1910, por alturas da matança do porco, ritual que ocorre por volta de Dezembro.
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Liberal Sampaio |
Segundo ainda a tradição familiar, o meu trisavô ter-se-á refugiado então num quarto secreto existente no Solar e aí manteve-se durante uma semana, período durante o qual, a aldeia de Outeiro Seco foi ocupada pela coluna militar, mantendo-se aboletada, o que quer dizer, que a população local teve que prover ao sustento da tropa.
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O chamado quarto secreto é o nº 34 da planta |
Ao fim desse tempo, a força militar finalmente abandonou Outeiro Seco, e o meu trisavô abandonou o seu quarto secreto e fugiu para a Espanha, que se encontra a meia dúzia de kms dali e ter-se-á mantido cerca de um ano ou mais na povoação galega de Feces de Abajo, mesmo na raia. Os dados são incertos.
Estas sublevações de aldeias o e clima de suspeição pioraram por toda a região transmontana, quando Paiva Couceiro saiu do Pais depois de Maio de 1911, em direcção à Galiza, ao que parece com claras intenções de reunir exército, entrar em Portugal pelo Norte, tradicionalmente monárquico e formar um cortejo triunfal até Lisboa. Talvez baseado nestas notícias de motins monárquicos em comunidades rurais do Norte, Paiva Couceiro, tivesse imaginado, que à medida que entrasse em Portugal, a população espontaneamente daria vivas a el-rei, expulsasse os caciques republicanos e num cortejo triunfal, marchariam juntos sobre a jacobina Lisboa.
Os boatos sobre este exército a formar-se na Galiza criaram um clima de nervosismo em Portugal, movimentaram-se tropas, prenderam-se activistas monárquicos um pouco por todo o lado e é natural, que o meu trisavô tivesse permanecido prudentemente em Espanha. Não sabemos é se manteve contacto com os apaniguados de Paiva Couceiro, os paivantes como eram conhecidos. Mas é natural que sim, pois uma grande parte deles estavam estacionados em Verin, a poucos kms de Feces de Abajo. Aliás, muitos padres faziam parte do exército dos Paivantes.
No entanto, depois da sua fuga, teve oportunidade de escrever dois artigos para jornais portugueses, explicando os motins de Outeiro Seco: A Folha, jornal de Viseu, a 26 de Fevereiro de 1911; e o Concelho de Chaves, jornal republicano, mas dirigido pelo irmão da nora, Luís Alves, a 18 de Maio de 1911. Portanto, a liberdade de imprensa continuava a funcionar, bem como as facilidades proporcionadas pelas relações familiares.
Na Galiza, os paivantes tiveram sérias dificuldades em organizarem-se. As autoridades espanholas não os deixavam reunir na mesma cidade, não os autorizavam a realizar exercícios militares conjuntos e faziam-lhes ainda grandes apreensões de armas. Eram espiados pelos republicanos espanhóis e os próprios paivantes careciam de um perfil adequado à missão de guerrilha revolucionária. Muitos deles pertenciam as melhores famílias do Reino, com apelidos e títulos do mais sonante que havia e rapidamente ficaram conhecidos como os pinocas, pelos paivantes menos afortunados. Esta gente tinha as suas reuniões secretas nos fumiers dos hotéis em Espanha, perante toda a gente e os seus negócios de tráfico de armas eram rapidamente descobertos e os carregamentos apreendidos.
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Vinhais reocupada pelas tropas republicanas. A casa da rua que sobe, com um pequeno balcão, pertencia à minha família materna. Fotos da Ilustração Portuguesa |
Não obstante Paiva Couceiro, conseguiu reunir esta tropa irregular e com menos armas que pessoas, entraram no País pelo Concelho de Bragança, pela Cova da Lua, na madrugada de 5 de Outubro, numa zona que já é gelada nesse final do ano. Percorrem esse caminho no meio de serras altíssimas, mal calçados, alguns de sapatos de verniz, com frio e fome e hesitantes.
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Iº incursão de Paiva Couceiro |
Pensam atacar Bragança, mas desistem. Marcham então sobre Vinhais, uma vila esquecida na estrada entre Chaves e Bragança e conquistam-na às 4 horas da manhã, acordando os seus habitantes pouco habituados a intranquilidades.
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Outro aspecto de Vinhais em 1911 |
Hasteiam a bandeira e Vinhais será novamente monárquica, mas só por umas breves horas. Receiam um ataque republicano e no mesmo dia, abandonam Vinhais. Recuam aos trambolhões ao longo da fronteira luso-espanhola até quase ao Gerês, entrando e saindo, em Portugal e com e exército republicano e os voluntários da Carbonária em sua perseguição. Só abandonam definitivamente Portugal a 20 de Outubro de 1911.
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A minha avó materna numa foto tirada poucos anos antes das incursões monárquicas |
A minha avó materna, Adelaide Maria (4-6-1894), natural de Vinhais terá assistido a estes acontecimentos e deles terá guardado uma memória precisa, pois já tinha cumprido 15 anos. Terá talvez espreitado da janela a chegada dos paivantes, mas apesar de os pais serem monárquicos, naturalmente não a autorizaram ir para rua, pois naquele tempo as meninas só saíam para ir à Missa. Infelizmente, isto é uma mera suposição, porque as filhas da Adelaide Maria não registaram nada do que a mãe lhes terá dito sobre estes acontecimentos, ou melhor, talvez nós tivéssemos deixado partir as filhas sem as interrogar sobre a incursão de Paiva Couceiro de 1911.
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Vinhais em 1911. Foto Ilustração Portuguesa |
Entretanto, não sei o que se passou neste tempo com o meu trisavô. Talvez ainda permanecesse em Feces. A Família conta que um guarda português de passeio a Espanha, reconhecendo-o, terá tentado agarra-lo e que o Liberal Sampaio escapou por pouco. Seja como for, terá regressado a Portugal, aproveitando algum indulto, pois os governos da república sucediam-se a uma velocidade alucinante.
Mas, Paiva Couceiro, o eterno idealista não desistiu e voltou a reunir tropas e a congregar apoios, mas mais uma vez o governo espanhol dificultava-lhe os movimentos. O Rei D. Manuel II, exilado em Londres, continuou de má vontade, porque Paiva Couceiro se entendeu com os pretendentes miguelistas. O que é certo, é que os Paivantes, em Julho de 1912, lançam-se outra vez sobre Portugal, sobre a região de Chaves, cujo comprido vale é um dos caminhos naturais para os invasores entrarem em Portugal. Pensou-se que Paiva Couceiro pretendeu seguir o exemplo do general Soult, que conduziu segunda invasão francesa através do vale de Chaves.
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2ªa incursão de Paiva Couceiro, 1912. Mapa extraído da obra de Pulido Valente |
Porém, nada nestas incursões parece seguir uma lógica. A primeira coluna, comandada por Paiva Couceiro entra por Sendim e dirige-se a Montalegre, uma terra sem grande importância estratégica. Mudam de ideias e de direcção e saltam sobre Chaves, que estava mais menos desprotegida, pois a guarnição local tinha partido em direcção a Montalegre para dar caça aos Paivantes.
A cidade de Chaves é atacada, mas surpreendemente, a guarnição oferece uma terrível resistência. Há muitos tiros e povoação sofre o fogo de um canhão dos monárquicos. Os civis na cidade mobilizam-se para apoiar os soldados e há mortos e feridos de ambos os lados.
Ao mesmo tempo, uma segunda coluna de Paivantes atravessa a fronteira em Vila Verde de Raia comandada pelo Capitão Mário Sousa Dias e dirige-se também para a Chaves. Mas, o seu avanço é confuso e um dos seus líderes, D. João Almeida Correia de Sá (Lavradio), que ouviu dizer que Paiva couceiro está prestes a entrar em Chaves, adianta-se às tropas para estar presente na entrada triunfal na praça-forte transmontana. É capturado por dois simples soldados republicanos.
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O orgulhoso D. João deAlmeida preso por soldados republicanos- Foto Ilustração Portuguesa |
Os sitiados republicanos conseguem aguentar as suas posições, até ao momento do regresso da guarnição que tinha ido perseguir os monárquicos a Montalegre. É então a grande debandada dos paivantes. Fogem desordenadamente. Muitos partem em direcção a Espanha por Outeiro Seco com os republicanos no seu encalço. Uns quantos deles terão passado pela vinha anexa ao Solar dos Montalvões, onde abandonaram armas, cantis e munições. O meu pai ainda se lembra de ver no Solar uma velha espingarda Winchester abandonada pelos Paivantes. Existia também no museu das curiosidades da casa uma granada disparada pela artilharia em Chaves, que nunca explodiu. Nessa perseguição que passou pelas terras do Solar, foi também morto um dos monárquicos.
Não sei a família ajudou estes fugitivos. Sou levado a crer que lhes deu algum amparo, pois, no final das hostilidades e por um período de tempo muito longo, a mãe do rebelde monárquico, vinha todos os anos rezar junto à árvore onde o filho foi morto. Tentei nos livros descobrir quem foi esse jovem ou esse homem, mas não consegui perceber. Talvez alguém lendo as linhas deste blog, se recorde de um antepassado seu, que tenha morrido na propriedade dos Montalvões, em Outeiro Seco, na defesa de uma bandeira azul e branca.
Quanto ao meu trisavô, ignoro a sua participação nesta segunda incursão. Talvez ainda estivesse em Espanha ou refugiado no interior do Solar. O certo é deixa de haver registo sobre a participação da família na causa monárquica, mesmo em 1919, durante a Monarquia do Norte, em que Paiva Couceiro voltou num dos momentos mais atrapalhados e confusos da história monárquica. A família limitou-se a mostrar a sua fidelidade à causa real, mantendo a bandeira azul e branca hasteada no solar, até aos anos 30, data da visita do Presidente Carmona à casa.
Para quem gostar deste assunto recomendo a leitura do livro de Vasco Pulido Valente, Um herói português: Henrique Paiva Couceiro. - Lisboa: Aletheia editores, 2006