sábado, 24 de dezembro de 2016

A adoração dos magos de Joaquim Carneiro da Silva ou votos de boas festas


Confesso-vos que tenho um certo horror a escrever sobre efemérides, estações do ano ou quadras festivas. Recordo-me sempre das redacções que era obrigado a fazer na instrução primária e do medo que sentia em apanhar reguadas por causa dos erros de ortografia. Mas, tinha esta estampa da Adoração dos magos em casa assinada por Joaquim Carneiro da Silva e achei que era boa altura para mostra-la aqui no blog e desejar assim umas boas festas aos que tem pachorra para me ler.

J. Silva será a assinatura de Joaquim Carneiro da Silva

Esta estampa será  de Joaquim Carneiro da Silva (1727-1818) e terá sido retirada provavelmente de um breviário. Sou dessa opinião pois fiz a pesquisa por um dos termos do verso da gravura in vigilia epiphaniae ad nonam antiphona, ecce Maria e fui ter a um breviário integralmente digitalizado do século XVIIII. Aliás já tinha mostrado outra estampa deste gravador, comprada na mesma banca da feira de alfarrabistas, da Rua Anchieta e que terá saído do mesmo livro que esta, um breviário impresso em Lisboa, na Régia Oficina Tipográfica nos últimos anos do século XVIII ou inícios do XIX.

O verso da estampa indica-nos que ela foi retirada de um livro, provavelmente um breviário ou de um outro livro litúrgico

O mais curioso é que encontrei duas estampas praticamente iguais a esta, uma da colecção do Museu dos Coches e outra à venda no Cabral Moncada, assinadas por Bartolozzi e datadas de 1811. Tal como Joaquim Carneiro da Silva, Francesco Bartolozzi (1725-1815) executou várias estampas para missais e breviários da Régia Oficina Tipográfica, livros que na altura eram muitíssimos vendidos, pois todas as paróquias, conventos tinham que ter pelo menos um exemplar.

A adoração dos magos de Bartolozzi, 1811. Cabral Moncada Leilões, lote 579, 2008
Recordei-me imediatamente de um texto de Pedro Queiroz Leite, intitulado O Missal da Regia Officina Typographica e seu legado na pintura rococó mineira: uma refutação à influência de Bartolozzi, de 2011, em que afirma que o célebre gravador italiano radicado em Portugal usou estampas de Joaquim Carneiro da Silva, sem sequer lhe prestar os devidos créditos. Seguindo o raciocínio de Pedro Queiroz Leite esta Adoração dos Magos terá sido primeiro gravada por Joaquim Carneiro da Silva num breviário e mais tarde reutilizada por Bartolozzi, numa edição posterior dessa mesma obra.

A Adoração dos magos de Carlo Maratta será o modelo das estampas de Joaquim Carneiro da Silva e Bartolozzi
Em todo o caso o modelo que inspirou as gravuras  de Joaquim Carneiro da Silva e Francesco Bartolozzi foi uma adoração dos magos de do pintor italiano Carlo Maratta, cujo desenho encontrei à venda na net.

Enfim, estamos numa época em que os conceitos de plágio e direito de autor não estavam ainda formados e as cópias faziam-se da forma mais natural possível. Por mais incrível que pareça à nossa sensibilidade actual, que valoriza a originalidade dos artistas ao ponto de admirar indivíduos que espalham livremente tinta numa tela posta no chão, na época, a cópia fazia parte do processo de criação da obra de arte.


terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Santa Sofia e as suas três filhas: fé, esperança e caridade



Sofia é uma santa lendária, que nem consta do Martirológio Romano. Terá vivido em Roma, no tempo do Imperador Adriano e elas e as suas filhas, Fé, Caridade e Esperança foram martirizadas no ano de 137. A sua história é semelhante a de muitas outras mártires cristãos que viveram em Roma no tempo das perseguições. As quatro andavam pelas ruas de Roma tentando atrair pessoas para a nova fé cristã e foram presas. Sofia, que em grego quer dizer sabedoria, assistiu ao martírio das filhas e incentivou-as sempre a resistirem e a não abjurarem da sua verdadeira fé. Depois de suplícios terríveis, acabaram as três por ser mortas à vista da sua mãe, que morreu de desgosto. Há uma metáfora evidente nesta história. É a sabedoria divina que engendra no coração dos cristãos a três virtudes teologais, que são a fé, a esperança e a caridade.
O Imperador Justiniano dedicou-lhe a mais bela e grandiosa igreja de Constantinopla, a Hagia Sophia. Foto de https://www.khanacademy.org/

O culto de Sofia de Roma cresceu rapidamente no Oriente, nos territórios do Antigo Império Bizantino, como a personificação da sabedoria divina. O Imperador Justiniano dedicou-lhe a mais bela e grandiosa igreja de Constantinopla, a Hagia Sophia e mais tarde em todas as nações que abraçaram o cristianismo ortodoxo, levantaram-se templos monumentais a Santa Sofia e ainda hoje, apesar de cerca de 80 anos de comunismo, Sofia (sabedoria), Vera (fé), Nadejda (esperança) e Lioubov (caridade) continuam a ser nomes próprios extremamente populares na Rússia.
Quem rezasse um Padre Nosso e uma Avé Maria à imagem de Santa Sofia, que estaria no altar de uma igreja que nós hoje desconhecemos, além da protecção contra o paludismo obteria 40 dias de indulgência

Se bem que o culto a Santa Sofia e às suas 3 filhas nunca tenham alcançado a dimensão, que teve no cristianismo ortodoxo, também foi praticado no catolicismo romano e esta estampa popular, provavelmente dos finais do século XVIII, é bem prova disso. Muito mais prosaicamente, aqui em Portugal,  S. Sofia tornou-se advogada das sezões, uma designação popular que se dá ao paludismo. Talvez esta relação com o paludismo tenha a ver com os suplícios infligidos às filhas, que foram martirizadas com matérias ardentes, estendidas em grelhas, passadas sobre carvão em brasa e regadas com cera e resinas quentes, tendo sobrevivido sempre. Só conseguiram acabar com a vida delas decapitando-as. Portanto, se as santas sobreviveram aos ardores do carvão ou da resina a escaldar, então elas protegeriam o crente dos calores da febre do paludismo, se fossem efectuadas as correctas orações.
 
 
Alguma bibliografia:


La légende dorée / Jacques de Voragine. - Paris : Perrin et Cie., Libraires-Éditeurs, 1910.

Iconographie de l'art chrétien / Louis Réau. - Paris : Presses Universitaires de France, 1955.

https://fr.wikipedia.org/wiki/Sophie_de_Rome 

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

O atlas quinhentista da biblioteca do solar dos montalvões em Outeiro Seco, Chaves

Frontispício de Theatrum orbis terrarum. - Antverpiae : apud C. Plantinum, 1579. Biblioteca Nacional de França

Já falei aqui da biblioteca do Solar de Outeiro Seco, com os seus quase dois mil títulos, datados dos séculos XIX, XVIII, XVII e mesmo do XVI. Tal como a casa, a biblioteca já não está na posse da família e foi vendida a um alfarrabista de Lisboa e dispersa pelos quatro cantos do mundo. Dela, resta apenas um catálogo elaborado pelos meus avós paternos, Maria do Espírito Santo Montalvão da Cunha e Silvino da Cunha.

 
Imagem da biblioteca do Solar dos Montalvões, Outeiro Seco, Chaves

Sabia através das histórias do meu pai e da minha avó que um dos tesouros dessa biblioteca era um atlas quinhentista e conhecia até algumas imagens desse livro, através de um filme feito pelo meu pai do interior da casa, em meados dos anos 60. No entanto, no catálogo que os meus avós fizeram dessa biblioteca, a informação sobre o atlas era muito escassa. Limitaram-se a indicar, Atlas para o título e apontaram o local de edição, Antuérpia e o ano de publicação, 1584. No fundo, não sabíamos mais nada da obra

Catálogo da biblioteca do Solar dos Montalvões. O Atlas é descrito de forma muito incompleta 

Como já fui referindo aqui e ali nos textos do blog sou bibliotecário e ao longo da vida já cataloguei muito livro antigo, isto é, edições impressas entre 1500 e 1800. Mas, nesta profissão, muitas vezes limitamo-nos a identificar os elementos que descrevem um livro, autor, título, publicação, descrição física e assuntos, mas não estudamos as obras. Esse trabalho é deixado aos investigadores. Mas recentemente, houve umas quantas edições antigas da biblioteca que saíram para uma exposição no Museu Nacional de Arte Antiga e tive necessidade de ler um pouco mais sobre a história de cada uma delas. Uma das obras era precisamente um atlas quinhentista, o célebre Theatrum orbis terrarum de Abrahamus Ortelius (1527-1598), publicada em Antuérpia em 1579. Esta obra de Ortelius é o primeiro atlas da história. Até 1570, data da sua edição, imprimiam-se cartas geográficas soltas, normalmente em forma de rolo e de difícil consulta. Ortelius teve então a ideia de reunir num único livro, num formato facilmente manuseável todas as cartas geográficas existentes, ordenadas por continente. Por essas razões o atlas de Ortelius conheceu desde logo um grande sucesso e entre 1570 e 1612 teve 31 edições.
Uma imagem da carta de Portugal e Espanha do Theatrum orbis terrarum, edição de 1579 da  Biblioteca Nacional de França

Acrescente-se que o facto do primeiro atlas moderno ter sido publicado em Antuérpia e não em Paris, ou Londres tem a ver com o intenso comércio marítimo internacional que passava pela aquela cidade e da necessidade que os riquíssimos mercadores flamengos experimentavam de estarem informados sobre as 4 partes do mundo.

Um pormenor da carta de Portugal e Espanha do Theatrum orbis terrarum, edição de 1579 da  Biblioteca Nacional de França


Enquanto fazia este pequeno estudo sobre a obra e folheava o Theatrum orbis terrarum de Ortelius do Museu Nacional de Arte Antiga, fez-se uma luz qualquer na minha cabeça e lembrei-me que talvez o atlas que existia na biblioteca do Solar de Outeiro Seco fosse o do Ortelius. Era muito provável, pois na centúria de quinhentos não existiriam muito mais atlas além do Theatrum orbis terrarum.
 
 
Um pormenor do atlas que existiu no Solar de Outeiro Seco, extraída de um filme que o meu pai fez nos anos 60. Por aqui, percebe-se desde logo que este atlas é o Theatrum orbis terrarum de Abrahamus Ortelius.
 
Vi novamente o filme que o meu pai fez, revi várias vezes a mesma cena, comparei as plantas filmadas com as da edição do Museu Nacional de Arte Antiga e tudo coincidia. O atlas que existiu na biblioteca do Solar de Outeiro Seco era de facto o célebre Theatrum orbis terrarum, que em português quer dizer Teatro do Globo Terrestre.
 
O colofon do atlas que existiu na biblioteca do Solar de Outeiro Seco. O atlas de desta biblioteca foi impresso em Antuérpia, na oficina de Christophe Plantin em 1584. Imagem extraída do filme feito pelo meu pai em meados dos anos 60
 
Como o meu pai sempre foi um homem de minúcias fez o favor de filmar o colofon, palavrão que designa o que hoje chamaríamos a ficha técnica do livro e que costuma aparecer na última página do livro e atráves dessas imagens consegui identificar com toda a segurança os dados da edição da obra. O atlas  que esteve em Outeiro Seco foi impresso em Antuérpia, na oficina de Christophe Plantin em 1584. A Biblioteca Nacional de Portugal guarda uma edição exactamente igual, com a cota C.A. 148 V, que está assim catalogada:

Theatrum orbis terrarum [ Material cartográfico] / Abrahamus Ortelius Antuerpianus. Antuerpiae: Christophorum Plantinum,1584.
O colofon do Theatrum orbis terrarum, edição de 1579. Biblioteca Nacional de França

Fiquei muito contente com esta minha pequena descoberta. Mas mais importante do que este sentimento de vaidade com a minha esperteza foi a percepção que alguém numa determinada época, que eu desconheço, talvez pelo meu trisavô, Liberal Sampaio durante o final do século XIX e inícios do XX, ou mais provavelmente, por um grupo de antepassados meus, que ao longo de dois ou três séculos, formaram numa casa no extremo Norte de Portugal, uma biblioteca que reunia obras fundamentais da cultura europeia.
 
Uma imagem do atlas que existiu na biblioteca do Solar dos Montalvões extraída de um filme feito pelo meu pai em meados dos anos 60
  
Uma imagem da carta de Portugal do Teatrum orbis terrarum, edição de1579. Biblioteca Nacional de França
 

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Castanheiros de Vinhais: um paraíso intocado


Há uns anos prometi a mim mesmo fazer um álbum com fotografias dos castanheiros de Vinhais, terra da minha família materna e de facto todos os anos, nas férias, tento capturar com a minha câmara a beleza de algumas árvores centenárias, que vejo ao passar na estrada. Claro, não é nada de sistemático. Não faço nenhum levantamento, nem consulto nenhum estudo e nem sei se já alguém se deu ao trabalho de fazer um inventário dos castanheiros com duzentos, trezentos, quatrocentos ou quinhentos anos desta terra fria de Vinhais. Recentemente li num jornal que há uma bióloga, Raquel Lopes, que se propõe fazer um inventário das árvores centenárias em Portugal. Pois bem, a senhora que visite Vinhais e percorra as estradas do Concelho e a única dificuldade que encontrará é escolher o que fotografar.



O Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas tem um inventário nacional do Arvoredo de Interesse Público, mas para o Concelho de Vinhais só encontrei 4 ocorrências, uma nogueira, em Quintela, que já aqui mostrei imagem e três castanheiros, em Paçô, Lagarelhos (também já aqui mostrado) e Vilarinho de Lomba. Mas, existem muito mais árvores centenárias que estas aqui classificadas. Eu que não vivo em Vinhais e só lá vou no Verão já vi mais que uma centena de castanheiros seculares. Aliás o interesse desta região é que não encontramos aqui ou acolá um ou outro castanheiro centenário, que sobreviveu por mero acaso à fúria do desenvolvimento selvagem, como em outras regiões do país. Aqui, no concelho de Vinhais deparamos com manchas de castanheiros à medida que nos aproximamos de cada povoação e muitos desses soutos são centenários e bem que mereciam uma classificação global.



Esses maciços de castanheiros tornam-se ainda mais interessantes para nós, os portugueses, se pensarmos que vivemos num país cuja paisagem está quase inteiramente desfigurada pelo Eucalipto e pelo Pinheiro bravo. Viajando pela auto-estrada de Lisboa ao Porto, ou de Lisboa a Viseu, ao longo de quilómetros e quilómetros, somos capazes de ver de um e o outro lado da estrada eucaliptos e pinheiros ininterruptamente, florestas essas que nos Verões muito quentes ardem invariavelmente, para grande excitação dos media, que fazem imensos debates, reportagens e mesas redondas e depois no final da estação, toda a gente se volta a esquecer dos incêndios e volta tudo ao mesmo e plantam-se mais e mais eucaliptos e pinheiros bravos. Pois aqui em Vinhais, vive-se ainda no paraíso perdido sem o pecado original do eucalipto, com a floresta tradicional de carvalhos e as grandes manchas de soutos em volta das povoações. Só para admirar árvores vale a pena visitar Vinhais.