Há uns dois ou três anos quando o Manel comprou esta bela gravura do Século XVIII, tal como ele fiquei muito intrigado com o tema estranho, um homem que é conduzido vendado através duma cidade, com um cão, um macaco e um galo ao centro e ao fundo uma figura alegórica, que parecia representar talvez um rio. Ainda para mais a gravura não tinha nenhum título que esclarecesse a insólita representação.
Talvez por ter trabalhado tantos em anos em bibliotecas e arquivos, desenvolvi uma particular memória para livros, para fixar que este ou aquele assunto é referido naquele documento, que aquela imagem me é familiar e se encontra naquele livro e que por sua vez está debaixo daquela pilha de livros, em casa de alguém que conheço ou no gabinete de um colega. Peço-vos desculpa pela gabarolice, mas essa é de facto uma qualidade que todos os documentalistas desenvolvem e que me permitiu recordar-me de ter lido algures “não-sei-aonde” a descrição da cena, quando vi aquela gravura. Percebi que o aqui ali estava representado era o castigo particularmente atroz de um crime e lembrei-me que tinha lido uma descrição dessa punição, talvez para o incesto ou parricídio, num dos livros do
Steven Saylor, um dos romancistas históricos mais empolgantes e rigorosos da actualidade.
O Manel que nestas coisas é muito curioso e persistente foi verificar e confirmou que a situação representada na gravura tinha sido de facto descrita pelo
Steven Saylor, na obra, o Sangue Romano. Nesse romance, baseado num caso verdadeiro, Cícero defende Sexto
Róscio, acusado de matar o seu pai, um dos actos mais abjectos para a sociedade romana, o parricídio, e consegue absolve-lo desse crime, que teria custado ao seu cliente um castigo semelhante ao descrito na gravura.
Roma era uma sociedade patriarcal em que o
pater famílias dispunha de um poder absoluto, quer sobre os seus filhos, quer sobre todo um grupo de pessoas, que dele dependia, como os escravos e famílias de gente livre, mas mais pobres e das quais era patrono. Portanto, atentar contra a vida do pai era ameaçar uma forma de autoridade fundamental, em que se estruturava a organização social romana e como tal era considerado o pior dos crimes e merecia a mais atroz punição.
O castigo para o parricida foi estabelecido no tempo da república romana, ou mesmo antes e tinha sido definido por sacerdotes, em vez de legisladores, pois pretendia reproduzir a ira do pai Júpiter sobre o infame que ousa assassinar a semente que lhe deu a vida.
O horrendo castigo consistia numa série de passos que esta gravura apresenta muito bem. Depois do julgamento, o mau filho era conduzido para fora da cidade e toda a cidade era convocada ao toque de trombetas para assistir.
Eram colocados dois
pedestais à altura dos joelhos do parricida. Este, já completamente despido, punha um pé em cada pedestal, ficando acocorado e com as mãos presas atrás das costas. Era depois chicoteado repetidas vezes, até ao ponto, em que o parricida pudesse ver o seu sangue correr pelo chão, sangue esse que lhe tinha sido dado pelo pai e assim compreendia o sacrilégio de ter ofendido a origem da própria vida.
Depois dos carrascos terem terminado o seu trabalho, o criminoso era conduzido até a um saco de peles, cosido de forma a não deixar entrar nem água, nem ar, enquanto que a populaça lhe atirava excrementos e o insultava. De seguida, o parricida era colocado no referido saco, o que significava que se estavam a devolve-lo ao ventre materno. Punham-se nesse mesmo saco os seguintes animais:
- Um galo e um cão, símbolos protectores do lar, que tinham falhado na naccção de proteger o
pater famílias e eram por isso também castigados;
- uma serpente, que segundo se acreditava teria morto a sua mãe à nascença;
- Por fim, um macaco, a mais cruel paródia da humanidade feita aos Deuses
O saco era hermeticamente fechado e lançado ao Tibre, aqui representado pela figura alegórica do homem nu, reclinado sobre uma pedra, no canto inferior direito. O pobre homem tinha pois uma morte horrível e o seu cadáver acabava em mar alto, significando todo este percurso, que Júpiter tinha-o condenado em terra, tinha sido lançado a Neptuno, o Deus das Águas e este entregou-o a Plutão, o
deus da morte e dos infernos.
Este era então o terrível castigo destinado aos parricidas, na Antiga Roma, mas agora importa falar um pouco sobre a gravura, que está assinada, mas não tem título nem data.
No canto inferior direito tem escrito "I.
Wandelaar fecit" e ao centro "
Lugdunum Batav.
Ianssonii vander Aa excudunt:" No canto inferior esquerdo aparece a letra "B", sem mais nada.
Pieter van der
Aa (Leida, 1659 — Leida, Agosto, 1733) terá executado a gravura e
Joannes Janssonius (1588-1664) foi o impressor. Este último senhor notabilizou-se na Holanda na impressão de Atlas e outros documentos cartográficos hoje muito valorizados por
alfarrabistas.
Jan Wandelaar (1690-1759) terá sido o artista e ficou famoso pelos desenhos precisos de anatomia, que fez para a obra de medicina
Tabulae Sceleti. – Leiden, 1747 (imagem inferior)
Lugdunum Batav era o nome latino que davam à cidade holandesa Leida, ou
Leiden em neerlandês.
Não conhecemos muito mais sobre esta obra, mas segundo uma informação que encontrei na Internet,
numa fonte que não me pareceu lá assim muito
fidedigna, esta gravura terá feito parte de um livro, a
De Rerum Natura, do poeta latino Lucrécio, impressa em
Leiden, em 1725, pelo mesmo
Joannes Janssonius. Ainda segundo essa fonte, neste caso
Jan Wandelaar seria apenas o gravador de uma obra original do pintor holandês
Frans van Mieris.
Consegui descobrir no
google books um fac-
símile on-
line desta edição, que de facto continha algumas gravuras, mas nenhuma igual a esta. Contudo, do livro sexto da
De Rerum Natura , só consegui consultar o 1º volume e pode ser que precisamente no segundo volume se encontre a referida gravura. Também não percebi porque razão esta estampa ilustraria a obra do poeta Lucrécio. É certo, que na antiguidade, os pensadores escolhiam a poesia para versarem temas como a filosofia, a história ou a ciência, mas na descrição do conteúdo do Livro Sexto da De
Rerum Natura parece não haver lugar para uma gravura deste tema.
Enfim, o livro de onde esta gravura foi retirada permanece um mistério e aceitam-se sugestões