Sempre tive uma paixão por retratos miniatura, aquelas pinturas dos séculos XVII, XVIII e XIX, que antes da invenção da fotografia eram o único meio de fazer conhecer um rosto à distância. Os retratos miniatura eram objectos de natureza íntima, que se trocavam por ocasião de casamentos arranjados entre noivos, que nunca se tinham visto, ou entre pais e filhos separados por longas distâncias, ou serviam ainda para recordar uma criança morta demasiado cedo. Esses retratos pintados sobre velino, papel ou marfim são normalmente um pequeno primor e fazem parte das colecções dos grandes museus.
Retrato do Visconde de Vila –Nova de Ourém. Museu Nacional de Arte Antiga, 228 Min. Foto http://www.matrizpix.dgpc.pt/ |
Como recebi um dinheiro extra, resolvi fazer uma pequena extravagância e comprei uma dessas pinturas miniatura, emoldurada em marfim, na Feira de Estremoz. Representa uma jovem dama, vestida em trajes datados mais ou menos do segundo quartel do século XIX, isto é, cerca de 1825-1850. Está assinado, mas na altura em que o comprei não consegui ler o nome. O verso da moldura foi revestido com a página de um livro antigo, de uma edição qualquer da Bíblia, inglesa, dos finais do XVIII.
No entanto, como este retrato não me pareceu muito antigo, abri a Santa e Sapientíssima Internet e pesquisei pelos termos Miniature portrait, ivory framework, e Miniature cadre en ivoire, quer em imagens, quer em texto e rapidamente comecei a perceber que as miniaturas emolduradas em marfim semelhantes à minha são relativamente recentes. As que encontrei em sites de leilões e de antiquários na internet eram datadas dos finais do Século XIX ou dos primeiros anos do Século XX.
Continuei as minhas pesquisas e descobri um artigo estupendo na internet de Don Shelton, intitulado Copy, Fake, and Decorative Miniatures, que descreve sumariamente a história da miniatura, bem com as reproduções e falsificações que delas se foram fazendo ao longo dos tempos. Neste texto, refere que finais do Séc. XIX, inícios do XX, na Alemanha e na França foram executadas centenas, senão milhares de cópias de retratos em miniatura ou de obras famosas a partir de estampas, só que em dimensões reduzidas.
As molduras em marfim eram feitas a partir de teclas de piano |
As molduras de marfim eram feitas reaproveitando antigas teclas de piano e no verso eram revestidas com páginas de livros antigos, para lhes dar um ar histórico. Ao contrário dos retratos miniatura originais, que muitas vezes não eram assinados, estas cópias ostentavam assinaturas de nomes de artistas famosos como Stieler, Nattier, Cosway, Smart e Isabey. Aliás, foi a referência a estes artistas que me permitiu ler a assinatura que constava no meu retrato “Stieler”.
Stieler é a assinatura de Joseph Karl Stieler |
Stieler é a assinatura de Joseph Karl Stieler (1781-1858) um pintor alemão da corte bávara que se notabilizou entre outras coisas pela execução da célebre galeria das beldades do Palácio de Nymphenburg, em Munique. Esta Galeria das beldades, ou Schönheitengalerie em alemão, é um conjunto de 36 pinturas, encomendadas pelo Rei Luís I da Baviera a Joseph Karl Stieler, que as executou entre 1827-50, representando as mulheres mais bonitas de Munique. Desta galeria de beldades consta o quadro original, que o autor da minha miniatura copiou descaradamente.
A obra que serviu de modelo à minha pintura. O retrato de Rosalie Julie von Bonar, por Joseph Karl Stieler. |
Trata-se do retrato de Rosalie Julie von Bonar, uma jovem aristocrata, filha de um cavaleiro imperial da Morávia e de uma condessa polaca e que casou com o embaixador inglês em Viena, o Barão Ernst von Bonar. Teria 26 anos, quando Joseph Karl Stieler executou este retrato em 1840 e pouco mais se sabe desta Senhora. Mas desta galeria, que ainda hoje se pode admirar no Palácio de Nymphenburg não constam só damas de alta condição, mas também uma cortesã e uma das mais famosas, a danseuse exótica Lola Montez, uma aventureira irlandesa que se fazia passar por espanhola e que se tornou amante do Rei Luís I da Baviera. Mas, o Rei não se limitou só a mandar retrata-la na galeria das beldades de Munique, concedeu-lhe uma anuidade milionária e ainda fez dela Condessa de Landsfeld. O escândalo foi de tal ordem, que o Rei foi forçado a abdicar e a pobre Lola Montez teve que partir da Baviera às pressas, procurando um outro qualquer patrono ou marido rico em paragens mais distantes.
A danseuse exótica Lola Montez, amante do Rei da Baviera é o retrato mais famoso que Joseph Karl Stieler executou para a galeria das Beldades |
Mas voltando à minha pintura da bem comportada Rosalie Julie von Bonar, não é com efeito um verdadeiro retrato em miniatura, um objecto íntimo que um dia alguém encomendou para oferecer a um parente ou a um noivo. É uma reprodução de pequenas dimensões do quadro de Joseph Karl Stieler, ao jeito das miniaturas do início do XIX, feita provavelmente a partir de uma estampa, algures na Alemanha ou na França, por algum estudante de pintura, numa oficina que fazia destes quadrinhos às centenas, reaproveitando teclas de piano para fazer as molduras. Mas o que é mais curioso é que estas falsificações eram na verdade uma espécie de souvenirs das obras dos grandes museus e galerias, vendidas aos turistas que faziam o grand tour nos finais do século XIX. Com efeito, era uma época em que os museus e galerias de arte não dispunham ainda de todo o merchandising das suas colecções, com reproduções das obras dos grandes mestres da pintura e nem as pessoas viajavam com câmaras digitais, fotografando tudo e mais alguma coisa, de modo que estas pinturas miniaturas eram compradas como recordações das grandes obras do Louvre ou outras grandes colecções europeias, da mesma forma como hoje em dia adquirimos nas nossas viagens a Paris ou a Florença uma t-shirt com a Mona Lisa, ou uma coisinha para pendurar no frigorífico, com o Nascimento de Vénus de Boticelli. Terá sido o caso deste quadrinho, talvez comprado por alguém, que há cerca de 100 ou 120 anos visitou a célebre galeria das beldades do Palácio de Nymphenburg e quis ficar com uma recordação, que hoje é minha e cuja história serve de presente de Natal a todos os que ainda tem pachorra para me ler.
http://www.rubylane.com/item/135488-213pmHat/Antique-French-Portrait-Miniature-large-Miss
http://en.wikipedia.org/wiki/Gallery_of_Beauties
http://www.artwis.com/