terça-feira, 13 de agosto de 2024

Um prato de Miragaia marcado




Nos últimos anos tenho publicado pouco sobre faiança portuguesa. Não porque tenha perdido o interesse, mas coleccionar terrinas, molheiras, pratos, jarras e travessas é uma prática que implica ter espaço e na assoalhada e meia em que tenho vivido até agora, já não há paredes livres, nem tampouco tampos de móveis para expor mais peças. Alguns dos pratos foram até parar ao tecto, de acordo com uma inspiração colhida no Palácio de Santos em Lisboa.

Mas a carne é fraca e como estou em vias de mudar de casa, comprei noutro dia por um preço absolutamente irrecusável um prato de sopa, do motivo País, com a marca incisa, SP, dentro de uma reserva oval. Quando o adquiri, já não me recordava exactamente a que correspondia a marca SP, mas sabia que este motivo País tinha sido produzido por quatro fábricas, Miragaia, Santo António de Vale da Piedade, Alto da Fontinha e ainda Viana. Como as peças de Viana são uma variante mais característica este prato só ó poderia ser das três primeiras fábricas e portanto o preço que paguei foi baixo. Os exemplares marcados têm sempre maior valor económico, mas também um interesse acrescido para o conhecimento e evolução e produção desta ou daquela fábrica.

A marca incisa, SP, dentro de uma reserva oval


Cheguei a casa e foi consultar o catálogo da exposição Fábrica de Louça de Miragaia. - Porto : Museu Nacional do Azulejo, 2008, que é fundamental para quem se interessa por faiança e logo na página 250, estava reproduzida esta marca, como sendo de Miragaia, do segundo período de laboração da fábrica, entre 1822-1850. Fiquei todo contente, pois tinha acertado na mouche e comprado um prato Miragaia autêntico.




Em termos de funcionalidade, parece-me um prato de sopa. Mas curiosamente, no catálogo da exposição de Miragaia, os autores não usaram as expressões prato de sopa ou raso, mas sim prato com covo acentuado ou pouco acentuado. Já tinha lido que a terminologia para designar a louça de servir neste 2º quartel do século XIX era diferente daquela que usamos hoje dia, o que provavelmente explica essas designações dos autores do referido catálogo. Consultei então o Itinerário da faiança do Porto e Gaia, do qual consta um glossário dos termos usados na época. Assim, o prato raso individual, no qual se serviam alimentos sólidos era designado por prato ladeiro ou de guardanapo. Ao prato apropriado para comer sopa, de caldeira mais funda da que o prato ladeiro chamava-se prato sopeiro.

Em suma, este é um prato sopeiro com a decoração País, fabricado por Miragaia, na cidade do Porto, entre 1822-1850.



É certo que o prato foi muito mal tratado ao longo dos seus quase duzentos anos de existência e por isso foi mais barato, mas também não vou usa-lo. Irá para uma parede na minha nova casa a aí terminará os seus dias numa reforma tranquila.



Alguma bibliografia consultada:

Fábrica de Louça de Miragaia. - Porto : Museu Nacional do Azulejo, 2008.

Itinerário da faiança do Porto e Gaia. - Lisboa : Instituto Português de Museus, 2001.

sexta-feira, 26 de julho de 2024

Um faqueiro de prata formado por três gerações




Desde há uns tempos para cá tenho publicado as minhas pequenas aventuras para completar o faqueiro de prata da minha avó Mimi, estilo D. João V, que foi dividido pela família. Assim, tenho vindo a juntar peças de várias épocas e estilos, portuguesas na sua maioria, uma outra francesa e até uma alemã e um belo dia darei um jantar para a família, com um faqueiro em prata.

Estes meus textos impressionaram a irmã do Manel, a Manuela, que resolveu oferecer-me um grande conjunto de talheres soltos, uns de prata, outros de alpaca e outros ainda de metal com baixa percentagem de prata, a chamada prata francesa. Alguns em mau estado, outros a precisar apenas de uma limpeza profunda Em todo o caso, isto não foi uma prenda, foi um prendão, se é que o termo existe em português.

O primeiro trabalho foi separar por material, prata, alpaca e metal prateado e depois por serviço e destaquei um conjunto ainda grande de 17 talheres, muito simples e bonitos, que em tempos terão formado um faqueiro, que iria à mesa nos jantares e almoços dos dias de festa. Desse faqueiro, sobraram as colheres de sopa, em número de 7 e as de doce, em número de 10.

As colheres de doce


Aparentemente é um conjunto coeso, um faqueiro, qualquer coisa que se ofereceu a uma menina família no dia do seu casamento, mas à medida que o ia limpando, fui encontrando marcas de diferentes ourives, cidades e épocas.

As marcas de prata são um assunto complicado de deslindar. Existem as marcas, que atestavam se a prata tinha a percentagem definida por lei, feitas pelos ensaiadores até 1887 e depois dessa data, pelas contrastarias e ainda as marcas dos ourives. Finalmente, para dificultar tudo isto, as marcas são minúsculas e encontram-se desgastadas pelas limpezas sucessivas,

JCA é uma marca de ourives atribuível a Júlio Cesar Amado,

A chamada bicha


Do conjunto das colheres de doce, nove apresentam marca de um ensaiador de Lisboa, a letra L maiúscula coroada e as iniciais do ourives, JCA. Além disso, apresentam o ziguezague característico, vestígio do método, que ensaiador tinha para examinar a qualidade e autenticidade da prata, em que retirava com um buril um fiozinho do metal. Tradicionalmente este ziguezague é conhecido pela marca da bicha e o seu uso desapareceu década de 80 do século XIX, com a criação das contrastarias.


Inventário de marcas de pratas portuguesas e brasileiras : século XV a 1887



Segundo o Inventário de marcas de pratas portuguesas e brasileiras de Fernando Moitinho de Almeida, Rita Carlos JCA é uma marca de ourives atribuível a Júlio Cesar Amado, sócio da Associação dos Ourives e Artes Anexas, citado em 1887 e que aparece associado as marcas de ensaiador L-46.0 e L-52.0. A marca do ensaiador destes talheres corresponde à L-46.0, datável entre 1870-1879. Portanto, 9 das colheres de doce terão sido fabricadas entre 1870 e 1879.

Inventário de marcas de pratas portuguesas e brasileiras : século XV a 1887


Mas estas 9 colheres apresentam ainda uma terceira marca, a chamada cabeça de velho. Após as reformas da década de 80 do século XIX, que passaram as competências dos ensaiadores municipais para o governo central, a partir de 1887, foi usada esta marca para certificar as pratas antigas ou pura e simplesmente sem marca

A cabeça do velho


Marcas de contrastes e ourives portugueses / Manuel Gonçalves Vidal



Esta Cabeça de velho apresentada uma forma usada em Lisboa, e creio que foi usada até aos anos 30 do século XX. Talvez por ocasião de umas partilhas, em que se tenha mandado fazer uma avaliação, alguém tenha pedido este contraste.






Marcas de contrastes e ourives portugueses / Manuel Gonçalves Vidal



A última colher de doce apresenta a marca de garantia de prata Javali, usada na contrastaria de Lisboa, entre 1887 e 1938 e a marca é do ourives de Lisboa, António José da Costa, registada em 1887 e cancelada em 1925. Portanto a colher terá sido fabricada entre 1887 e 1925 e é posterior ao restante conjunto.

As colheres de sopa mais antigas


Das 7 colheres de sopa, quatro apresentam a marca de um ensaiador de Lisboa, com a letra L maiúscula, encimada por uma coroa. Parece-me a marca igual ao dos talheres de doce, L-46.0, do Inventário de marcas de pratas portuguesas e brasileiras, datável ente mais ou menos 1870-1879.

Marca do ensaiador de Lisboa. Não consegui ler a marca do ourives


Contudo a marca de ourives é diferente e não a consegui ler. As sucessivas limpezas da prata e as lavagens desgastaram a marca.

Na colher da direita, a mais antiga, cabo foi soldado à concha. As colheres da esquerda, mais recentes, foram feitas numa só peça  


Enquanto estas 4 colheres, apresentam um sistema de fabrico, em que o cabo é soldado à concha, as restantes três colheres foram feitas numa só peça e são mais recentes também. O contraste é o javali, marca de garantia da contrastaria do Porto, usada entre 1887 e 1938 e o ourives foi Joaquim Pinto de Magalhães, que registou a marca em 1922. As duas colheres de sopa terão sido fabricadas em 1922 e 1938.


Marcas de contrastes e ourives portugueses / Manuel Gonçalves Vidal


Em suma, este conjunto de talheres do mesmo serviço terá sido adquirido progressivamente entre 1870 e 1938 pela família da sogra da irmã do Manel. Sendo que Senhora nasceu em 1909, esta terá comprado as peças mais recentes, completando um serviço já grande, iniciado pela sua mãe, ou mais certamente por uma avó. No fundo deve corresponder a três gerações. Naturalmente seria muito maior do que é actualmente. Dele fariam parte as facas, os garfos, os talheres de servir e colheres de chá, mas foi desaparecendo com as vicissitudes do tempo, que sempre afectam todas as famílias, por vezes de forma infeliz.

É um serviço muito simples e esta característica torna-o intemporal, ficando bem numa mesa em qualquer estilo, moderno ou clássico.




Bibliografia:

História das marcas e contrastes : metais nobres em Portugal,1401-2003 / Maria Nogueira Pinto ; rev. Benedita Rolo. - Lisboa : Mediatexto,2003.

Inventário de marcas de pratas portuguesas e brasileiras : século XV a 1887 / Fernando Moitinho de Almeida, Rita Carlos. - Lisboa : Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2018

Marcas de contrastes e ourives portugueses / Manuel Gonçalves Vidal ; anotações de Fernando Moitinho de Almeida. - Lisboa : Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1974


Um agradecimento especial ao André Afonso pela identificação de algumas marcas e à Teresa Lança por conseguir fotografar e ampliar as minúsculas sinalefas dos ourives.

domingo, 9 de junho de 2024

Uma menina em biscuit dos anos 20 ou a história de uns sapatinhos de verniz



Ultimamente, tenho escrito por aqui pouco. Não que me faltem temas, mas neste mês parece que ando num campo minado e cada vez que dou um passo para um lado ou para o outro, para traz ou para frente rebenta uma chatice ou um problema qualquer. Por essas razões resolvi escrever sobre um assunto, que nunca me dá muito trabalho, uma figurinha em biscuit. Estas estatuetas em biscuit são normalmente de origem alemã, fabricadas nos finais do século XIX, inícios do século XX, algures na Turíngia ou no Saxe e raras vezes estão marcadas e por essa razão é difícil encontrar informações na net, a não ser que por um acaso da sorte, haja um vendedor nos Estados Unidos, na Alemanha ou França, que esteja a vender uma exactamente igual, mas marcada. Mas os alemães fabricaram tantos destes bonequinhos em biscuit que é essa probabilidade é quase impossível. Assim, sendo, muitas vezes, resta-me escrever sobre os sentimentos que me despertam.


Esta menina sentada já a namorava há quase dois anos na banca de um vendedor na Feira de Estremoz. O senhor de vez em quando trazia-a, eu namorava-a à distância, porque normalmente o dono não costuma fazer preços acessíveis, depois desaparecia e eu pensava que já tivesse sido vendida, reaparecia novamente até que acabei por compra-la por um preço muito simpático.

Os meus irmãos e e eu vestidos com roupa de ir ver a Deus. Sou o mais pequenino.

Achei-lhe muita graça pois parecia que estava sentada, exibindo os seus sapatinhos novos. Recordo-me que por volta dos meus cinco anos tive uns sapatinhos de verniz, daqueles que só se usavam em ocasiões especiais, como se costuma dizer, para ir à Madrinha ou ir ver a Deus. Aliás, há uma fotografia dos meus irmãos e eu, no baptizado de um primo, o Tozé, em que tenho esses sapatinhos calçados, embora já um bocadinho cambados, pois era muito irrequieto. Nessa fotografia tirada talvez por volta de 1968 ou 1969, os meus irmãos estão em ponto branco, enquanto eu estou prestes a desfraldar-me e as meias estão todas enrodilhadas no fundo. Mas gostava tanto daqueles sapatinhos de verniz e tive tanta pena de deixar de os calçar, pois em três tempos deixaram-me de me servir. Quando há uns 16 ou 17 anos voltaram-se a usar-se os sapatos muito bicudos e apeteceu-me imenso comprar um desses modelos em verniz, mas fui ameaçado por amigos e filhos, de que não sairiam à rua comigo com esses sapatos calçados.

Mas voltando à figurinha em biscuit, ela foi-me vendida como paliteiro, embora não acredite muito nisso. Os paliteiros em louça são coisas muito portuguesas. Quanto muito será uma fosforeira, ou muito mais provavelmente um bibelot.

Além do pormenor dos sapatinhos, achei muita graça ao chapéu e vestido da menina que me parecem já dos anos 20, de um período em que a costureira Jeanne Lanvin (1867-1946) já tinha revolucionado a moda infantil, ao começar a desenhar os modelos para a sua própria filha, Marguerite, todos eles muito mais simples práticos, do que a chamada moda fin-de-siècle.

Como a própria Jeanne Lavin recordava no tempo da minha infância as meninas eram vestidas de forma lamentável, como sacos de bombons, marujas de catálogo ou pior ainda como damas de meia idade anãs.

A menina usa polainas nas pernas

E com efeito a menina de biscuit não usa laçarotes complicados nem uma profusão de rendas e folhos. Tem um chapéu discreto na cabeça e um vestido simples alargando para baixo, com as golas e as mangas em amarelo. Podia ser quase um traje contemporâneo, não fosse um pormenor, que esse sim, caiu definitivamente em desuso, umas polainas. Com efeito, consultando na net antigas revistas de moda doa anos 20 encontra-se ainda figurinos com muitos meninos e meninas usando polainas nas pernas.

Um figurino do início dos anos 20


Bem sei que menina em biscuit fabricada nos anos 20 do século passado na Alemanha, não é uma obra de arte, embora a peça tenha sido muito bem executada e pintada. Mas o que me agrada nela sobretudo é recordar-me aqueles sapatinhos de verniz, que tive em criança.



Alguns links consultados 

sexta-feira, 17 de maio de 2024

Uma jarra de opalina possivelmente de François-Théodore Legras



Desde há um tempo descobri o encanto das opalinas, esses vidros em cuja composição entrava óxido de estanho e cinzas de osso, conhecidos em português por vidros coalhados. Embora já fossem fabricadas em Veneza desde o século XVI, foi no século XIX, em França, que a produção de opalinas atingiu o seu apogeu decorativo e técnico. É certo que outros países também fabricaram vidros com composições semelhantes, nomeadamente a Inglaterra, na cidade de Bristol e a Boémia, na actual República checa,

Mas o que aparece mais nos mercados de velharias em Portugal são opalinas francesas da segunda metade do século XIX e que se compram preços razoáveis.

Na última feira de Estremoz comprei esta jarra muito bonita, que foi durante anos a fio usada para pôr flores, pois ainda tinha dentro restos de um lodo no interior, que foi uma chatice remover. A peça foi-me vendida como francesa e de facto o seu estilo decorativo foi obviamente inspirado na porcelana de Sèvres do século XVIII. Digamos que esta jarra é uma reinterpretação arte nova da porcelana de Sèvres do tempo de Luís XV.

Decidi então confirmar esta minha impressão, fazendo uma série de pesquisas por imagem no Google e encontrei uma jarra exactamente igual no portal de antiguidades WordPoint.com, mas cujo fabrico estava atribuído ao centro vidreiro Harrach, ou Harrachov, na Boémia, do período Loetz, cerca de 1880.




Fiquei um bocadinho desconcertado pois achei esta jarrinha com um estilo muito francês e também não me pareceu que tivesse sido fabricada por volta de 1880. A sua decoração já é muito 1900. Procurei no google por Harrarch e por Loetz e percebi que correspondem a dois centros de fabrico distintos da Boémia, o primeiro na cidade de Harrachov e o segundo em Klostermühle, hoje em dia, Klášterský Mlý. Em suma, o antiquário que tem isto à venda no Word Point confundiu alhos com bugalhos. Em todo o caso, prossegui as minhas buscas na net pelas opalinas Harrachov e de Loetz, em Klášterský Mlý e não encontrei nada semelhante. Os vidros checos de cerca de 1900, no chamado estilo secessão, nome usado na Europa Central para a Arte Nova, são sempre muito imaginativos, quase delirantes e pouco nada tem a ver com esta jarrinha, uma reinterpretação arte nova da porcelana de Sèvres.

A mesma jarrinha que estava à venda no Word Point aparecia também reproduzida no Pinterest, com a mesma legenda indicando, que era da Boémia, de Harrach, mas alguém deixou um comentário, chamando a atenção que a peça poderia ser eventualmente de Legras e resolvi explorar essa hipótese. Este Legras era o Senhor François-Théodore Legras (1839-1916), director das Verreries de Sant Dennis e que durante vigência da sua direcção, modernizou completamente a fábrica, conseguindo que os seus produtos fossem premiados várias vezes na nas exposições universais entre 1880 e 1900. A produção das Verreries de Sant Dennis era muito diversificada e ia desde produtos utilitários, a objectos de luxo, passando por criações arrojadas ao nível de vidreiros franceses famosos como Gallé, Daum ou Lalique.

Até há pouco tempo muito mal conhecida, a obra de François-Théodore Legras foi objecto de um catálogo sistemático, "François-Théodore Legras, verrerie artistique et populaire française / Marie-Françoise Jean-François Michel, Dominique et Jean Vitrat. -Paris : éditions Manufacture d'Histoire, 2012.


Jarra à venda no e-bay

Partindo dessa hipótese, encontrei então umas quantas opalinas como uma decoração muito semelhante à minha e cujos vendedores as identificavam como sendo de François-Théodore Legras, citando sempre as páginas 256 e 257 do acima referido catálogo, para justificar essa atribuição. Claro, eu não tive acesso ao catálogo, mas como um dos vendedores é nada menos nada mais que o Leiloeiro Drouot, umas das casas mais conceituadas no mundo das antiguidades, parti do princípio, que consultaram o referido catálogo e que atribuição que fizeram está correcta.



Conjunto posto à venda pelo Leiloeiro Drouot,


Em suma esta jarrinha de flores em opalina terá sido fabricada por volta de 1900, muito possivelmente pela Legras et Cie (Verreries de Sant Dennis) e é um exemplo da qualidade dos produtos dessa fábrica, uma reinterpretação elegante ao gosto de 1900 do estilo da porcelana de Sèvres do Século XVIII.





Ligações consultadas:





sábado, 20 de abril de 2024

Uma faca de manteiga em prata francesa do início do século XX


Como já aqui expliquei, ando a completar um faqueiro de prata herdado da minha avó Mimi, uma coisa em estilo D, João V, dos anos 30 do século XX, de um ourives do Porto. Mas decidi ir comprando as peças ao sabor dos meus impulsos, sem me preocupar que sejam do mesmo estilo da mesma época ou até do mesmo país. No fundo, estou a fazer uma colecção de talheres de prata, em que compro mais por paixão, do que por verdadeira necessidade, já que pouco ou nada recebo em minha casa. Bem sei que isto é pouco racional e tonto e talvez devesse comprar antes um fogão com placa vitro cerâmica ou até um robot de cozinha, que segundo ouvi dizer, faz coisas maravilhosas. Mas ao mesmo tempo que vou comprando pratas, vou começando a estudar um pouco melhor o assunto, do qual não sabia quase nada e o colecionar tem sempre este lado positivo, pois estimula o desejo de saber e conhecer mais.

O cabo está decorado num estilo vagamente Luís XVI 


Este talher de servir que apresento foi comprado em conjunto com mais outros cinco talheres, todos em prata francesa, por um preço muitíssimo convidativo na Feira de Estremoz. É uma faca de manteiga muito bonita, num estilo vagamente Luís XVI e corresponde a um hábito muito requintado do passado. Se hoje em dia, nos apetece barrar um pãozinho com manteiga logo pela manhã, usamos uma faca qualquer e andor que se faz tarde, pois é preciso sair de casa a correr, para apanhar um comboio, o metro, ou um autocarro para chegar ao emprego. Mas antigamente havia estes hábitos refinados. Lembro-me que em casa dos meus pais, quando se ofereciam lanches ajantarados colocavam a uso uma faquinha antiga de manteiga em madrepérola, que era um mimo.

Punção de garantia oficial da França, a cabeça de Minerva, usada entre 1838 e 1973


A faca apresenta no cabo o punção de garantia oficial da França, a cabeça de Minerva, usada entre 1838 e 1973. É uma prata de boa qualidade, pois tem o nº 1 à direita da cabeça. Na lâmina, há uma segunda marca, talvez do ourives. Contudo na época, em que este talher foi produzido, finais do século XIX, inícios do XX, os ourives franceses assinavam a prata de lei com um punção em forma de losango, contendo as suas iniciais ou um símbolo da casa e esta marquinha é rectangular, forma normalmente reservada às ligas com uma quantidade baixa de prata, ou metal prateado. Na prática, isto quer dizer que o cabo é em prata de Lei, de boa qualidade e a lâmina é de uma liga com baixa quantidade de prata, mas também certamente mais sólida e resistente.

Marca de Robert Louis, com estabelecimento, na rue du Temple, nº 7, em Paris, activo em 1917


No site https://www.silvercollection.it/ descobri que esta marca em forma rectangular, contendo as iniciais LR, uma asa, uma palma, três estrelas em cima e quatro em baixo foi usada pelo ourives Robert Louis, com estabelecimento, na rue du Temple, nº 7, em Paris, activo em 1917. Esta Rue do Temple, fica no bairro do Marais onde no passado se encontravam muitas oficinas e estabelecimentos de ourives.

Em suma, esta faca de manteiga é francesa, feita por volta de 1917, mas não consegui apurar se o ourives parisiense Robert Louis produziu só a lâmina, se também o cabo.



É certo que não sirvo pequenos almoços de categoria a ninguém, nem sequer lanches ajantarados para usar esta faca de barrar a manteiga no pão, mas quando os meus filhos aparecem para jantar, utilizo-a para cortar o queijo e é um prazer toca-la. Depois de lavar a loiça, não a arrumo logo, deixo-a um dia ou dois na mesa, ao lado do computador, para admira-la e agora percebo muito melhor o fascínio que a prata sempre exerceu na história da humanidade.

A faca mede 21 cm de comprimento


Ligações consultadas:




quarta-feira, 10 de abril de 2024

Uma elegante junto a pratos ratinho em 1913



Há uns tempos, tentando encontrar notícias sobre os tribunais de guerra criados para o julgamento de conspiradores monárquicos, após as duas primeiras incursões de Paiva Couceiro, resolvi bater todo o ano de 1913 da Ilustração Portuguesa, revista de actualidades, disponível on-line na Hemeroteca Digital. Mesmo quando se têm um objectivo preciso, folhear revistas antigas é uma perdição e rapidamente nos distraímos a ver os anúncios antigos, os figurinos das últimas modas, as crónicas mundanas ou ler notícias de conflitos, que na altura eram muito actuais, como a segunda guerra balcânica e que hoje foram remetidos para notas de rodapé dos manuais de oficiais de história.

Entre todas essas actualidades do passado, encontrei a notícia de um serão literário no Mosteiro de Alcobaça, com fotografias dos vários participantes e chamou-me logo a atenção, o retrato do poeta Afonso Lopes Vieira (1878—1946) e da sua mulher à saída do Mosteiro. Durante o período em que fui bibliotecário na Universidade Católica coordenei o tratamento do espólio de António Sardinha (1887-1925) e existiam muitas cartas de Afonso Lopes Vieira, que se distinguiam de imediato das outras, porque aquele poeta tinha uma caligrafia linda, muito pessoal, mas legível e usava ainda um papel timbrado com o motivo de uma vieira. Desde logo, percebia-se que era um esteta. Também me recordo muito bem de ver a sua casa de S. Pedro de Muel, que era e é um encanto. Apesar de ligado ao Integralismo Lusitano, a seguir ao 28 de Maio de 1926, demarcou-se do Salazarismo. Sempre simpatizei com esta figura, embora tenha aprofundado pouco ou nada sobre a sua obra.

O poeta Afonso Lopes Vieira


Este serão literário ou festa de arte foi organizado por Manuel Vieira Natividade (1860-1918) , ouviu-se muita poesia e naturalmente os convidados eram mulheres e homens de cultura. À saída ou à entrada do evento, os convidados percorreram o mercado semanal de Alcobaça e um casal elegante parece ter-se encantado com as cerâmicas. A jovem muito elegante com uma saia muito cingida e um lenço artisticamente enrolado parece estar a passar dinheiro ao senhor. Não sei o que compraram, se a cerâmica vidrada, se a panela de barro ou os pratos ratinhos no canto esquerdo. Nesta época, em 1913, neste meio de pessoas como o poeta Afonso Lopes Vieira ou o Manuel Vieira Natividade, que valorizavam a tradição, a história e a etnologia era provável que se apreciassem os ratinhos, estes pratos de faiança com uma decoração inconfundível.

Os ratinhos estão no canto inferior esquerdo

Achei muita graça a esta imagem, pois quanto vejas fotografias antigas de mercados e feiras, tento sempre identificar, que tipo de cerâmicas, se encontravam à venda, mas a definição é sempre má e nunca consigo descortinar nada. Mas desta vez, tive sorte e encontrei pelo menos três ratinhos, acabadinhos de sair da oficina em 1913.


Fonte consultada: Ilustração portuguesa, nº 394 (8 Setembro de 1913)

sábado, 6 de abril de 2024

Um bule em Britannia de meados do século XIX





Este velho bule apresenta todas as marcas do tempo. Ao longo da sua vida de cerca de um século e meio foi muito usado, quebrado várias vezes, reparado e soldado. O último acidente que sofreu foi quando o tentei limpar e fiquei com pega na mão, partida em três partes. Depois desse acidente escondi-o num canto qualquer da minha casa e ali ficou esquecido durante mais de uma década. Mas há uns tempos, mandei arranjar uns talheres de prata antigos numa oficina muito boa, ali no Bairro das Colónias, Rua de Timor, nº1 e lembrei-me de o levar lá e o Senhor fez um óptimo trabalho, pois além de soldar a pega colocou uma tira de metal por dentro, para lhe dar solidez.

Este bule é muito engraçado, pois tem uma forma muito típica da ourivesaria e da cerâmica do século XVIII, bojudo, com a pega da tampa em forma de uma pequena abóbora em cima de uma folha, mas a decoração gravada é uma coisa indefinida, entre Renascença e o gótico, enfim uma mistura de estilos muito ao gosto do século XIX. O problema é que não apresenta qualquer marca de fabrico, ou talvez a tenha tido, mas com tanta pancada que apanhou, marcas de soldaduras e reparações, ela desapareceu completamente.



Por uma questão de intuição, achei seria uma peça estrangeira, talvez inglesa ou francesa e provavelmente feita em peltre e comecei a fazer umas tantas pesquisas na net em inglês e francês tentando encontrar peças idênticas. E com efeito encontrei umas quantas coisas muito semelhantes e até um estudo muito bem feito, intitulado Britannia Metal: a new perspective/ Jack L. Scott, publicado na revista Spinning Wheel, vol. 29, nº2 , (Maio, 1973) e que a Nederlandse TinVereniging teve a feliz idéia de digitalizar e colocar on-line.

Este bule será certamente inglês, fabricado em Sheffield ou eventualmente em Birmingham, numa liga de metal desenvolvida na primeira cidade, que ficou conhecida pelo nome Britannia. Para os menos familiarizados com estes assuntos, Sheffield foi um grande centro industrial inglês, que desde meados do século XVIII se tornou famoso pela sua cutelaria e metais para uso doméstico. Nesta cidade desenvolveram-se toda uma série de técnicas e inventos para fabricar utensílios que pareciam prata, mas eram ligas com baixa percentagem daquele metal, casquinhas, galvanoplastias ou simplesmente metal prateado.

Um destes destas técnicas para fabricar utensílios que sugerissem a prata, foi desenvolvida cerca por um certo James Vickers de Sheffield, que começou a produzir um metal branco, cuja fórmula era semelhante ao estanho tradicional, excepto, que em vez de chumbo, se adicionava antimónio e um pouco cobre, permitindo a esta liga boas características para a fundição e uma cor mais próxima da prata. A ausência do chumbo, além de permitir a tal cor mais prateada, era também mais saudável para a saúde humana, já que o esse metal é tóxico. Rapidamente e ao longo dó século XIX, a produção destes utensílios em Britannia cresceu exponencialmente, estendendo-se também a cidade de Birmingham, atingindo o seu apogeu em meados dessa década. As formas usadas eram as das cafeteiras, açucareiros e bules em prata do século anterior e eram vendidas a preços muito mais baratos que a prata, as casquinhas, ou as de metal com baixa percentagem de prata.

Imagem retirada de Britannia Metal: a new perspective/ Jack L. Scott. A datação pelas pegas


As formas usadas nos vários produtores desta liga Britannia foram estudas e estão sistematizadas. Se no início do século as pegas das cafeteiras ou bules eram em madeira, tal como as de prata, a partir de 1840 generalizaram-se as pegas em metal, exactamente como as do meu bule, que são típicas do período entre 1841-1845. Do mesmo modo, a pegazinha da tampa do bule, em forma de abóbora foi sobretudo usada por volta dos anos 40 dessa década. No entanto, o bico do bule é datado de cerca de 1860.

Imagem retirada de Britannia Metal: a new perspective/ Jack L. Scott. A datação pelas pegas da tampa


Imagem retirada de Britannia Metal: a new perspective/ Jack L. Scott. A datação pelo bico do bule.


Em suma este bule foi fabricado em Inglaterra, em Sheffield ou eventualmente em Birmingham, numa liga conhecida pelo nome de Britannia, em meados do século XIX. Foi uma peça muito usada ao logo de mais de 100 anos por uma família, com inúmeras reparações e que agora encontrou uma reforma tranquila na minha casa.




Bibliografia consultada:

Britannia Metal: a new perspective/ Jack L. Scott
In
Spinning Wheel, vol. 29, nº2 , (Maio, 1973)

sábado, 23 de março de 2024

As incursões de Paiva Couceiro, um quarto secreto e Liberal Sampaio



Na família Montalvão conservou-se a memória de que o meu trisavô, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio, durante as incursões de Paiva Couceiro, tinha sido perseguido pelos republicanos. Segundo a tradição, teria instigado um motim popular na aldeia de Outeiro Seco, depois para fugir à prisão, ter-se-ia escondido das tropas republicanas num quarto secreto no Solar da família Montalvão, até que fugiu para Espanha, onde viveu um ano, em Feces de Abajo, a Sul de Verin. Nessa localidade raiana, um Guarda Republicano tentou prende-lo e só não o conseguiu porque as autoridades espanholas intervieram. Segundo o meu pai, que registou por escrito toda a memória familiar, estes acontecimentos teriam ocorrido entre 1911 e 1912, isto é, os anos das duas incursões monárquicas de Paiva Couceiro, em que houve uma verdadeira caça aos padres, acusados de colaborarem com as milícias de Paiva Couceiro ou instigarem as populações à revolta.

Planta do primeiro piso do solar de Outeiro Seco. O quarto secreto é o número 34


Além de o meu pai ter deixado por escrito estas memórias, contou-nos esta história muitas vezes e nós miúdos adorávamos o episódio do quarto secreto, que parecia uma aventura qualquer da romancista Enid Blyton ou tirada da série os Pequenos vagabundos. Contudo, o meu pai nunca nos revelou onde era exactamente o quarto secreto no Solar de Outeiro Seco, o que nos aumentava ainda mais a curiosidade e a fantasia. Já eu era teria trintas e muitos anos e o solar já tinha sido vendido à Câmara Municipal de Chaves, quando o meu pai me revelou finalmente a sua localização exacta na planta da casa. Não sei se o objectivo deste secretismo do meu pai era aumentar o interesse na narrativa ou se estaria convencido que um dia, por qualquer percalço da história voltaríamos a precisar de escondermo-nos lá e, portanto, era necessário manter o segredo. De facto, o pai sempre foi um homem previdente.

Mas, em todo o caso, a cronologia desta história era um bocadinho vaga e os episódios imprecisos, até que há cerca de um mês encontrei um escrito muito interessante no espólio. Trata-se de um documento antigo de 1815, um recibo pago pelo meu quinto avô, Miguel José de Montalvão (1764-1826), pela remessa de uma encomenda segura, para Lisboa, para Pedro de Sousa Canavarro. Neste papelinho, o meu trisavô, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio, fez um rascunho de uma carta, que me permitiu entender melhor estes acontecimentos e que no final deste texto, transcrevo integralmente . A carta foi dirigida a uma Senhora, Maria Isabel Figueiredo de Melo Garrido (1855-1925), viúva de um lente de filosofia da Universidade de Coimbra, António de Meireles Guedes Pereira Coutinho Garrido (1856-1895), portanto uma gente que o meu trisavô conheceu dos tempos em que estudou em Coimbra. Aliás, fala no filho desse casal, o Antoninho, que ao tempo desta carta tinha sido nomeado para superintendência da Penitenciária, mas que Liberal Sampaio acariciou na infância.

A filha de Isabel de Melo Garrido, Maria Rosa Meireles Coutinho Garrido estava casada com o então Ministro da Justiça, Álvaro Xavier de Castro (1878-1928) e basicamente Liberal Sampaio está a pedir à Senhora para meter uma cunha ao seu genro, para interceder por ele, pois foi pronunciado como conspirador em Espanha e que irá ser julgado em Braga.

Álvaro Xavier de Castro (1878-1928). Foto Wikipédia


Nesta carta, o meu trisavô explicava que estava inocente, argumentando que Fui para a povoação fronteiriça, Feces de Abajo, no partido de Verín, em 3 de Fevereiro de 1911, para livrar-me dos vexames de um processo instaurado pelo então Administrador de Chaves e hoje deputado evolucionista António Granjo, processo que por falta de provas está arquivado. Isto quer dizer que motim que o meu antepassado terá instigado na povoação de Outeiro Seco, ocorreu ainda antes da primeira incursão de Paiva Couceiro (4 de Outubro de 1911). De seguida, continua Estive fora da minha casa perto de ano e meio sem praticar um único facto que tornasse suspeito de auxiliar corporal ou moralmente qualquer tentativa de rebelião como atestam as autoridades de Verin e Chaves. Não fiz parte da incursão de Chaves, porque nessa ocasião estava cuidando da administração da minha casa. Portanto terá saído de Portugal em Fevereiro de 1911 e terá regressado antes de Julho de 1912, que é quando se dá a segunda incursão de Paiva Couceiro, que com as suas milícias atacou e sitiou Chaves.

Também nesta carta, transparece um certo desespero e aflição do meu trisavô, pois já tinha 67 anos e sabia que seria julgado num Tribunal em Braga e talvez tenha feito um rascunho da carta, pois sabia que era necessário escrever um texto muito cauteloso e bem feito, pois dele poderia depender a sua sobrevivência.
Liberal Sampaio contava já com 67 anos no tempo destes episódios


Este rascunho, não está datado, mas pelos acontecimentos descritos, é possível saber que foi escrito no ano de 1913, quando Álvaro Xavier de Castro foi ministro da Justiça e responsável pela criação de três tribunais militares especialmente formados para julgamento de crimes de rebelião, constituídos em Lisboa, Coimbra e Braga. Esses tribunais tiveram uma actividade intensa e nesse ano de 1913, as prisões e julgamentos de monárquicos acusados de conspirar contra o regime sucediam-se uns atrás dos outros. Folhei todos os números da Ilustração Portuguesa desse ano e há sempre notícias de militares de alta parente julgados, condessas, marquesas a entrarem no tribunal e ainda individualidades com nomes sonantes, mas também de soldados rasos, operários, tipógrafos, vendedoras ambulantes, camponeses e tasqueiros a serem detidos. Uns apanhavam dois ou seis anos, mas outros eram condenados ao degredo em Angra do Heroísmo, nos Açores. Percebe-se, pois, a aflição do meu trisavô, a imaginar-se com 67 anos, num navio a caminho do degredo, na ilha Terceira no Forte de São João Baptista.

Creio que é mesmo possível saber o mês em que este rascunho foi escrito pois o meu avô, citou o diário de 17 de Novembro, isto é o Diário do Governo, de 17 de Novembro de 1913, cuja cópia consultei e contem os Éditos de dez dias citações de ausentes emitido pelo Tribunal de Guerra de Braga e onde o seu nome consta. Como deseja à Sra. D. Isabel as mais felizes e alegres festas, o rascunho terá sido escrito logo no início de Dezembro.

Quis então perceber exactamente de que o meu antepassado foi acusado, mas a leitura destes textos legais é sempre complicada para mim. Tenho dificuldade em entender o chamado oficialês a linguagem do Diário da República, além de que o número de réus foi quase na casa dos trezentos, de modo que a mesma acusação serviu para 80 ou 100 indivíduos. No entanto, creio que Liberal Sampaio foi acusado de auxiliar em Espanha, a organização do corpo expedicionário de Paiva Couceiro e cooperar naquela iniciativa em 1912. Em suma, a acusação refere-se ao tempo em que esteve refugiado em Espanha onde teria colaborado na organização da segunda incursão de Paiva Couceiro, que ocorreria em Julho de 1912.

Na carta à Sra. Dona Isabel de Melo Garrido, Liberal Sampaio defende-se dessa acusação, explicando que não fiz parte da incursão de Chaves, porque nessa ocasião estava cuidando da administração da minha casa e que teria sido incriminado por Arnaldo da Fonseca, cônsul em Verin, de 29 de Maio a 30 de Junho de 1912, que o terá confundido com o cura de Mairos, povoação nos arredores de Chaves. Insiste ainda na enormidade de que um guarda republicado o ter tentado deter em território espanhol, o que quase provocou um conflito luso-espanhol, episódio que narrou também e com mais de detalhes no periódico O Concelho de Chaves, nº10, de 18 de Maio de 1911. Segundo o meu antepassado, crescendo a altercação, chamando ele [o GNR] pelo camarada que seguia para Vila Verde e receando eu que descessem os carabineiros que armados estavam a uns 60 metros, o que daria lugar a um conflito pouco airoso para a minha querida pátria, resolvi recuar à virilidade, galgar o talude, e saltar ao rio, no qual tive o contratempo de cair e tomar um banho extemporâneo.

O Concelho de Chaves, nº10, de 18 de Maio de 1911


Quanto ao Julgamento do Tribunal militar de Braga, ao qual Liberal Sampaio deveria comparecer, não encontrei mais notícias sobre o assunto. Ou a cunha que ele meteu à Sra. Dona Isabel de Melo Garrido, sogra do ministro da Justiça, Álvaro Xavier de Castro, funcionou e ele foi dispensado de comparecer e imagino, que não foi só a esta Senhora, que o meu trisavô escreveu, pois era um homem que tinha uma rede de contactos de gente influente pelo país inteiro, ou o mais provável, limitou-se a esperar em sua casa a queda do governo. Com efeito, logo a 9 de Fevereiro de 1914, formou-se o 61º governo, de Bernardino Machado, mais moderado e nesse mesmo mês houve uma Proposta de lei da amnistia de 19 de Fevereiro, aprovada a 24, e os presos libertados logo no dia 22. A Amnistia abrangeu o desterro dos bispos[7]. Abrangeu 572 indivíduos presos e 1 700 emigrados. No ano a seguir, durante o governo de Pimenta de Castro, foi decretada ampla amnistia em 20 de Abril, alargando aquela que havia sido decretada no tempo do governo de Bernardino Machado. E com efeito, as acusações contra Liberal Sampaio parecem ter sido esquecidas, pois em 15 de Junho, Liberal Sampaio estava novamente a advogar, conforme notícia o nº 77 da Folha de Chaves.

Tudo isto, parece complicado, mas o período da Primeira República (1910-1926) foi muito complexo, com golpes de estado, intentonas, atentados à bomba, insurreições, três invasões militares e governos a sucederem-se uns aos outros a velocidade vertiginosa.

Os motins de Outeiro Seco. Texto publicado por Liberal Sampaio em A Folha, nº10, de 26 de fevereiro de 1911


Mas sintetizando toda esta história, ainda em finais de 1910, talvez durante o mês de Dezembro, ocorreu um motim popular em Outeiro Seco contra o regime republicano, pelo qual Liberal Sampaio foi responsabilizado e em consequência do qual foi perseguido pelas autoridades, refugiando-se no tal quarto secreto do solar e a 3 de Fevereiro de 1911, refugiu-se em Espanha, na povoação raiana de Feces de Abajo. Ao contrário do que eu acreditava, estes acontecimentos ocorreram antes da primeira incursão de Paiva Couceiro. Liberal Sampaio permaneceu em Espanha de Fevereiro de 1911 até mais ou menos Junho de 1912 e é essa estada em Espanha, que o tornará suspeito de ter colaborado na organização da Segunda Incursão de Paiva Couceiro (Julho de 1912). Será citado pelo Tribunal de Guerra de Braga a 17 de Novembro de 1913 e nessa altura terá talvez apanhado um susto valente. Contudo, logo em Fevereiro do ano seguinte o governo mudou e houve uma amnistia a 24 de Fevereiro e no ano seguinte, uma amnistia ainda mais ampla, de que o meu antepasso terá certamente beneficiado. A vida deste meu trisavô foi realmente romanesca.

Alguma bibliografia consultada:

Paiva Couceiro e a contra-revolução monárquica (1910-1919) / Artur Ferreira Coimbra. - Braga, 2000
Maria Isabel de Melo Garrido

Exma. Senhora muito da minha gratidão. Faço votos para que continue disfrutando mil venturas na companhia da sua ilustre família e que dignará apresentar os meus respeitos e saudades.

Estava para felicita-la pela nomeação do Antoninho para superintendência da Penitenciária, quando o Diário de 17 de Novembro trouxe a tristíssima notícia de que eu pronunciado como conspirador em Espanha, teria em breve de implorar sua carinhosa protecção ao velho que tantas vezes o acariciava na infância

Meu primeiro movimento, depois do espanto de me ver tão injustamente perseguido foi aproveitar-me da benevolência com que S. Exa., seu querido genro, Álvaro de Castro e extremosa filha D. Maria Rosa se dignaram honrar-me com a promessa da sua honrosíssima visita. A lembrança, porém, de que um pretendido inimigo da República seria repelido por um tão distinto ministro da mesma república me conteve.




Fiel sectário da máxima evangélica Dai a Deus o que é de Deus; e a César o que é de César – nada tenho feito contra o novo regime, que não ajudei a estabelecer, que não quis destruir e que sempre respeitei como padre que tem por missão acatar os poderes constituintes.

Fui para a povoação fronteiriça, Feces de Abajo, no partido de Verín, em 3 de Fevereiro de 1911, para livrar-me dos vexames de um processo instaurado pelo então Administrador de Chaves e hoje deputado evolucionista António Granjo, processo que por falta de provas está arquivado. Estive fora da minha casa perto de ano e meio sem praticar um único facto que tornasse suspeito de auxiliar corporal ou moralmente qualquer tentativa de rebelião como atestam as autoridades de Verin e Chaves. Não fiz parte da incursão de Chaves, porque nessa ocasião estava cuidando da administração da minha casa.

Porque é então serei pronunciado por haver preparado e acompanhando tal incursão?

Porque informando-me das novidades públicas em 16 de Setembro de 1911…comigo o falecido Luís de Ataíde publicou em as Novidades de 16 de setembro de 1911 uma conversa em que francamente manifestei a minha neutralidade entre monárquicos e republicanos e isto quase dez meses antes da tal invasão de 6 de Julho de 1912? Porque Arnaldo da Fonseca, cônsul em Verin desde 29 de Maio a 30 de Junho de 1912, depôs, que naquele tempo estava na Galiza trabalhando para a destruição do regime republicano o Liberal cura de Mairos, sendo certo que não apresenta facto nenhum comprovativo, que eu nunca fui cura de Mairos e que tal cura era nessa ocasião muito notável em Espanha e Portugal, porque havendo sido preso na raia pela Guarda Fiscal, o governo espanhol reclamou e obteve dos portugueses que ele fosse posto em liberdade, isto mais de um ano antes da falada incursão,

Estou inocente, aflige-me a dificuldade em me defender; e toda a minha esperança está na bondade de V. Exa. para comigo, juntando ao seu bom desejo o D. Maria Rosa empenhar ao Sr. Ministro da Justiça ou recomendar ao Promotor ad hoc Albano Justino Lopes Gonçalves, major do 8, directamente ou indirectamente pelo Governador Civil de Braga, que seja bem examinada a prova contra ou a favor, afim de ser feita a devida justiça.

Desejo-lhe as mais felizes e alegres festas em graças do senhor Jesus Cristo com mais um ano bem

Agradeço sumamente as finezas da última prova da bondade de V. Exa. para comigo, que não pude conter as lágrimas ao ver-me protegido por dois anjos; oxalá tenha a ocasião de a todos três significar de viva voz toda a minha gratidão.

Ainda não sei quando irei a Braga ser julgado como conspirador …visto assim, quem dos dezasseis aos vinte e dois anos lá passou a sua vida de estudante exemplar. Deus Misericordioso, que nos ensinou a retribuir o mal com o bem, pudesse a quem consciente ou inconscientemente me causou tantos desgostos e incómodos.

Dignar-se-á apresentar ao Antoninho meus sinceros parabéns pela hombridade e seu procedimento político

Sou com a máxima consideração e estima de V. Exa. amigo obrigado