sexta-feira, 30 de setembro de 2022

13 Anos do blog velharias do Luís ou um relógio francês do século XIX



Esta imagem de um velho relógio, que estava na sala da casa de Chaves dos meus avôs paternos representa bem o espírito deste blog e é muito adequada para assinalar o seu 13º aniversário.

Um relógio simboliza a passagem do tempo, aquele fenómeno, que transforma os vulgares objectos do quotidiano em velharias ou antiguidades e que, por outro lado apaga progressivamente as memórias das gerações que nos antecederam. Mas um relógio representa igualmente o futuro e tudo aquilo, que poderemos ainda fazer e realizar na nossa vida.

O meu avô paterno gostava muito de relógios. Era um homem pontual e profundamente rotineiro, que todos os dias fazias as mesmas coisas, tomava café, lia o jornal na Sociedade de Chaves, jantava e almoçava sempre às mesmas horas. Creio que era um pouco como o filósofo Emannuel Kant, do qual se dizia, que os habitantes de Konisberga podiam acertar um relógio quando o viam passar pela rua. Individualidades com este temperamento precisam de viver com relógios.

Eu herdei o lado mais distraído da família da minha mãe, uma gente cujas distrações podiam chegar atingir proporções catastróficas, perdiam tudo e esqueciam-se de tudo. Para combater e regular essa hereditariedade, vivo tal como o meu pai e o meu avô paterno, segundo rotinas e rituais. De outra forma saio de casa, e deixo a chave na fechadura ou quando vou pagar uma compra, esqueço-me do cartão de multibanco na loja.

Talvez por esta razão, quando o meu pai morreu escolhi para mim este relógio, que simboliza temperamento do meu pai e do meu avô. Embora não apresente nenhuma marca de fabrico, julgo que será seguramente uma peça francesa da segunda metade do século XIX, o chamado horloge comtoise, com o mostruário esmaltado integrado numa estrutura de latão doirado, formando uma única peça. Estes relógios eram fabricados industrialmente na região do Franche-Comté, isto é, no Franco Condado, daí a designação horloges comtoises e foram muito populares em França nessa época e exportados para o mundo inteiro.


A caixa contendo o movimento


O movimento ou mecanismo do relógio

Normalmente consistiam numa simples caixa de metal contendo o movimento do relógio, à qual era aplicada uma chapa de latão com o mostruário e a moldura decorativa e esta ultima característica, é que os distingue dos relógios do período anterior, 1815-1840, em que o mostruário e a moldura decorativa eram peças distintas. Em França, o assunto está bem estudado e até possível datar este exemplar, como tendo sido fabricado entre 1840 e 1913, segundo informações da página Quai-des-horloges.

A datação dos relógios, segundo o site https://quai-des-horloges.com/blogs/infos/comment-dater-une-horloge-comtoise

Se fizermos uma pesquisa no no Google pela expressão Horloge comtoise xixe siècle estampée en laiton e aparecem-nos à venda dezenas de relógios deste tipo. Encontrei um igual à venda e-bay, mas só com a frente, uma chapa com o mostruário integrado num decorativo latão doirado, destinada a ser aplicada sobre a caixa contendo o movimento ou mecanismo do relógio. A peça do E-bay está marcada Paintin-le-conte, à Chateau Giron, na Bretanha, mas essa inscrição reporta-se à casa, que revendia peças produzidas pelas fábricas do Franco-Condado. Aliás, aparecem relógios comtoises com inscrições de casas comerciais de todas as regiões de França.

Relógio encontrado à venda no e-bay

Estes relógios eram destinados a ser postos numa parede e nas mais das vezes numa estrutura comprida de madeira, os chamados relógios de caixa alta, como são conhecidos em português. Este relógio que pertenceu aos meus avós estava também numa caixa, mas que não era de época. Era uma peça inspirada no século XVII, estilo que os meus avós adoravam, em madeira de castanho escurecida a sugerir pau-santo e decorada a ferragens douradas. A caixa foi provavelmente encomendada a um marceneiro em Braga nos anos 30 ou 40 do século XX para colocar este relógio, que os meus avôs compraram em segunda mão ou herdaram.

Transporte da caixa do relógio no dorso do meu fiel Rocinante

Quando o meu pai desfez a casa dos meus avôs em Chaves, trouxe o mecanismo para Lisboa e mandou transportar a caixa do relógio para Vinhais onde esteve décadas, esquecida num quarto. Esta Primavera fui a Vinhais com o meu amigo Manuel e transportamos a caixa do relógio até ao Alentejo, onde o Manel a restaurou.

Agora, estou só à espera de comprar um apartamento maior para voltar a juntar o mecanismo do relógio e a sua caixa e de alguma forma reconstituir o ambiente da casa de Chaves, tendo perto de mim alguma coisa do espírito pontual do meu avô Silvino.

Todos os seguidores deste blog, estão pois convidados para o próximo aniversário do blog e talvez para o ano já possam ver a imagem do relógio na sua  caixa.


Alguns ligações consultadas: 

https://www.meubliz.com/reconnaitre_une_horloge_de_parquet/

https://quai-des-horloges.com/blogs/infos/comment-dater-une-horloge-comtoise


sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Dois paliteiros da Vista Alegre


Uma das primeiras peças que mostrei neste blog, a 7 de Outubro de 2009, foi um paliteiro da Vista Alegre, representando um bebé, afastando do braço uma mosca, ou talvez outro insecto, confesso que sempre me pareceu mais um grilo.

O exemplar que herdei estava partido numa dúzia de pedaços, que o Manel colou pacientemente

Era uma peça que estava na família, que recebi quebrada numa dúzia de pedaços. O meu amigo Manel colou os fragmentos pacientemente, mas faltavam as costas, pelo que para dar alguma solidez à peça, montou-lhe uma estrutura em arame. Na época, nem sabia, que era um paliteiro, até que encontrei por mero acaso num leilão da Vista Alegre, uma peça semelhante, mas inteira, com as costas perfuradas e percebi então a sua função original bem como o seu fabricante, a célebre VA. Contudo, havia uma pequena diferença, entre o meu paliteiro e o do catálogo da Vista Alegre, o meu era em biscuit e o exemplar reproduzido no catálogo era em porcelana.

Através de mas alguma pesquisa, consultei a obra Paliteiros da Vista Alegre / Jorge Manuel Ferreira. - Lisboa : Caleidoscópio, 2006 onde além da reprodução de bebé paliteiro, consta uma ficha original da fábrica, datada de 1922 e assinada, por um tal. J. Cazaux.

Ficha da fábrica Vista Alegre. Imagem reproduzida de "Paliteiros da Vista Alegre / Jorge Manuel Ferreira. - Lisboa : Caleidoscópio, 2006"


Recentemente, o meu amigo Manel conseguiu comprar um outro paliteiro com o menino e a mosca no braço e ofereceu-me no aniversário, de modo, que agora tenho a versão em biscuit e em porcelana. Nem um nem outro estão marcados, mas é quase certo que serão da Vista Alegre.

O paliteiro Menino com a mosca que o Manel me ofereceu este ano 

Esta prenda levou-me a retomar o assunto e tentei saber alguma coisa do autor do desenho que deu origem ao paliteiro, o J. Cazaux, umas vezes também referido por Cazeaux. Percebi que foi um mestre de desenho da Vista Alegre, concebeu o pano de boca do teatro daquela fábrica, mas a única informação de caracter mais biográfico, que encontrei foi na página da internet da Junta de Freguesia de Salvador, de Ílhavo, onde consta uma lista das personalidades da terra, sepultadas no cemitério municipal. Este Cazaux tinha por nome completo, João Paulo Gonçalves Cazaux e era filho de João Filipe Augusto Cazaux e de Maria Apolinária Gonçalves. Natural da freguesia de S. João, concelho de Abrantes, casado com D. Virgínia de Jesus Almeida, foi um conceituado professor de desenho na Fábrica da Vista Alegre, onde trabalhou durante mais de 50 anos. Também escritor e jornalista, fundou o Jornal “O Trabalho”, de características instrutivas e moralizadoras. Ministrou durante longos anos o ensino do desenho na Fábrica e também, particularmente, na sua casa (*1). Morreu em 1953-07-23 com 82 anos e terá nascido por volta de 1871. Ainda tentei encontrar o assento de baptismo do senhor no Arquivo distrital de Santarém, mas em vão. Enfim, tudo isto para tentar perceber um pouco sobre quem criou esta forma do menino afastando do seu braço uma mosca ou um grilo.

Posso presumir que este Casaux se inspirou por um lado nas figurinhas de biscuit alemãs, que estavam em voga, no princípio do século XX, os pianos babies e por outro lado, nos biscuits de Sèvres, concebidos pelo escultor francês Jean-Baptiste Pigalle(1714-1785), director desta manufactura e que foram sendo fabricados ao logo dos séculos XIX e XX. Era natural que na Vista Alegre recebessem os catálogos da Sèvres, cujos produtos eram modelos para todas as fábricas de porcelana na Europa.

Os biscuits de Sèvres concebidos por Jean-Baptiste Pigalle são talvez uma fonte de inspiração destes paliteiros

Por outro lado, nunca encontrei referência a que este paliteiro tenha sido fabricado em biscuit. No site Avaluart, constam dois paliteiros em porcelana, um primeiro com uma pintura com de uma cor mais esbranquiçada, com a marca 31 de 1924-1947, semelhante ao que o Manel me ofereceu e o segundo em cor de carne, com a marca 32 (1947-1968).
Paliteiro com a marca 31 de 1924-1947. Foto http://www.avaluart.com/


Paliteiro com marca 32 (1947-1968). Foto http://www.avaluart.com/

O meu exemplar em biscuit, aquele que se partiu numa dúzia de pedaços é o que apresenta uma pintura mais perfeita, o que não quer dizer nada em termos de datação, mas que me leva a pensar que houve uma terceira série destes paliteiros em datas, que não consigo determinar.



Bibliografia consultada e ligações consultadas:

Paliteiros da Vista Alegre / Jorge Manuel Ferreira. - Lisboa : Caleidoscópio, 2006


quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Um retrato camafeu de uma fidalga do Norte

O retrato da Sra. D. Ricardina Leite de Barros tem um formato atípico relativamente às outras fotografias do álbum


Já aqui tinha mostrado este retrato da Sra. D. Ricardina Leite de Barros (1845-1884), que faz parte do álbum de carte-de-viste formado pelo meu trisavô, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio (1846-1935). Esta senhora casou com Francisco Firmino Fernandes Alvares de Moura, descendia de uma família ilustre, os condes de Basto e o casal viveu em Vilela Seca, uma povoação vizinha de Outeiro Seco, no Concelho de Chaves. Este casal seria das relações da família Montalvão e de Liberal Sampaio. 

Na época em que escrevi esse texto estava tão concentrado em identificar as personagens do álbum, as relações, que existiam entre si e com o meu antepassado, que deixei escapar um pormenor importante, o formato atípico da fotografia. Com efeito, embora o retrato esteja impresso num cartão com as dimensões típicas do carte-de-visite, a fotografia é bastante menor.

Encontrei a explicação para este formato estranho, há cerca de um mês, quando pesquisava sobre a pintura em miniatura em Portugal, num texto muito bem escrito por Nuno Borges de Araújo, intitulado, Imagens de ausência: o retrato fotográfico como simulacro durante o período romântico (1*)

Os ingleses executavam estes retratos destinados a camafeus com vários ângulos da personagem. Foto retirada de Imagens de ausência: o retrato fotográfico como simulacro durante o período romântico


Com efeito este autor encontrou nos jornais oitocentistas portugueses toda uma série de anúncios de fotógrafos, que afirmavam executar retratos próprios para broches, caixas de rapé, anéis, medalhões ou até mesmo botões de punho. Em suma fotografias de reduzidas dimensões, como esta da Sra. D. Ricardina, que encastradas numa jóia, reproduziam o efeito dos antigos camafeus e que continuavam a tradição das pinturas miniatura, pequenos retratos íntimos, que entre outras funções, se poderiam trazer pendurados, junto ao coração.

Um retrato fotográfico de cerca de 1860 encaixilhado num medalhão banhado a ouro. Dimensões, 3 x 4 cm. Peça à venda no leiloeiro António Ferreira do Brasil 


Tal com as outras provas fotográficas do tipo carte-de-visite, estes retratos camafeus eram impressos em vários exemplares e este foi oferecido ao meu trisavô, o Padre Liberal Sampaio, como prova de estima e amizade. Provavelmente nos descendentes do matrimónio Ricardina Leite de Barros e Francisco Firmino Fernandes Alvares de Moura existirá um medalhão em ouro, um alfinete de peito ou uma aplicação numa caixa de jóias com a imagem desta senhora e talvez até já ninguém conheça a sua identidade

A Sra. D. Ricardina Leite de Barros


A fotografia da Sra. D. Ricardina foi executada por Ferreira de Melo, no Porto



(1*) Actas do 1º Colóquio Saudade Perpetua, Porto: CEPESE,2017. P. 801-829


terça-feira, 6 de setembro de 2022

Máquinas de costura Singer: apontamentos de algumas memórias familiares






A minha tia Maria Adelaide era modista e no andar térreo da casa de Vinhais tinha o seu atelier, onde havia sempre uma grande azáfama, com as suas empregadas, a Bárbara, a Iracema e a Chica de volta das máquinas de costura, ou a alinhavar. Havia também muitos figurinos, linhas pelo chão e uma mesa grande de encostar onde a minha tia cortava as peças de tecido. Embora só passasse em Vinhais uma temporada por ano aquele ambiente sempre me inspirou. Em jovem ambicionei ser estilista e ainda hoje guardo o gosto por me vestir de uma forma criativa.

Curso Singer gratuito para o ensino de bordados e aplicação de acessórios


Talvez por isso me tenha decidido hoje a seleccionar esta foto dos arquivos da família materna, que mostra um curso das máquinas de costura Singer, que provavelmente decorreu em Vinhais. Era um curso gratuito para o ensino de bordados e aplicação de acessórios e a julgar pela indumentária e pelos penteados, deve ter ocorrido nos finais do anos 20 ou no início dos anos 30 do século XX, e a fotografia capturou um momento qualquer especial, talvez o fim do curso e foi impressa em forma de postal, de modo a que todas pudessem ficar com uma recordação e envia-la aos pais ou aos amigos. As pupilas estão todas sentadas em frente das suas máquinas de costura, de onde saem panos bordados maravilhosos. 

A minha avó materna

De pé, estão três senhoras, entre as quais a minha avó materna, facilmente reconhecível pelo carrapito e o seu queixo rabeca e ainda um homem. Presumo que as três senhoras em pé seriam as mestras e o senhor, um técnico da Singer, que estaria ali sempre pronto para desencravar uma máquina ou para resolver qualquer eventual problema mecânico Na fotografia constam também 5 meninas, que me parecem demasiado pequenas para estar ali a aprender. Imagino que algumas das senhoras tivessem dificuldade em arranjar alguém para tomar conta das crianças de modo, que as trouxeram naquele dia e constam na fotografia, servindo assim para demonstrar, que este era um curso sério destinado a mães de família, a fadas do lar.

Assinalada com uma seta, está uma das primas Fernandes, creio que a Chica


Das senhoras representadas, como já referi, só identifico a minha avó Adelaide, em pé, no canto inferior esquerdo e creio reconhecer umas das primas Fernandes, sentada, logo atrás da mesa onde está o cartaz. Creio eu que será a Chica Fernandes, madrinha da minha mãe, que ainda conheci bem.



Ao fundo da sala, há uma grande cartaz da Singer, onde se anuncia um esquema de prestações semanais para aquisição de máquinas de costura. Com efeito, nesta época uma máquina de costura era um bem extremamente valioso para uma mulher. Poderia poupar imenso dinheiro confeccionando os vestidos para si, roupas para toda a família e ainda lençóis e toalhas, como também, se por qualquer eventualidade da vida, se visse viúva ou órfã, poderia garantir o seu sustento de forma honesta, fazendo costura para fora. Foi o que aconteceu à minha tia Maria Adelaide, que após a morte do pai em 1949, teve que se tornar modista, usando a máquina de costura, como ganha-pão para si e creio eu, que para a sua mãe.

Estas máquinas de costura eram tão valiosas para uma mulher, que a minha trisavô paterna, uma fidalga rica, Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão, que vivia nas cercanias de Chaves, quando viu aproximar-se a morte, em 1902, fez um testamento muito completo, com os legados pios, discriminando o dinheiro paras as missas a rezar aqui e acolá, os alqueires de trigo a distribuir pelos pobres e ainda a distribuição de alguns bens, um anel de ouro para uma prima e outra jóia para não sei quem e finalmente para a Maria Rodrigues, irmã do seu companheiro de sempre, a máquina de costura!!!

Hoje em dia nunca contemplaríamos os nossos electrodomésticos num testamento, pois sabemos que o prazo de vida deles é bem curto. Mas nesses tempos uma máquina de costura era efectivamente um bem precioso para um mulher.

Esta fotografia parece também documentar a participação da minha avô Adelaide nestas actividades femininas da vida de Vinhais, com um carácter sem dúvida cívico. Aliás, recordo-me de ouvir a minha mãe contar, de uma forma mais ou menos comprometida, pois era de esquerda, que minha avó Adelaide tinha recebido um prémio qualquer de Salazar. Não me me lembro em que termos ou em que contexto recebeu esse prémio, talvez no âmbito da Obra das Mães ou por ser progenitora de uma prole numerosa, mas o que é certo é que no arquivo da família apareceu uma carta da Presidência do Conselho de Ministros, com carimbo datado de 1959, endereçada à minha avô, contendo um cartão do Presidente, Doutor António de Oliveira Salazar, agradecendo os amáveis cumprimentos. Pena não se conhecer exactamente os antecedentes, que estiveram na origem deste cartão de Salazar.





Esta fotografia tirada provavelmente em Vinhais, no fim dos anos 20 ou início dos 30 ultrapassa o mero valor sentimental e documenta uma época onde a costura era uma actividade importante da vida de qualquer mulher, uma forma de economia doméstica e a ainda garantia de uma forma honesta de sustento, em caso de crise económica ou familiar.