Recentemente, na Feira de Estremoz, o Manel e eu vimos uma pequena estampa muito engraçada, certamente do século XVIII, com um preço muito simpático. O Manel perguntou-me se eu ainda tinha espaço para ela em casa, pois poder-me-ia oferece-la como prenda de anos. E eu como não tenho juízo nenhum, aceitei-a e lá tenho mais uma estampa para pôr na parede em casa, não sei exactamente aonde. Julgo que com a idade, desenvolvi uma agorafobia, isto é, o horror aos espaços vazios. Não suporto ver 10 cm de parede sem nada pendurado.
Esta estampa representando um concerto familiar ou de amigos tem a legenda cortada em baixo, como o Manuel, bem me chamou a atenção. Contudo as inscrições relativas aos nomes do artista e gravador,
Guerards Pinxit e
G. Texier Sculp escaparam à tesoura assassina de algum antigo proprietário desta estampa e permitiram-me ir para o google pesquisar por estes termos. Em poucos segundos descobri no site da
Biblioteca do Congresso, em Washinton, uma gravura igualzinha à minha, só que inteira, com a legenda intacta, onde se podia ler
Tiré du Cabinet de Mr. le Brun. / D'après le Tableau Original de Guerards de la Grandeur de 10 pouces sur 12 de large.
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o exemplar da Library of Congress |
No registo da Biblioteca do Congresso, estava também identificada a obra. Trata-se do concerto, uma estampa feita a partir de uma obra do pintor holandês Gerard Pietersz van Zyl (1607-1665) e gravada pelo francês G. Textier (ca. 1750-1824), que foi um discípulo de Jacques-Philippe Le Bas, de quem já apresentei aqui uma estampa,
em 24 de Março de 2011. Entre os nomes relacionados da ficha catalográfica, remetiam ainda para um senhor
Le Brun, Jean-Baptiste-Pierre, 1748-1813.
Em seguida fiz mais umas pesquisas e voltei a encontrar a mesma estampa no
British Museum, só que com mais elementos adicionais. Além da identificação do gravador e artista, que já tinha encontrado na Biblioteca do Congresso, a ficha de inventário do Museu Britânico remetia-me para o nome daquilo que me pareceu de imediato o título do livro de onde tinha sido recortada a estampa
Galerie des peintres flamands, hollandais et allemands de Le Brun.
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Madame Vigée-Le Brun pintada por ela própria. O expoente máximo de um estilo destinado a seduzir. |
Somei dois mais dois e percebi que este Monsieur Le Brun era nada menos, nada mais do que o marido da famosa artista francesa Madame Vigée-Le Brun (1755-1842), que foi pintora oficial da corte de Luís XVI e nos deixou toda uma colecção de retratos encantadores, que representam em si, o melhor do chamado estilo Luís XVI, em que as artes, sejam elas a pintura ou o mobiliário ou a moda pretendem antes de tudo seduzir. Ficaram célebres os retratos que realizou de Maria Antonieta e dos seus filhos, mas pintou também a grande aristocracia francesa e europeia.
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Retrato da Baronesa de Crussol, por Madame Madame Vigée-Le Brun Toulouse, musée des Augustins |
Este Jean-Baptiste-Pierre Le Brun (1748-1813) era um pintor medíocre, ao contrário da sua mulher. Também não era bom marido, bebia, jogava e não podia ver um rabo de saia, mas Monsieur Le Brun tinha um bom gosto extraordinário, era um marchánd de arte conhecido e formou na sua casa uma belíssima colecção de pintura.
Parti então para a Biblioteca Nacional de França em busca do título
Galerie des peintres flamands, hollandais et allemands de Le Brun, para verificar se objectivamente esta minha estampa fez realmente parte da dita obra. Depois de algumas
recherches, acabei por ir ter ao gallica.bnf.fr, o portal digital da Bibliothèque nationale de France e lá encontrei o referido livro,
Galerie des peintres flamands, hollandais et allemands, ouvrage enrichi de deux cent une planches gravées d'après les meilleurs tableaux de ces maîtres, par les plus habiles artistes de France, de Hollande et d'Allemagne…, que foi editado em 1792. A minha estampa fez parte do volume I e portanto pode ser datada seguramente de 1792.
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A folha de rosto do livro de onde a minha estampa foi retirada |
Em suma, o Monsieu Le Brun, ou talvez alguém que quisesse vender as obras, pois em 1792, já tinha estalado a Revolução Francesa, mandou publicar um catálogo da sua valiosa colecção e esta minha estampa fazia parte desse livro.
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Uma obra de Gerard Pietersz van Zyl. Os concertos privados e as lições de música eram temas recorrentes da sua obra |
Continuei as minhas pesquisas, agora para tentar saber um pouco mais sobre o pintor, o tal Gerard Pietersz van Zyl e sobretudo para conhecer o paradeiro do quadro que deu origem à gravura. segundo li na Biblioteca do Congresso, num artigo mais extenso que entretanto encontrei,
Gerard Pietersz van Zyl foi um pintor holandês do XVII, o chamado século de ouro da Holanda, bastante famoso na sua época e cujas obras na altura atingiam preços muito mais altos que as dos seus colegas Vermeer e Rembrandt. Caído hoje no esquecimento, os seus quadros são muito característicos e normalmente representam pequenos grupos em volta de instrumentos musicais. Quanto ao original, que serviu de modelo à obra não o consegui localizar, mas eu também não sou conservador de museu ou investigador e com tantos conflitos na Europa desde 1792, muitas obras se perderam para sempre.
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A minha estampa já com a nova moldura |