Tenho um gosto variado. Tanto aprecio a ingenuidade da faiança portuguesa com o refinamento da arte francesa do século XVIII. Como não tenho dinheiro nem espaço para comprar cómodas de Luís XV ou Luís XVI, compro estampas dessa época, que são baratinhas. Esta foi a última que comprei na Feira de Estremoz e representa uma alegoria à força. Uma alegoria é uma figura humana, um conjunto de pessoas, um animal ou uma planta, que personificam alguma qualidade moral ou uma outra qualquer abstracção.
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J. M. Nattier pinx |
Como os autores estão identificados, “J. M. Nattier pinx” e “Balechou print”, apercebi-me logo no momento da compra que era uma obra do século XVIII feita a partir de uma pintura de Jean-Marc Nattier, o pintor da oficial da corte de Luís XV. Estranhei um pouco o formato da moldura e achei que poderia ter feito parte de um qualquer livro onde se apresentassem modelos para cartões de tapeçaria. destinadas a forrar o estofo de uma daquelas cadeiras Luís XV.
Mas, quando cheguei a casa tratei antes de mais nada de encontrar referências nos museus e nas bibliotecas sobre a estampa, de modo a poder identifica-la mais claramente.
De facto, encontrei rapidamente duas gravuras iguais a estas, uma no
Harvard Art Museums/Fogg Museum e outra no
Palácio de Versalhes, que me confirmaram que se tratava de uma estampa do século XVIII, gravada por Jean Joseph Balechou (1716-1764) a partir de uma obra Jean-Marc Nattier (1685-1766). Contudo, a Harvard Art Museums identificava a senhora da alegoria, como a Duquesa Chateauroux, ou seja, Marie-Anne de Mailly-Nesle, uma pequena que foi amante de Luís XV e no Palácio de Versalhes a figura feminina, que personifica a
Força, foi dada como sendo Marie-Louise-Élisabeth de France (1727-1759), a filha mais velha de Luís XV.
Fiquei muito espantado como é que a filha preferida de Luís XV, conhecida pelo petit nom de Babette é confundida com uma das amantes do Rei, a tal Marie-Anne de Mailly-Nesle. Tentei pesquisar alguma coisa sobre estas personagens, mas a vida da corte francesa neste reinado é tão complicada é que é fácil começarmos seguir sem rumo a história desta ou daquela personagem e a certa altura estamos completamente perdidos. Só a título de exemplo, esta Marie-Anne de Mailly-Nesle era a mais nova de cinco irmãs e todas elas foram amantes de Luís XV. Embora a Marie-Anne fosse a mais pequena das manas foi quem melhor conseguiu conquistar o Rei e chegou a mesmo exercer algum poder na corte e as suas ambições só foram travadas porque uma peritonite a levou cedo desta vida. Ao fim de quatro meses da sua morte foi rapidamente substituída no seu cargo de Maîtresse-en-titre, por Madame de Pompadour, a mais célebre das amantes reais de França.
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Marie-Anne de Mailly-Nesle, Duquesa Chateauroux, como Aurora, pintada por Nattier. Palácio de Versalhes. MV 8415 |
Para aumentar, a minha confusão Jean-Marc Nattier pintou todas estas senhoras, a Marie-Anne de Mailly-Nesle, a Marie-Louise-Élisabeth de France e a Madame de Pompador (Jeanne-Antoinette Poisson). Para além disso os retratos deste pintor francês são sempre de alguma forma semelhantes entre si. As grandes damas da aristocracia, as favoritas ou as princesas de sangue posam nas mesmas posições, como se fossem deusas da mitologia ou alegorias. Os coloridos são claros, as sedas destacam-se e as fisionomias não traduzem uma verdade psicológica. São retratos idealizados, onde os rostos não exibem uma verruga ou qualquer imperfeição e procura-se sobretudo a pintar elegância e a doçura. Enfim, há uma certa superficialidade e mesmo frivolidade nestes retratos, que tornam a obras de Nattier historicamente justas, pois pintam correctamente a sociedade da corte de Luís XV, com o seu estilo de vida feito de divertimentos mundanos e ociosidade e que se via muito mais bela do que era na realidade.
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Madame de Pompadour, como Diana, pintada por Nattier. Palácio de Versalhes |
Acabei por encontrar a solução para esta dúvida sobre se a minha gravura representaria a filha mais velha de Luís XV, a Babette, ou se a sua amante a Marie-Anne de Mailly-Nesle, no livro Jean Marc Nattier : 1685 -1766 / Xavier Salmon. - Paris : Réunion des Musées Nationaux, 1999.
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Boiserie. Por cima das portas encaixavam-se pinturas, como aquela que a minha estampa reproduz. |
Segundo este catálogo, a pintura que esta estampa reproduz (gravada antes de 1750), fazia parte de um conjunto de outras sete, encomendadas a Nattier por Jean-Philippe d'Orléans, para decorar o interior do seu Palácio do Templo, em Paris. Estas obras não eram propriamente telas para serem emolduradas e penduradas na parede. Eram aquilo que os franceses designam dessus-de-porte e nós, os portugueses, por sobre portas. Portanto eram pinturas para serem encaixadas numa boiserie e por cima das portas. Destas sobre-portas, duas representavam musas, um déjeneur e quatro virtudes. As virtudes de que aqui se descrevem são as quatro virtudes cardeais, que a Igreja Católica definiu como a prudência, a justiça, a fortaleza e a temperança.
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A Justiça, outra das quatro virtudes cardeais. Tal como a Força, fazia parte do conjunto que Nattier pintou para decorar o interior do Palácio do Templo. Colecção particular. Foto tirada de Jean Marc Nattier. - Paris : Réunion des Musées Nationaux, 1999 |
Segundo Xavier Salmon autor do catálogo Jean Marc Nattier. - Paris : Réunion des Musées Nationaux, 1999 os documentos da época não referem nada acerca se estas virtudes representavam esta ou aquela personalidade da época. Foi só no século XIX, em 1879, que os irmãos Goncourt, pioneiros da crítica de arte em França, se lembraram de identificar a figura da Força como a Duquesa Chateauroux e a partir daí, os historiadores da arte nunca mais pararam com especulações acerca da identidade das damas representadas nestas telas. Aliás a tendência persiste nos dias de hoje e as leiloeiras e os antiquários estão cheios de cópias de retratos de Nattier, apressadamente identificados como sendo de Marie-Anne de Mailly-Nesle ou de uma das filhas do Rei. O mais provável é que estas virtudes não representem nenhuma mulher em particular e sejam realmente meras alegorias às quatro virtudes cardeais.
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Afinal a bela representada na minha estampa é uma figura idealizada e não representa nem a filha, nem a amante de Luís XV |
Em suma, a minha estampa não é um retrato nem da amante, nem da filha de Luís XV. Em todo o caso, talvez fruto das sugestões despertadas pelas leituras que fiz, na minha casa, olhando para esta gravura ouvir-se-ão muito ao longe, de forma quase indistinta as vozes de Babette, do seu pai, o Rei de França, de Marie-Anne de Mailly-Nesle e claro de Madame de Pompadour e do pintor Nattier.
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Em minha casa tentei reproduzir o local para o qual o quadro A força foi concebido, uma sobre porta |