sábado, 28 de fevereiro de 2015

Prato de faiança do Norte ou o fascínio pela abstracção

Este enorme prato de faiança que pertence ao meu amigo Manel é uma daquelas peças típicas da faiança portuguesa do século XIX. São muito bonitas, ingénuas, foram decoradas por gente muito imaginativa, que pintava com traços rápidos, não estão marcadas e ninguém parece saber nada acerca da origem delas.

É um prato com cerca de 36 cm de diâmetro, o que os especialistas de cerâmica designam por palangana, embora pense que este termo terá origem em algum regionalismo da zona Centro ou Sul. Por exemplo, em Trás-os-Montes, há cerca de 60 anos, o meu pai ainda se recordava de ver os trabalhadores agrícolas de uma casa senhorial a comerem todos com o auxílio de um faca ou de um pedaço de pão de um enorme prato, a que se chamava fonte, termo aliás que os espanhóis ainda usam para nomear uma travessa. Enfim, julgo que este prato ainda será de um tempo em que o uso dos pratos individuais ainda não estava generalizado por todas as classes sociais, talvez entre 1840 ou 1860.

A decoração é ingénua e quem o decorou tinha o gosto pela abstracção, pintando linhas sinuosas que conduzem a todo lado e a lado nenhum, entremeadas com pequenas flores. Aliás, acho sempre graça às obras abstractas, criadas muito antes de os artistas plásticos terem reinventado esta arte no início do século XX, em Paris. Enquanto os modernistas de Paris criaram o abstraccionismo, fruto de uma atitude intelectual, conceptual mesmo se quisermos usar um palavrão, o artista que pintou este prato criou espontaneamente esta decoração, provavelmente sem ter lido nenhum livro na vida ou sem ter frequentado uma tertúlia artística num café.

http://www.amleiloes.pt/cp2
Quanto ao seu fabrico é naturalmente um mistério, pois não ostenta nenhuma marca no verso. Talvez a boa qualidade da faiança, nos leve a pensar que seja do Porto ou Gaia, mas é uma mera intuição. Há uns anos encontrei uma fotografia de um prato decorado certamente pelo mesmo artesão, que pintou o prato do Manel, num catálogo de uma leiloeira, do qual perdi a referência e estava atribuído à fábrica do Monte Cavaco, mas como toda a gente sabe nestes catálogos dos leilões as atribuições são um bocadinho apressadas. Também em outros catálogos de leilões encontrei pratos com decorações semelhantes cujo fabrico é identificado como sendo do Norte, o que é muito vago para nos satisfazer.

Em suma, não se sabe muito deste grande prato, mas não há dúvida que as suas linhas, recordando-nos que estamos numa estrada a caminho de lado nenhum, fascinam-nos.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Uma amante ou uma princesa? Estampa por Jean-Marc Nattier (1685-1766)

Tenho um gosto variado. Tanto aprecio a ingenuidade da faiança portuguesa com o refinamento da arte francesa do século XVIII. Como não tenho dinheiro nem espaço para comprar cómodas de Luís XV ou Luís XVI, compro estampas dessa época, que são baratinhas. Esta foi a última que comprei na Feira de Estremoz e representa uma alegoria à força. Uma alegoria é uma figura humana, um conjunto de pessoas, um animal ou uma planta, que personificam alguma qualidade moral ou uma outra qualquer abstracção.
J. M. Nattier pinx
Como os autores estão identificados, “J. M. Nattier pinx” e “Balechou print”, apercebi-me logo no momento da compra que era uma obra do século XVIII feita a partir de uma pintura de Jean-Marc Nattier, o pintor da oficial da corte de Luís XV. Estranhei um pouco o formato da moldura e achei que poderia ter feito parte de um qualquer livro onde se apresentassem modelos para cartões de tapeçaria. destinadas a forrar o estofo de uma daquelas cadeiras Luís XV.

Mas, quando cheguei a casa tratei antes de mais nada de encontrar referências nos museus e nas bibliotecas sobre a estampa, de modo a poder identifica-la mais claramente.

De facto, encontrei rapidamente duas gravuras iguais a estas, uma no Harvard Art Museums/Fogg Museum e outra no Palácio de Versalhes, que me confirmaram que se tratava de uma estampa do século XVIII, gravada por Jean Joseph Balechou (1716-1764) a partir de uma obra Jean-Marc Nattier (1685-1766). Contudo, a Harvard Art Museums identificava a senhora da alegoria, como a Duquesa Chateauroux, ou seja, Marie-Anne de Mailly-Nesle, uma pequena que foi amante de Luís XV e no Palácio de Versalhes a figura feminina, que personifica a Força, foi dada como sendo Marie-Louise-Élisabeth de France (1727-1759), a filha mais velha de Luís XV.
Estampa feita a partir de uma pintura de Nattier, representando Marie-Louise-Élisabeth de France (1727-1759), como um dos quatro elementos, a Terra. Cabinet d'arts graphiques des Musées d'art et d'histoire, Genève
Fiquei muito espantado como é que a filha preferida de Luís XV, conhecida pelo petit nom de Babette é confundida com uma das amantes do Rei, a tal Marie-Anne de Mailly-Nesle. Tentei pesquisar alguma coisa sobre estas personagens, mas a vida da corte francesa neste reinado é tão complicada é que é fácil começarmos seguir sem rumo a história desta ou daquela personagem e a certa altura estamos completamente perdidos. Só a título de exemplo, esta Marie-Anne de Mailly-Nesle era a mais nova de cinco irmãs e todas elas foram amantes de Luís XV. Embora a Marie-Anne fosse a mais pequena das manas foi quem melhor conseguiu conquistar o Rei e chegou a mesmo exercer algum poder na corte e as suas ambições só foram travadas porque uma peritonite a levou cedo desta vida. Ao fim de quatro meses da sua morte foi rapidamente substituída no seu cargo de Maîtresse-en-titre, por Madame de Pompadour, a mais célebre das amantes reais de França. 
Marie-Anne de Mailly-Nesle, Duquesa Chateauroux, como Aurora, pintada por Nattier. Palácio de Versalhes. MV 8415
Para aumentar, a minha confusão Jean-Marc Nattier pintou todas estas senhoras, a Marie-Anne de Mailly-Nesle, a Marie-Louise-Élisabeth de France e a Madame de Pompador (Jeanne-Antoinette Poisson). Para além disso os retratos deste pintor francês são sempre de alguma forma semelhantes entre si. As grandes damas da aristocracia, as favoritas ou as princesas de sangue posam nas mesmas posições, como se fossem deusas da mitologia ou alegorias. Os coloridos são claros, as sedas destacam-se e as fisionomias não traduzem uma verdade psicológica. São retratos idealizados, onde os rostos não exibem uma verruga ou qualquer imperfeição e procura-se sobretudo a pintar elegância e a doçura. Enfim, há uma certa superficialidade e mesmo frivolidade nestes retratos, que tornam a obras de Nattier historicamente justas, pois pintam correctamente a sociedade da corte de Luís XV, com o seu estilo de vida feito de divertimentos mundanos e ociosidade e que se via muito mais bela do que era na realidade.
Madame de Pompadour, como Diana, pintada por Nattier. Palácio de Versalhes
Acabei por encontrar a solução para esta dúvida sobre se a minha gravura representaria a filha mais velha de Luís XV, a Babette, ou se a sua amante a Marie-Anne de Mailly-Nesle, no livro Jean Marc Nattier : 1685 -1766 / Xavier Salmon. - Paris : Réunion des Musées Nationaux, 1999.

Boiserie. Por cima das portas encaixavam-se pinturas, como aquela que a minha estampa reproduz.
Segundo este catálogo, a pintura que esta estampa reproduz (gravada antes de 1750), fazia parte de um conjunto de outras sete, encomendadas a Nattier por Jean-Philippe d'Orléans, para decorar o interior do seu Palácio do Templo, em Paris. Estas obras não eram propriamente telas para serem emolduradas e penduradas na parede. Eram aquilo que os franceses designam dessus-de-porte e nós, os portugueses, por sobre portas. Portanto eram pinturas para serem encaixadas numa boiserie e por cima das portas. Destas sobre-portas, duas representavam musas, um déjeneur e quatro virtudes. As virtudes de que aqui se descrevem são as quatro virtudes cardeais, que a Igreja Católica definiu como a prudência, a justiça, a fortaleza e a temperança.

A Justiça, outra das quatro virtudes cardeais. Tal como a Força, fazia parte do conjunto que Nattier pintou para decorar o interior do Palácio do Templo. Colecção particular. Foto tirada de Jean Marc Nattier. - Paris : Réunion des Musées Nationaux, 1999
Segundo Xavier Salmon autor do catálogo Jean Marc Nattier. - Paris : Réunion des Musées Nationaux, 1999 os documentos da época não referem nada acerca se estas virtudes representavam esta ou aquela personalidade da época. Foi só no século XIX, em 1879, que os irmãos Goncourt, pioneiros da crítica de arte em França, se lembraram de identificar a figura da Força como a Duquesa Chateauroux e a partir daí, os historiadores da arte nunca mais pararam com especulações acerca da identidade das damas representadas nestas telas. Aliás a tendência persiste nos dias de hoje e as leiloeiras e os antiquários estão cheios de cópias de retratos de Nattier, apressadamente identificados como sendo de Marie-Anne de Mailly-Nesle ou de uma das filhas do Rei. O mais provável é que estas virtudes não representem nenhuma mulher em particular e sejam realmente meras alegorias às quatro virtudes cardeais.
Afinal a bela representada na minha estampa é uma figura idealizada e não representa nem a filha, nem a amante de Luís XV
Em suma, a minha estampa não é um retrato nem da amante, nem da filha de Luís XV. Em todo o caso, talvez fruto das sugestões despertadas pelas leituras que fiz, na minha casa, olhando para esta gravura ouvir-se-ão muito ao longe, de forma quase indistinta as vozes de Babette, do seu pai, o Rei de França, de Marie-Anne de Mailly-Nesle e claro de Madame de Pompadour e do pintor Nattier.
Em minha casa tentei reproduzir o local para o qual o quadro A força foi concebido, uma sobre porta

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Uma caneca de faiança do Norte

Esta caneca de faiança foi comprada pelo meu amigo Manel a um dos descendentes de António Capucho, que para quem não saiba, foi um dos mais importantes coleccionadores de cerâmica em Portugal. Por essa razão, esta peça tem desde logo uma marca de qualidade e de certa forma um peso histórico. Manusear ou admirar esta caneca colorida é experimentar estar dentro da casa de António Capucho, rodeado das melhores faianças portuguesas.

O Manel e eu temos dificuldade em atribuir esta caneca um fabrico em particular, pois não está marcada. Conhecemos a fonte de inspiração da sua decoração, que é motivo decorativo país produzido pela fábrica de Miragaia, entre 1822-1850, que por sua vez uma é adaptação livre do padrão View in the Fort Madura, da Herculaneum Pottery, de Liverpool.
Covilhete de Miragaia. Foi o motivo decorativo desta peça que serviu de inspiração à Caneca do Manel

 Através do catálogo Fábrica de Louça de Miragaia. - Porto : Museu Nacional de Soares dos Reis, 2008, sabemos que as Fábrica de Santo António de Vale da Piedade em Gaia e Viana, no Minho copiaram este motivo, mas aqui, neste círculo de blogues já se apresentaram mais peças, que são uma variante deste motivo país e para os quais ninguém conseguiu fazer uma atribuição fundamentada. 

Presumimos que será do Norte, até porque o motivo País começou em Miragaia, no Porto. Mas, em meados do século XIX e até já antes de 1848, conforme mostrou Laura Cristina Peixoto de Sousa na sua tese A Fábrica de Louça de Santo António de Vale de Piedade, em Gaia: arquitetura, espaços e produção semi-industrial oitocentista, as fábricas do Porto e Gaia tinham tornado moda a louça com coloridos fortes. Fervença, Bandeira e Santo António de Vale da Piedade produziram esta loiça muito colorida. As escavações arqueológicas feitas diante da Cadeia da Relação, (1899-90) na cidade do Porto, trouxeram à luz do dia muita desta louça de cores vivas, datadas entre 1850-1870. 
As escavações feitas diante da Cadeia da Relação, (1899-90) na cidade do Porto, trouxeram à luz do dia muita desta louça colorida, datadas entre 1850-1870. Repare-se nas canecas no canto superior direito. Itinerário da faiança do Porto e Gaia. Lisboa: IMC, 2001
Aliás na referida tese Laura Cristina Peixoto de Sousa, encontrei uns quantos fragmentos de canecas coloridas fabricadas por Santo António de Vale da Piedade antes de 1848.
Foto de Laura Cristina Peixoto de Sousa  A Fábrica de Louça de Santo António de Vale de Piedade, em Gaia: arquitetura, espaços e produção semi-industrial oitocentista

Contudo, entre 1840-70, existiam tantas fábricas no Porto em Gaia, das quais conhecemos tão pouco,  como as Fábrica do Alto da Fontinha, das Palhacinhas, do Carvalhinho, da Afurada ou do Senhor do Além, entre outras, que talvez também tenham produzido louça com um colorido vivo, que afirmar que esta caneca é Santo António Vale da Piedade, Miragaia ou Afurada, significa correr um grande risco e escrever um disparate.

Em suma, este não é um post conclusivo, é antes uma exposição de várias hipóteses plausíveis sobre o fabrico desta caneca de grandes dimensões.

Em todo o caso, seja ela, o que for apresenta todas as qualidades que tornam a faiança portuguesa do século XIX tão atractiva, a ingenuidade e um traço rápido de pintura.