domingo, 19 de novembro de 2023

De regresso a Chaves: aniversários da Aninha há 120 anos


Ana da Conceição de Morais Alves (1881-1974), minha bisavó Aninhas


Prossigo com o trabalho de inventariação do espólio familiar e aos poucos vou descobrindo através das cartas e fotografias o quotidiano e a vida de um dos ramos, os Alves, uma família burguesa do bairro da Madalena, em Chaves, do qual sabia muito pouco.

Encontrei esta fotografia deliciosa da minha bisavó Aninhas, que era Alves de solteira e que casou em 1903, com o meu bisavô, José Maria Ferreira Montalvão. Mas este retrato, tirado no Emílio Biel do Porto, é anterior a essa data. Parece-me muito novinha aqui, teria talvez uns 16 anos e se ela nasceu a 28 de Maio de 1881, talvez esta fotografia tenha sido feita por volta de 1897.

O cartãozinho estampado com uma paisagem e umas flores em relevo. Este material esteve muito em voga nos finais do século XIX e inícios do século XX


Aliás, encontrei duas cartas do irmão, mais novo, o Luís da Conceição Alves (1884-1939), datadas de 28 de Maio, uma de 1900 e outra de 1901, a felicita-la pelo seu aniversário. São cartas muito extensas, este meu tio bisavô era daqueles que escrevia muito e dizia pouco, mas tão afectuosas. Na carta de 1900, tem até a ternura de colocar lá dentro um cartãozinho estampado com uma paisagem e umas flores em relevo. Quando abri a carta, escrita há mais de 120 anos e me caiu o cartãozinho colorido, confesso que até me comovi. Nesta época, o Luís da Conceição teria 16/17 anos e estava a estudar no Colégio de Nossa Senhora do Rosário, em Vila Real, que devia ser uma instituição destinada a rapazes abastados, pois até tinha o seu próprio papel timbrado. Este Colégio tinha sido fundado em 1892 e foi mais tarde, em 1914, transformado em Hospital.

Timbre do Colégio de Nossa Senhora do Rosário, em Vila Real


Também do dia 28 de Maio encontrei um bilhete, artisticamente recortado, que em tempos esteve colado a umas prendas, escrito com a letra da sua irmã, a Marica.





Extremosíssima Aninhas

Mais uma vez vimos parabentear-te pelo teu aniversário natalício, desejamos-te neste dia as maiores felicidades em companhia do teu esposo e filhos.

Oferecemos-te estas insignificantes prendas com prova de gratidão e eterna amizade.

Brindamos-te pois aos teus anos e abraçamos-te efusivamente.

Francisco Luís Alves

Antónia dos Anjos Morais Alves

Maria da Conceição Alves

O bilhetinho não tem data, mas pelas pessoas referidas, terá sido escrito entre 1905 e 1913. No texto, os filhos são mencionados no plural, os dois primeiros nasceram em 1904 e 1905 e a Antónia dos Anjos Morais Alves, mãe da aninhas e minha trisavó estava ainda viva (faleceu a 1-10-1913) Além, dela, assinou ainda o meu trisavô, Francisco Luís Alves (….- 1916) e a Marica, isto é, a Maria da Conceição Alves (1876-1856).

Fiquei a pensar que insignificantes prendas seriam estas, às quais este bilhetinho esteve agarrado. A minha bisavó, Aninhas, gostava de se arranjar e enfeitar. Talvez tivesse sido uma blusa de seda, um corte de cetim, braceletes, uns brincos, uma pregadeira ou um colar. Recordo-me da minha avó Mimi contar que a mãe, embora tivesse muitas coisas boas, pérolas e ouros, preferia de longe as jóias de fantasia, expressão usada então para designar a bijuteria. A avó Mimi contava-nos isto até com alguma reprovação, porque ela ao contrário da mãe, tinha poucas jóias, mas quando as usava, eram boas e verdadeiras.

A pregadeira usada pela Aninhas


Curiosamente, no retrato, apresentado logo no início, a minha bisavó, Aninhas usou uma pregadeira, composta por uma placazinha, com a palavra francesa souvenir recortada e dois berloques pendentes. Talvez seja precisamente uma dessas jóias de fantasia, que alguém lhe trouxe de prenda de França ou até mais provavelmente comprada na Póvoa de Varzim, onde estas famílias do Norte iam a Banhos nos meses de Setembro e Outubro e adquiriam lembranças, ou como dizia na altura souvenirs. Quem sabe ainda se a pregadeira não lhe foi oferecida num dia 28 de Maio qualquer.

Reconheço que estes assuntos são corriqueiros, mas ao mesmo tempo levantam interrogações. A tia Marica tinha uma bonita caligrafia, cursiva e rápida. Percebe-se que foi ensinada por uma boa mestra. Noutras cartas que já li dela, o seu português é bastante razoável. Contudo, ainda não encontrei nenhuma carta sobre como decorreu a educação destas manas Morais Alves, que também sabiam música e tocavam bandolim e violino. Teriam sido educadas em casa, por uma professora particular ou frequentaram um colégio de freiras?

Em todo o caso, escreviam muito melhor, que a minha trisavó, a Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão (1856-1902), de uma família fidalga, mas de uma geração anterior. Esta minha antepassada não fazia pura e simplesmente pontuação e as suas cartas são difíceis de ler. Talvez a educação feminina tenha melhorado um pouco no último quartel do século XIX nestas terras transmontanas.

Já ninguém da família se deve recordar, que o dia 28 de Maio era o aniversário da avozinha, mas estas cartas trouxeram-me um pouco à memória essa figura que ainda conheci.



sábado, 4 de novembro de 2023

O Senhor Jesus da Paciência em Benfica



O meu amigo Manel comprou recentemente este registo muito bonito e encaixilhado numa moldura elegante. Representa o Senhor Jesus da Paciência, que se venerava, na igreja do Convento de Santo António da Convalescença. Achei muita graça porque a escola onde fiz o ciclo preparatório, a Delfim dos Santos, em Benfica, estava instalada no edifício desse antigo Convento, de modo que o conheci muito bem por dentro e depois disso, passei durante anos a fio à sua frente, primeiro a caminho do Liceu e posteriormente da Faculdade. Claro, nesse tempo, o convento fundado em 1643, já estava muito alterado, pois tinha sido transformado em palácio de habitação e depois foi ocupado por uma série de serviços públicos, o último dos quais, creio eu que foi a Universidade Internacional.

O registo foi muito bem emoldurado

Aproveitei então esta estampa para saber um pouco mais sobre este Senhor da Jesus da Paciência e sobre este convento, em S. Domingos de Benfica, onde decorreu parte da minha escolaridade, bem como a da minha irmã mais velha, na altura em que era a secção feminina da escola de Pedro Santarém.

Uma das coisas, que aprendi ao coleccionar registos de santos, foi que estas estampas muitas vezes representam esculturas ou pinturas verdadeiras, que existiram em tempos, imagens de intensa veneração, mas com a extinção das ordens religiosas em 1834, se perderam, foram parar a outras igrejas ou então a sua devoção esmoreceu ou desapareceu mesmo de todo.



E com efeito, este Senhor Jesus da Paciência era venerado na Igreja do convento de Igreja do Convento de Santo António da Convalescença, não sei exactamente desde que época, mas em 1780, concluiu-se a construção da capela dedicada a este Senhor, a qual atraía largas centenas de devotos, principalmente aquando da festa anual, em Agosto e esta estampa do impressor Francisco Manuel Pires, cuja actividade decorreu entre 1775-1800, é testemunho da popularidade dessa devoção. Aliás, numa simples pesquisa pela net, encontrei ainda outra gravura igual, mas impressa por Manuel da Silva Godinho, que pertence ao Museu Nacional de Arqueologia.

Senhor Jesus da Paciência, estampa impressa por Manuel da Silva Godinho da colecção do Museu Nacional de Arqueologia


Em termos de iconografia, esta representação em que Cristo, no momento a seguir à flagelação, rasteja para recolher as suas vestes não é muito vulgar. Segundo a Iconographie de l'art chrétien de Louis Réau é um tema tardio, que apareceu na arte italiana no século XVI, mas que foi usado pelos pintores espanhóis do século XVII, Zurbaran, Velázquez e Murillo, inspirando-se nos mistérios do Rosário. Este tema passou de Espanha para Portugal como esta estampa o demonstra.

Cristo recogiendo sus vestiduras, de Murillo, Krannert Art Museum, de Illinois. Foto de https://sevilla.abc.es/cultura/arte/sevi-exposicion-murillo-sevilla-bellas-artes-sevilla-revela-murillo-como-pintor-total-gran-antologica-201811292335_noticia.html 


Tentei apurar exactamente que escultura ou pintura esta estampa reproduziu, bem como o seu destino e consultei o Inventário de extinção do Convento de Santo António da Convalescença de Lisboa, em 1834, que está disponível on line na Torre do Tombo. É um documento enorme, com uma discriminação precisa de tachos, panelas, pratos, malgas, lençóis, bancos, o catálogo da livraria do Convento e ainda os bens ligados ao culto, como as imagens de santos, pinturas, crucifixos, panos de altar, tocheiros e estantes de missal e ourivesaria sacra. Pelo que percebi, a Lei na altura mandava que os bens ligados ao culto ficassem na própria igreja, se ficasse aberta ao culto, ou que dessem entrada noutras igrejas ou ainda para o depósito dos conventos suprimidos. O que não fosse de culto, tachos, panelas e roupa de cama era arrematado em hasta pública. Deste inventário há referência a um retábulo de pau dourado do Senhor Jesus da Paciência que foi integrado na Igreja de Nossa Senhora do Amparo de Benfica. Consultei a descrição detalhada do interior desta igreja no site Monumentos.pt, mas não encontrei nenhuma referência a um senhor Jesus da Paciência. Também não percebi se a imagem que serviu de inspiração a esta estampa foi um conjunto escultórico ou uma pintura. Quando a vi a primeira vez, achei que representaria esculturas e quando a mostrei à Maria João Vilhena de Carvalho, foi também dessa opinião, adiantado, que seriam talvez imagens dispostas numa maquineta, isto é um oratório, com portas envidraçadas e com efeito, a Igreja de são Sebastião da Pedreira, que também recebeu parte do recheio de Santo António da Convalescença, ficou com uma maquineta de uma imagem de Santo Cristo, forrada de damasco. Também é certo que algumas alfaias e objectos de culto ficaram na Igreja de Santo António da Convalesça, que viria a ser demolida nos anos 50 do século XX.

Em suma, não consegui saber o paradeiro exacto deste Senhor Jesus, esgotado depois do seu longo suplício e que se arrasta pelo chão, enquanto Nossa Senhora o olha, pesarosa. Em todo o caso, este registo evoca um tempo em que Benfica, hoje um bairro tão desengraçado e mal urbanizado, era um aprazível subúrbio, que mereceu as seguintes palavras de Ramalho Ortigão Em nenhum outro lugar de Portugal, se exceptuarmos Sintra, se encontrarão reunidas em tão pequeno circuito, tão lindas, tão históricas, tão anedóticas, tão saudosas quintas como as que encerra Benfica.



O Convento de Santo António da Convalescença em S. Domingos de Benfica, hoje e ontem


Bibliografia e documentos consultados:

Santo António da Convalescença / Matilde Sousa franco
In
Dicionário da história de Lisboa / direcção de Francisco Santana e Eduardo Sucena. - Sacavém : Carlos Quintas & Associados, 1994


Iconographie de l'art chrétien / Louis Réau. - Paris : Presses Universitaires de France, 1955

Inventário de extinção do Convento de Santo António da Convalescença de Lisboa - Arquivo Nacional da Torre do Tombo https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4694942



Arquivo Histórico Digital do Museu Nacional de Arqueologia