O registo foi muito bem emoldurado |
Aproveitei então esta estampa para saber um pouco mais sobre este Senhor da Jesus da Paciência e sobre este convento, em S. Domingos de Benfica, onde decorreu parte da minha escolaridade, bem como a da minha irmã mais velha, na altura em que era a secção feminina da escola de Pedro Santarém.
Uma das coisas, que aprendi ao coleccionar registos de santos, foi que estas estampas muitas vezes representam esculturas ou pinturas verdadeiras, que existiram em tempos, imagens de intensa veneração, mas com a extinção das ordens religiosas em 1834, se perderam, foram parar a outras igrejas ou então a sua devoção esmoreceu ou desapareceu mesmo de todo.
E com efeito, este Senhor Jesus da Paciência era venerado na Igreja do convento de Igreja do Convento de Santo António da Convalescença, não sei exactamente desde que época, mas em 1780, concluiu-se a construção da capela dedicada a este Senhor, a qual atraía largas centenas de devotos, principalmente aquando da festa anual, em Agosto e esta estampa do impressor Francisco Manuel Pires, cuja actividade decorreu entre 1775-1800, é testemunho da popularidade dessa devoção. Aliás, numa simples pesquisa pela net, encontrei ainda outra gravura igual, mas impressa por Manuel da Silva Godinho, que pertence ao Museu Nacional de Arqueologia.
Senhor Jesus da Paciência, estampa impressa por Manuel da Silva Godinho da colecção do Museu Nacional de Arqueologia |
Em termos de iconografia, esta representação em que Cristo, no momento a seguir à flagelação, rasteja para recolher as suas vestes não é muito vulgar. Segundo a Iconographie de l'art chrétien de Louis Réau é um tema tardio, que apareceu na arte italiana no século XVI, mas que foi usado pelos pintores espanhóis do século XVII, Zurbaran, Velázquez e Murillo, inspirando-se nos mistérios do Rosário. Este tema passou de Espanha para Portugal como esta estampa o demonstra.
Cristo recogiendo sus vestiduras, de Murillo, Krannert Art Museum, de Illinois. Foto de https://sevilla.abc.es/cultura/arte/sevi-exposicion-murillo-sevilla-bellas-artes-sevilla-revela-murillo-como-pintor-total-gran-antologica-201811292335_noticia.html |
Tentei apurar exactamente que escultura ou pintura esta estampa reproduziu, bem como o seu destino e consultei o Inventário de extinção do Convento de Santo António da Convalescença de Lisboa, em 1834, que está disponível on line na Torre do Tombo. É um documento enorme, com uma discriminação precisa de tachos, panelas, pratos, malgas, lençóis, bancos, o catálogo da livraria do Convento e ainda os bens ligados ao culto, como as imagens de santos, pinturas, crucifixos, panos de altar, tocheiros e estantes de missal e ourivesaria sacra. Pelo que percebi, a Lei na altura mandava que os bens ligados ao culto ficassem na própria igreja, se ficasse aberta ao culto, ou que dessem entrada noutras igrejas ou ainda para o depósito dos conventos suprimidos. O que não fosse de culto, tachos, panelas e roupa de cama era arrematado em hasta pública. Deste inventário há referência a um retábulo de pau dourado do Senhor Jesus da Paciência que foi integrado na Igreja de Nossa Senhora do Amparo de Benfica. Consultei a descrição detalhada do interior desta igreja no site Monumentos.pt, mas não encontrei nenhuma referência a um senhor Jesus da Paciência. Também não percebi se a imagem que serviu de inspiração a esta estampa foi um conjunto escultórico ou uma pintura. Quando a vi a primeira vez, achei que representaria esculturas e quando a mostrei à Maria João Vilhena de Carvalho, foi também dessa opinião, adiantado, que seriam talvez imagens dispostas numa maquineta, isto é um oratório, com portas envidraçadas e com efeito, a Igreja de são Sebastião da Pedreira, que também recebeu parte do recheio de Santo António da Convalescença, ficou com uma maquineta de uma imagem de Santo Cristo, forrada de damasco. Também é certo que algumas alfaias e objectos de culto ficaram na Igreja de Santo António da Convalesça, que viria a ser demolida nos anos 50 do século XX.
Em suma, não consegui saber o paradeiro exacto deste Senhor Jesus, esgotado depois do seu longo suplício e que se arrasta pelo chão, enquanto Nossa Senhora o olha, pesarosa. Em todo o caso, este registo evoca um tempo em que Benfica, hoje um bairro tão desengraçado e mal urbanizado, era um aprazível subúrbio, que mereceu as seguintes palavras de Ramalho Ortigão Em nenhum outro lugar de Portugal, se exceptuarmos Sintra, se encontrarão reunidas em tão pequeno circuito, tão lindas, tão históricas, tão anedóticas, tão saudosas quintas como as que encerra Benfica.
O Convento de Santo António da Convalescença em S. Domingos de Benfica, hoje e ontem |
Bibliografia e documentos consultados:
Santo António da Convalescença / Matilde Sousa franco
In
Dicionário da história de Lisboa / direcção de Francisco Santana e Eduardo Sucena. - Sacavém : Carlos Quintas & Associados, 1994
Iconographie de l'art chrétien / Louis Réau. - Paris : Presses Universitaires de France, 1955
Inventário de extinção do Convento de Santo António da Convalescença de Lisboa - Arquivo Nacional da Torre do Tombo https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4694942
Arquivo Histórico Digital do Museu Nacional de Arqueologia
As coisas que se aprendem contigo, Luís! É que és mesmo uma inspiração! 😃
ResponderEliminarMaria Miguel
EliminarInteresso-me por muitas coisas diferentes e tenho uma cultura enciclopédica, própria da minha profissão de bibliotecário, em que temos que saber um bocadinho de tudo. Claro, tenho sempre tendência a fixar-me nas antiguidades e na história.
Muito obrigado e bjos
Quem diria que eu iria possuir uma estampa relacionada com um edifício, à frente do qual eu passei décadas a fio, primeiro a caminho do Liceu de D. Pedro V (como era denominado à época), depois de outras universidades que frequentei, e, finalmente, em adulto, para os diversos empregos que fui tendo, até 2004, altura em que mudei de casa e de bairro.
ResponderEliminarJá lá não passo em frente há quase 20 anos.
Mas, talvez, um dos meus sobrinhos terá frequentado essa escola, mas não estou certo, possivelmente já não.
Esta gravura, pelo enquadramento, pareceu-me inicialmente, quando olhei para ela, algo que se passava dentro de uma estrutura tipo maquineta. Talvez uma cena esculpida tridimensional, ou com pequenas esculturas independentes, a representar a cena alusiva ao facto representado.
Mas, independentemente disto, achei-a tão intimista que não deixei de a adquirir.
O(s) anterior(es) dono(s) tinha(m) tratado a peça muito mal, pois a moldura (que continua a ser a mesma), folheada a pau cetim, encontrava-se com os encaixes destruídos, faltava-lhe um dos cantos em pau-santo, e as ferragens nos cantos (que as teve em latão, bem bonitas), tinham sido todas danificadas, como se as tivessem querido arrancar, não conseguiram, e ficaram torcidas e soltas.
A própria gravura encontrava-se manchada pois deve ter apanhado humidade, e, porque o vidro se tinha partido, ficou diretamente sujeita aos elementos.
Mas era tão apelativa, tal como se encontrava, que não deixei de a comprar.
Quanto à pesquisa, ninguém como tu para a fazer, pois não sabia nada dela.
Agradeço-te muito o trabalho que tiveste, pois és perito neste capítulo. Ninguém como tu para descobrir a origem desta imagem descoberta no chão de uma feira de velharias em Estremoz.
Manel
Manel.
ResponderEliminarEste convento de Santo António da convalescença permanece um dos poucos vestígios desse tempo em que Benfica era um subúrbio aprazível, com quintas e conventos, tudo cheio de árvores de fruto e hortas, pois por ali sempre correu muita água.
Estes registos são muito mais interessantes do que parecem à primeira vista. Através dos comentários no facebook, descobri que no MNAA existe um desenho semelhante a esta estampa, mas que não se sabe se é um desenho preparatório para uma gravura, ou a cópia de uma gravura. Um abraço