sábado, 26 de novembro de 2022

Uma figurinha em biscuit da Goebel Porzellan

Apesar de já ter jurado a mim próprio ser mais comedido nas minhas compras de velharias, acabo sempre por me deixar tentar por uma peça bonita à venda por um preço vantajoso e lá volto para casa com mais um traste e depois vejo-me grego para lhe arranjar lugar. Para que as peças façam sentido e sejam agradáveis à vista convém dispô-las por famílias, por épocas ou por materiais.


Comprei então este biscuit, que representa uma jovem e uma menina, vestidas de camponesas, cada qual com o seu cestinho. É uma peça sentimental, muito característica da produção alemã dos finais do século XIX e inícios do século XX. A grande maioria dos biscuits alemães não apresenta qualquer marca de fabrico. Quanto muito ostentam na base um número, que se reporta certamente ao modelo. Consigo identificar que são alemães, porque desde há doze anos para cá vasculho todas as páginas de vendas de antiguidades na internet à procura de biscuits e aprendi a conhecer-lhe as características. Mas na Alemanha houve centenas de fábricas de porcelana e é um mundo no qual nos perdemos. Para aumentar a dificuldades, os austríacos também fabricaram biscuits, bem como os checos e alguns dos fabricantes deste último país usavam nomes alemães. Mas desta vez tive sorte e este biscuit, além do número da série, o 7872., apresenta uma marca do fabricante, as iniciais W e um G ou C, encimadas por uma coroa.

As letras W e G encimadas por uma coroa

7872
O número da série ou modelo, o 7872

Lancei-me então numa pesquisa intensa na internet e não foi fácil, pois marcas com iniciais encimadas por coroas há centenas delas pela Europa fora. Enfim, muitas empresas nos finais do século XIX ou início do século XX escolhiam coroas nas marcas, para parecer que eram fornecedores oficiais de alguma casa real. Consultei também alguns livros de marcas de cerâmica de que disponho na biblioteca, mas em vão, até que por mero acaso na internet descobri que as iniciais WG encimadas por uma coroa foram usadas pela Goebel Porzellan, uma fábrica que ainda existe nos nossos dias. As letras WG correspondem às inicias no nome de um dos fundadores da empresa, William Goebel. 

As marcas da Goebel Porzellan

Esta fábrica foi fundada em 1871 em Oeslau-Rödental, perto de Coburgo, numa parte da Baviera, já encostada à Turíngia, que juntamente com o Saxe é a grande zona de produção de porcelana na Alemanha. A marca em questão foi usada nos anos de 1900, assinalando o tempo em que a fábrica passou a apenas a ter um único proprietário, o já referido Sr. William Goebel. Nessa época, esta casa notabilizou-se pela produção destas encantadoras figurinhas de crianças, que ainda hoje nos fazem sorrir, estatuetas ao gosto de Meissen ou de animais exóticos e ainda cabeças em biscuit para bonecas de meninas, estas últimas valorisadíssimas pelos coleccionadores. 

biscuit da Goebel Porzellan
Goebel Porzellan produzia cerca de 1900 estas encantadoras figurinhas de crianças, que ainda hoje nos fazem sorrir. Biscuit da Goebel à venda em  https://www.catawiki.com

Logo neste período os Estados Unidos tornaram-se um mercado importante para a as porcelanas Goebel e nos anos 50 essa popularidade aumentou ainda mais naquele país com a produção de figurinhas da Disney e continuaram a fabricar bonecada até aos dias de hoje. Alguma dessa bonecada dos anos 50 e 60 é a meu ver medonha, mas isto dos gostos é uma coisa, que varia com o tempo.

biscuit da Goebel Porzellan

Este meu biscuit parece contar qualquer história, uma jovem e uma menina, que vão ao mercado ou colher frutas, pois tem ainda os cestos vazios e a mais nova estende a mão, como que pedindo alguma coisa à mais velha. Talvez no início no século XX as pessoas identificassem claramente o significado desta representação e fossem figuras, que se viam nas ruas ou nos campos da Alemanha dos primeiros anos do século XX. Hoje, teremos que imaginar uma narrativa qualquer para estas meninas em biscuit.

biscuit da Goebel Porzellan


Algumas ligações consultadas:


quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Busto em biscuit representado Luís XVII de França



Recentemente viajei até Viena de Áustria e entre visitas a museus, palácios e igrejas dei um pulinho ao principal mercado de velharias da cidade, o Naschtmarkt. As feiras de velharias têm sempre um ambiente engraçado, com aquela mistura de gente de todas as classes sociais, de turistas e ainda das faunas alternativas típicas das grandes cidades. Os preços eram altos, mas quando não se conhecem os vendedores e sobretudo a língua é mais difícil negociar. Mas, lá comprei uma por um preço aceitável uma peça qualquer, para não ficar sem com uma recordação daquela cidade elegante.

Trata-se de um pequeno busto de perfil, imitando os antigos camafeus, disposto num veludo verde encaixilhado em latão dourado. Como a moldura é um porta-retratos tive ainda alguma esperança que fosse um retrato verdadeiro de algum jovem, cuja memória fosse querida para a família e tivesse merecido uma moldura para ser colocada numa cómoda ao lado de fotografias antigas de família. Nos finais do século XIX ou inícios do XX, data em que pareceu provável datar peça, ainda havia quem encomendasse retratos de si ou dos seus em camafeu, ainda que fosse apenas em gesso. Mas, como já tenho alguma experiência destas coisas, achei que isso seria sorte em demasia e era mais natural que esta peça fosse uma réplica qualquer de outra mais antiga. E de facto, olhando melhor para o menino de cabelo comprido e uma blusa aos folhos, representado no camafeu, pareceu-me que este estava trajado à moda dos últimos anos do século XVIII.

O pequeno busto está emoldurado num porta-retratos em latão dourado.

Lembrei-me que já tinha visto esta imagem algures e tive um pressentimento de que se tratava do delfim de França, Louis-Charles de France, o filho de Maria Antonieta e Luís XVI, que morreu de maus-tratos na prisão do Templo em 1795. Pesquisei no google pelos termos cameo Dauphin Louis XVII e o segundo resultado foi uma figura igualzinha à minha, que esteve à venda num antiquário francês pela exorbitante quantia de 1.000 euros!! Enfim, há sempre comerciantes de velharias que acham que estão a vender as joias da coroa. Em todo o caso, nas Antiques de Laval confirmei que se tratava do busto do menino Louis-Charles de France, identificaram o material, biscuit e ainda adiantavam a data, início do século XIX. Fiquei muito surpreendido, pois sempre achei que este busto camafeu era uma coisa qualquer dos finais do XIX ou até mesmo dos primeiros anos do XX.

Busto em biscuit vendido nas Antiques de Laval 


Lancei-me então numa busca desenfreada na net para tentar confirmar os dados das Antiques de Laval e fiquei surpreendido com as centenas de representações que existem deste menino. Encontrei bustos em vulto pleno, pinturas miniatura, medalhas e dezenas e dezenas de gravuras diferentes. Existe até uma página na internet inteiramente dedicada às representações de Louis-Charles de France, o http://musee.louis.xvii.online.fr/index.html, com uma extensa iconografia, mas mesmo em sites institucionais como o British Museu, contei pelo menos 106 representações daquele que os realistas consideram ser o Luís XVII de França.

A iconografia de Luís XVII é vasta. imagem da página http://musee.louis.xvii.online.fr/index.html


Já tinha uma ideia da enorme popularidade das imagens de Maria Antonieta, essa rainha cuja existência decorreu de uma forma frívola e elegante, mas que na hora do seu julgamento em 1793 mostrou uma enorme dignidade, sendo guilhotinada nesse mesmo ano. No entanto desconhecia, que as imagens do seu filho, o jovem delfim, fossem também tão populares. Mas é natural, pois sua história foi tão dramática. Foi aprisionado com os pais, depois separado deles, vítima de maus-tratos, alcoolizado e obrigado a testemunhar contra a sua mãe, acusando-a de incesto. Viu os pais serem conduzidos ao cadafalso e acabou por morrer de tuberculose na prisão do templo em 1795. Talvez por essa razão, as representações do jovem delfim sejam em tão grande número, apreciadas pelos coleccionadores e atinjam preços altos no mercado.

Retrato de Maria Antonieta na sua cela da Conciergerie. Gravura impressa por John Murphy, a partir de Anne Flore Millet, marquise de Bréhan, 1875. Col. do British Museum 


Tentei de seguida saber qual a origem desta representação e apesar de facilmente perdermo-nos no meio uma iconografia tão abundante, julgo que as fontes principais deste busto em biscuit foram as seguintes obras:



- O retrato pintado por Alexander Kucharsky em 1792, que se encontra actualmente no Palácio de Versalhes;

Foto copiada de https://www.we-art-together.fr/produit.php?id=454


- O desenho feito pelo fisionotraça Chrétien Fouquet c. de 1791, mais tarde gravado por Gilles-Louis Chrétiens (1745-1811)

Provavelmente quem passou a imagem do malogrado Delfim a biscuit fez uma composição a partir destas duas representações. Contudo, a imagem mais próxima é de uma medalha executada provavelmente depois de 1815, data da restauração da Monarquia em França.

Medalha representado Luís XVII encontrada à venda no e-bay


Dediquei-me então a tentar perceber em que país foi executado este biscuit. A peça foi comprada na Viena e quer este país, quer a vizinha Alemanha, no século XIX, tiveram uma ampla produção de biscuits. O jovem delfim era filho de uma austríaca e neto da imperatriz Maria Teresa, uma soberana cujo governo é ainda hoje venerado por todos os austríacos. Portanto, esta peça poderia ser austríaca, mas os bustos de perfil, que encontrei desta época em museus europeus ou antiquários representado várias figuras da realeza ou da grande aristocracia de França são normalmente de fabrico francês. 

Col. do Museu Nacional de Soares dos Reis. Foto reproduzida de João Allen : colecionar o mundo. - Porto : Museu Soares dos Reis, 2018


Nos finais do século XVIII e primeira metade do século XIX, em Inglaterra Wedgwood também fabricou estas figuras de reis e rainhas inspiradas nos antigos camafeus, mas normalmente não eram recortadas o fundo era azul.

O British Museum tem na sua colecção um destes bustos em biscuit representado Luís XVI, atribuído a Sèvres ou pelo menos a um fabricante francês e na ficha de inventário, explica-se, que depois da restauração da monarquia em França estas figuras de perfil representando figuras da realeza alcançaram grande popularidade. Eram normalmente encaixilhadas em molduras de madeira ou latão e na segunda metade do século XIX a moda tornou-se expô-las em séries reais na mesma moldura. Algumas destas figuras eram já fabricadas antes da Revolução de 1789 e o seu fabrico foi retomado depois de 1815 para satisfazer os monárquicos saudosistas do ancient regime. Em todo o caso, as fábricas francesas produziram também estes bustos de perfil de Napoleão Bonaparte, de Josefina, de Luís XVIII e ainda de outros grandes titulares da nobreza francesa.

Na segunda metade do século XIX tornou-se moda emoldurar estes pequenos bustos em conjunto, formando séries régias. Retratos de seis membros da família real francesa. Biscuit da Manufactura de Sèvres, de Jean Charles Nicolas Brachard, o velho (1766–1823), c. 1822. Philadelphia Museum of Art


Nesta altura das minhas pesquisas, sabendo já que esta figura de perfil em biscuit valia no mercado de antiguidades, bem mais do que eu paguei por ela, resolvi pedir ao meu amigo Manel para a descolar do suporte de veludo onde está colada no sentido de ver se tinha alguma marca de fabrico. E de facto, o meu amigo assim fez. A peça está marcada, mas apenas com a identificação do personagem Orphan Louis XVII. Neste momento fiquei com uma dúvida. Orphan é a palavra inglesa para órfão. Em francês seria orphelin. Será que Orphan é uma abreviatura para orphelin. Enfim, o espaço para escrever desta peça é diminuto e quem fez esta inscrição teve que recorrer a uma abreviatura. Será que esta inscrição é posterior ao fabrico da peça?

O verso do busto. Orphan Louis XVII.


Em suma este busto de perfil em biscuit, talvez tenha sido produzido em França depois da restauração da monarquia em 1815 e representa o Delfim, o pequeno Louis-Charles, que terminou a sua breve vida de uma forma tão trágica e desamparada. Terá sido coleccionado primeiro pelos saudosistas do antigo regime e depois, mais tarde pelos burgueses ricos, que acreditavam que terem bustos da realeza nas suas casas, emprestava ao ambiente um ar mais fino. Finalmente, hoje em dia, é um objecto apetecido pelos colecionadores de memorabilia real, que se dedicam a comprar fotografias antigas dos últimos czares da Rússia, representações de Napoleão Bonaparte ou caixas de joias vazias, fitas e laços e luvas, que pertenceram a nossa rainha D. Amélia de Orleans.