sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Uma cremeira da Vista Alegre

Cremeira Vista Alegre

Há já uns anos, um amigo meu, o Vasco ofereceu-me esta delicada peça da Vista Alegre. É de pequenas dimensões, quase que parece uma coisa de um serviço de bonecas e apresenta uma pega torcida, com uma junção em forma de folhas ao corpo da peça e uma conjugação de cores muito sóbria e feliz. Não é uma peça antiga, apresenta a marca n.º 32, usada pela Vista Alegre entre 1947-1968, mas inspira-se nas formas neoclássicas da porcelana francesa e inglesa do século anterior. É uma daquelas adaptações bem conseguidas da melhor porcelana europeia, que a Vista Alegre foi fazendo muitas vezes ao longo da sua história, mas com um toque muito próprio.

A marca n.º 32, usada pela Vista Alegre entre 1947-1968
A marca n.º 32, usada pela Vista Alegre entre 1947-1968

Na altura, arranjei-lhe um lugar no louceiro, o que não foi uma operação simples, pois tenho tanta coisa e o armário é pequenino e não voltei a pensar no assunto. Achei que era uma cremeira, que em tempos fez parte de algum tête-à-tête, servindo para acrescentar natas ou algum creme ao café ou ao chá.

Não foi fácil arranjar lugar para esta peça no louceiro

Porém, nestes últimos dias estive a olhar melhor para ela e reparei que não tem nenhum bico, para verter as natas ou o creme. Além disso tem uma tampinha, que também não daria grande jeito nessa função. Lembrei-me então que há uns anos jantei em em Paris, num restaurante de melhor qualidade e a sobremesa era apresentada num conjunto de potezinhos, não muito diferentes desta peça, postos numa bandeja também de porcelana e cada um deles tinha um creme feito à base de natas e uma compota diferente. Aquele doce comia-se à colher e era até muito agradável. Por cá não existe muito o hábito dessa sobremesa, pois temos aquela grande tradição conventual de doces de travessa, feitos sempre com muitos ovos.

Pensei então que este recipiente devia ter feito parte de um conjunto de cremeiras e fiz umas quantas pesquisas no google e encontrei no site de vendas Custo Justo um serviço de cremeiras, com a respectiva bandeja, iguais à minha, também da Vista Alegre e do mesmo período. A única diferença, é que a minha tem uma faixa bege e as do Custo Justo são todas brancas. Confirmei então a minha suspeita que esta peça fez no passado parte de um serviço de cremeiras, com o respectivo tabuleiro.

Conjunto de cremeiras da Vista Alegre à venda no Custo Justo

Esta cremeira é apenas uma peça desirmanada, sem valor comercial, mas é tão bonita, que achei que escrever sobre ela seria uma forma de desanuviar os leitores deste blog, do clima de insegurança e medo em que todos vivemos.

A cremeira da Vista Alegre servia para comer à colher um creme misturado com uma compota


quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

O retrato de um jovem das terras frias de Vinhais


Volto outra vez ao tema de identificação das fotografias antigas de família, que nos últimos tempos se tornou quase uma obsessão. Não sei que impulso me leva a perder tanto tempo com retratos de pessoas fotografadas no último quartel do século XIX, de que já ninguém se lembra e que nem tão pouco marcaram a história. Talvez seja uma forma de eu fugir a um presente, demasiado agressivo ou ainda a consequência de uma deformação profissional de bibliotecário, em que preciso de um passado estudado, ordenado e classificado, tal como os livros dispostos por temas nas estantes de uma biblioteca.

Desta vez não é nenhuma fotografia de um Montalvão ou de alguém das suas relações, mas de uma personagem do lado materno, dos Morais, uma família de lavradores relativamente abastada das terras frias de Vinhais. Em Março de 2013 tinha já tinha apresentado este retrato de um jovem bonito e que encontrei na colecção de fotografias da casa de Vinhais. A fotografia não apresentava uma dedicatória, uma legenda, uma data ou a identificação do fotógrafo sequer para que eu pudesse apresentar uma eventual identificação. Contudo, pela indumentária e pelo tipo de fotografia pareceu-me ser uma prova feita por volta de 1875 e como se encontrava numa colecção familiar, presumi que fosse um antepassado ou um parente, ou eventualmente alguém das relações de amizade dos Morais. Como nesta altura, já se coleccionavam fotografias de membros das casas reais e até de actores, cheguei a pensar se este jovem bonito seria algum príncipe, mas faltavam-lhe os atributos de realeza que sempre esses retratos tinham ou até mesmo o aplomb dessa gente, ainda que posassem como simples burgueses. Mas, mesmo em saber nada deste desconhecido, gostei tanto do retrato, que resolvi posta-lo como se fosse um símbolo de tudo aquilo que se perde da memória familiar. 

Retrato identificado de Manuel Agostinho de Morais (1854-1934) as semelhanças com o retrato do desconhecido são grandes.

Durante o confinamento em que todos os dias tinha que ir dar o jantar ao meu pai, aproveitei para consultar uma compilação, que este fez da história da família materna e fui fotografando todos os documentos e a certa altura encontrei a fotocópia de um retrato de um tio-bisavô e as semelhanças com o retrato do desconhecido eram grandes. Esse antepassado era o tio Manuel Agostinho de Morais (1854-1934), irmão do meu bisavô Clemente da Ressurreição e da sua vida, sei que seguiu uma carreira eclesiástica e e uma ou duas histórias, que sobreviveram na tradição familiar. Nasceu na Quadra, uma aldeia transmontana perdida nas serras, quase junto à fronteira com Espanha e era filho de Zeferino Urbano de Morais (1812-1894), uma espécie de antepassado primordial, porque foi o primeiro a usar o apelido de Morais, em substituição do de Gonçalves, por uma razão qualquer que escapa ao nosso entendimento. Os pais destinaram-no a uma carreira eclesiástica e em 1879 já estava a celebrar a sua primeira missa. Estranhamente, os seus pais forçaram outro dos seus irmãos a seguir igualmente uma carreira religiosa, o meu bisavô, Clemente da Ressurreição Morais. A luz dos nossos dias, parece-nos inusitado, que os pais tenham decidido, que dois filhos se deviam tornar padres. Mas creio que para além do factor da fé, teriam existido também razões económicas, a primeira seria evitar o fraccionamento da propriedade, pois os padres acabariam sempre por legar os seus bens aos irmãos casados e depois a carreira sacerdotal, permitia uma garantida ascensão social e económica e facto, quando o Padre Manuel Agostinho de Morais morreu em 1934 deixou avultadas quantias ao irmão e ao sobrinho, pelo julgar pelo imposto sucessório, que estes últimos pagaram. Ao contrário do irmão, o meu bisavô, Clemente da Ressurreição nunca quis tomar votos e pretendeu estudar em Coimbra, ganhando com isso a animosidade dos pais durante muito tempo. Conta-se ainda na família, que quando o Clemente comunicou à mãe, que não queria ser padre e pretendia estudar em Coimbra, minha trisavó, a Francisca Vicência (1824-1892) lhe terá dito, senão és padre, não és nada e com efeito o Clemente não estudou mais e tornou-se um mero lavrador.

Clemente da Ressurreição, meu bisavô e irmão de Manuel Agostinho


Ao contrário do irmão e apesar de ser um jovem tão bonito, com uma aparência capaz de despertar paixões carnais, o Manuel Agostinho de Morais não contrariou à vontade paterna e tomou ordens, exercendo a sua acção pastoral em várias aldeias da zona e acumulou um belíssimo pé-de-meia. Vivia em Santalha, outra aldeia ali da zona de Vinhais, numa daquelas casas antigas de lavrador abastado, típicas da região, em que para se entrar em casa, é preciso penetrar num pátio. Ao fundo desse pátio, estava a casa e no primeiro andar existia uma daquelas varandas em madeira, onde se sentava esse meu tio-bisavô, armado, atento a qualquer barulho e prestes a disparar sobre qualquer intruso suspeito. Na sala, guardava numa gaveta os seus objectos de valor. Esta história, que sobreviveu na tradição familiar e que nos parece pouco consentânea com o comportamento de um homem de Deus, deve de algum modo relfectir o clima de insegurança, que se viveu nos Concelhos de Vinhais e Chaves, durante as incursões de Paiva Couceiro, entre 1911 e 1912 , essas accões militares vindas de Espanha com o intuito de restaurar a monarquia em Portugal. 

Em 1911 as terras de Vinhais estão a ferro e fogo. Os republicanos perseguem os monárquicos e dão caça aos padres. Imagem da Ilustração Portuguesa, 2.ª série, n.º 296, 23 de Outubro de 1911. Hemeroteca Digital

A primeira incursão, entrou por Bragança e os monárquicos, ou paivantes como eram conhecidos na altura, tomaram Vinhais, mas pouco depois fugiram em debandada, por Vilar de Ossos, Tuizelo e Quadra, aldeias vizinhas de Santalha, em direcção a Espanha. No ano a seguir, os monárquicos exilados em Espanha, voltaram a entrar em Portugal e atacaram Chaves, mas foram novamente derrotados. A consequência destas incursões comandadas por Paiva Couceiro no Norte foi uma verdadeira perseguição aos padres pela tropas republicanas, que os consideravam colaboradores dos monárquicos e muitos foram presos e outros fugiram para Espanha. Este clima de insegurança e de caça aos monárquicos e aos padres deve-se ter prolongado até 1919, quando se dá a última tentativa de derrubar a a República em Portugal, a chamada Monarquia do Norte. Embora não conheça as convicções políticas deste meu tio bisavô, imagino que entre 1911 e 1920, deva ter vivido grandes sustos, imaginando sempre o dia, em que o iriam prender na sua casa, por essa razão teria sempre a arma perto de si, à entrada de casa.
Iº incursão de Paiva Couceiro. Imagem retirada de Um herói português: Henrique Paiva Couceiro / Vasco Pulido Valente. - Lisboa: Aletheia editores, 2006

Mas, voltando ao retrato, parece-me efectivamente que será do meu tio-bisavô, o Padre Manuel Agostinho de Morais, embora não esteja inteiramente seguro. Poderá até ser do meu bisavô, o Clemente da Ressurreição, de que só conheço retratos enquanto homem maduro ou velho ou ainda de um terceiro irmão, o José Clemente (1856-1919), de que não tenho nenhuma imagem, mas certamente é um dos três. Em todo o caso, senti que consegui desvendar um pouco do segredo desta fotografia e conhecer um pouco a história deste meu tio trisavô, um homem bonito, padre, rico e que andava armado.




Um agradecimento especial ao Humberto Ferreira de Outeiro Seco e ao meu irmão, José Montalvão Cunha