quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Uma última ceia gravada por François Poilly (1622-1693)


Julgo que à semelhança de muita gente da minha geração sempre embirrei com as últimas ceias, que as pessoas antigamente colocavam nas salas de jantar. Normalmente eram umas cópias do célebre fresco do Leonardo da Vinci e imitavam uma tapeçaria ou então eram feitas em estanho, a dar ideia que seriam de prata. Enfim, aquelas coisas pirosas, que se colocavam nas casas, tal como as galinhas de loiça em cima do frigorífico e os naperons sobre a TV e que foram reconstituídas com tanto rigor nos interiores daquela série Conta-me como foi.


Só mais tarde, em casa de uma senhora que me dava explicações vi uma última ceia bonita, uma placa em pedra, meia partida onde estavam talhados de uma forma tosca os Apóstolos e o Cristo e achei que talvez um dia gostasse de ter uma coisa semelhante na sala de jantar.


Os anos foram passando e fui vivendo sem nenhuma última ceia na sala de jantar., até que há uns tempos descobri uma estampa do século XVIII ou XVII no chão de uma feira e aproveitei para a comprar imediatamente. Emoldurei-a, mas como é muito grande não lhe consegui arranjar espaço na sala de jantar. Ficou pendurado no quarto dos meus filhos à espera de melhores dias.
Missale sacri ordinis praedicatorum, auct: apost: approbatum r.mi P.F.
Ioan. Thomae de Boxadors ejusdem ordinis generalis magistri jussu
editum. - Romae : in typographia Octavii Puccinelli, 1768
Biblioteca do Museu Nacional de Arte Antiga

Contudo, noutro dia, quando desfolhava o catálogo da Biblioteca do Museu Nacional de Arte Antiga, descobri perfeitamente por acaso um missal do século XVIII, com uma estampa, igual à minha, com a única diferença que o desenho foi invertido na impressão. A obra em causa intitula-se Missale sacri ordinis praedicatorum e foi editada em Roma, na oficina de Octávio Pucinelli, em 1768. Duas conclusões tirei logo com esta descoberta, a minha estampa é uma página arrancada de um missal e foi impressa pelo menos no Século XVIII.

As iniciais de François Poilly no canto inferior da estampa

Depois desta descoberta, fui olhar com a mais cuidado a minha gravura e no cantinho inferior direito, descobri as iniciais do gravador, F. Poilly. Fiz uma série de pesquisas na Internet e também no Dictionnaire critique et documentaire des peintres, sculpteurs, dessinateurs et graveurs / E. Bénézit. Paris: Gründ, 1976 e descobri que houve em França uma verdadeira dinastia de gravadores Poilly, originários de Abbeville, que trabalharam e viveram entre os séculos XVII e XVIII. Como sabem, no passado, as profissões passavam de pais para filhos, durante gerações e gerações e os gravadores não escapavam a esta forma de organização corporativa do trabalho. Entre os vários membros da família Poilly, houve pelos menos três François, mas normalmente os trabalhos com as iniciais F. Poilly, costumam ser atribuídos a Francois Poilly, o Velho (1622-1693). Este senhor, que fez uma aprendizagem em Roma foi o mais fecundo dos gravadores da sua época, deixando pelo menos 400 obras assinadas por si. Especializou-se em temas religiosos, executados a partir das obras de grandes mestres italianos e franceses, tais como Raphaël, Guido Reni, Annibale Carracci, Pierre Mignard, Charles Le Brun, Nicolas Poussin, Sébastien Bourdon e Eustache Lesueur.


Apesar da maioria dos suas estampas serem de temática religiosa, Francois Poilly executou também bonitos frontispícios de livros como esta Thèse de Théologie de Charles Maurice Le Tellier, que se encontra na Biblioteca Nacional de França
Thèse de Théologie de Charles Maurice Le Tellier
 
Em suma é provável, que esta Última ceia tenha sido executada por François Poilly (1622-1693), a partir da obra de um grande mestre da pintura, quiçá italiano. Terá sido destinada a um missal, publicado ainda no século XVII e foi depois reaproveitada em outras edições posteriores da mesma natureza, como este Missale sacri ordinis praedicatorum, de 1768, propriedade do Museu Nacional de Arte Antiga, que saiu sem já sem a assinatura de Poilly.



É provável, que esta Última ceia tenha sido executada por François Poilly (1622-1693), a partir da obra de um grande mestre da pintura, quiçá italiano
 

sábado, 19 de janeiro de 2013

Conjunto de faiança inglesa black basalt da Eastwood


Já há cerca de um ano mostrei aqui um bule de faiança black basalt, uma peça neoclássica, do início do século XIX.

Esta faiança preta foi fabricada pela primeira vez pela célebre Wedgwood em 1767 e inspirava-se na antiguidade egípcia, romana e grega, numa mistura que veio a ser muito típica, dos finais do século XVIII e atingiu o seu apogeu nos inícios do XIX, com o chamado estilo império.



O black basalt da Wedgwood foi muito imitado pelas outras fábricas e inglesas e este bule e açucareiro são um bom exemplo de uma dessas cópias, e da popularidade, que esta loiça escura alcançou no início do século XIX em Inglaterra, e no mundo inteiro, bem entendido, pois o conjunto foi comprado cá em Portugal, pelo nosso amigo Manel.


Este bule e açucareiro, que não serão exactamente do mesmo serviço, embora muito semelhantes, foram fabricados por um senhor chamado William Baddeley (activo entre 1802 e 1822). Este William Baddeley descendia de uma família de ceramistas e tinha a sua fábrica estabelecida em Eastwood, Hanley, em Stoke-on-Trent, a cidade da indústria cerâmica por excelência, que fica no Staffordshire.


A fábrica de William Baddeley, que executou produtos de qualidade, tinha também uma característica. Marcava as suas peças com a palavra EASTWOOD, mas o termo East era impresso de forma sumida e o WOOD de forma clara e evidente. O objectivo enganar a clientela mais distraída, fazendo-os crer que estavam a comprar genuínas peças Wedgwood.


Hoje, passados cerca de 200 anos do fabrico deste açucareiro e da leiteira, o pequeno subterfúgio desonesto de vender gato por lebre parece-nos uma coisa longínqua e perdoável e a imagem mais forte, que fica da EASTWOOD são os pormenores requintados, como a desta pega da tampa, em forma de cisne.

sábado, 12 de janeiro de 2013

A Tia Lili (1902-1968)

A tia Lili. Fotografia do Estúdio Guedes, na Rua de Sta. Catarina, Porto.
A tia Lili morreu em 1968, teria eu uns cinco anos e foi o meu primeiro contacto com a morte. Tenho uma ideia muito esbatida da sua figura, uma senhora velhinha de cabelo branco e simpática com as crianças, mas esta é uma imagem tão imprecisa, que se podia aplicar a centenas de milhares de senhoras idosas, que ao longo de séculos e séculos foram bondosas com os meninos e as meninas.


Em todo o caso foi a primeira vez que me lembro de ter ouvido falar de alguém que morreu. E por isso mesmo, desde essa altura, a minha mãe, quando nos punha a rezar à noite, incluía sempre na oração uma parte qualquer sobre a alma da Tia Lili, que estava no céu. Em 1969, um ano depois morreu a minha avô materna e a reza, antes de dormir passou a incluir além da tia Lili uma oração à alma da Avozinha, de modo que, na minha cabeça infantil, o céu era uma espécie de sala, com uma camilha no centro, onde à volta estavam senhoras velhinhas sentadas a fazer renda e tricot. De facto é curioso, porque as poucas recordações que tenho da minha avó materna é precisamente sentada à volta de uma camilha, aquecendo os pés numa braseira.


Os irmãos Fernandes: A tia Lim Lim (a mais alta), o José Clemente e a Francisca. Eram filhos de Adelaide Maria, irmã do meu bisavô Clemente da Ressureição Morais e que casou com um Fernandes.

Depois, foi morrendo mais gente, os tempos começaram a ser de menos fé, a minha mãe foi-se tornando numa católica cada vez mais crítica e os meus irmãos e eu começamos a achar que o céu era assim uma coisa pirosa inventada pelas catequistas, e por consequência, acabaram as orações antes de deitar e fui esquecendo a Tia Lili.


Só voltei a pensar na Tia Lili, esta prima direita da minha avó materna, já depois de ter feito os 40 anos, quando comecei a interessar-me por história familiar, para tentar perceber o que há em mim de tantos nomes desaparecidos.

Há cerca de uns quatro anos fui visitar à minha prima Bli, que tem uma casa antiga em Vinhais, herdada da tia Lili. É uma casa com a dignidade de um solar e pertenceu ao marido da Tia Lili, um senhor da família Almendra. A Bli esteve outra vez a mostrar-me esta casa e revelou-me um pormenor com imensa graça no cimo das escadas, uma sineta antiga, que estava ligada à porta da Rua. Quando a Bli e os seus irmãos iam visitar esta tia, que se chamava Adelaide, puxavam a sineta e ouviam dlim, dlim e este som era tão característico e divertido, que a miudagem passou a conhecer a senhora por tia Lim Lim. Esse petit-nom já chegou deturpado aos meninos mais novos do meu ramo familiar, que a conhecíamos por tia Lili.



Sei que é uma pequena história sem interesse para o País, a sociedade ou a economia, mas, quando ao explorar as fotografias do velho álbum familiar, encontrei as fotografias da tia Lim Lim, não deixei de me enternecer com as imagens desta menina que eu só conheci velha.  

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Uma terrina dos primórdios de Sacavém



O Manel conseguiu a proeza de comprar uma pequena terrina de Sacavém, dos primórdios da fábrica, mais exactamente entre 1856 e 1861. O conjunto está num óptimo estado de conservação e ainda para mais completo. É composto pela terrina propriamente dita, pela travessa e pela concha, o que é muito raro, pois esta é sempre a primeira coisa a partir-se.


A marca de Sacavém, do período de Manuel Joaquim Afonso, 1856-1861

A peça está marcada, com um monograma, que apresenta as iniciais MJA e as palavras Fábrica de Sacavém. Segundo a obra Porta aberta às memórias. 2 ed. . Museu de Cerâmica de Sacavém, 2009 esta marca corresponde ao período de 1856-1861, ou seja à época mais antiga da Fábrica, anterior aos patrões ingleses, que dominaram praticamente toda a existência de Sacavém. Esta encantadora terrina foi feita no tempo em que o industrial Manuel Joaquim Afonso fundou a fábrica na Quinta dos Coruchéus com licença para produzir cal hidráulica, cimento e porcelanas artificiais. Este Senhor não era um amador qualquer. Era um industrial conceituado, tinha estado na Vidraria da Marinha Grande e quando fundou Sacavém já era proprietário de uma fábrica de vidros e cerâmica em Lisboa.

Sacavém, ainda antes de ser comprada pelos ingleses, arrancou logo com um fabrico de grande qualidade

Em suma e também a julgar pela qualidade desta terrina, que se não fosse a marca, qualquer um de nós diria que era inglesa, Manuel Joaquim Afonso (1807-1871) começou a produção desde logo de uma forma moderna, para os padrões da época, que nada a tinha a ver com o ar artesanal dos pratos estampilhados ou pintados à mão de uma Fábrica da Fervença ou Bandeira.


Sacavém e o azulejos do padrão bicha-da-praça, uma combinação feliz

Apesar da evidente qualidade da cerâmica produzida por esta unidade industrial, os negócios não correram bem a Manuel Joaquim Afonso, houve um incêndio, terá sido roubado pelos sócios e enfrentou ainda uma crise económica, de modo que, em 1861, passou a Fábrica para as mãos do inglês John Scott Howorth e desde essa altura até ao seu fecho, Sacavém manteve-se propriedade de patrões ingleses.

A raridade de um conjunto completo, onde nem a concha falta

Para saber mais sobre este período recomendo a obra História da Fábrica de Loiça de Sacavém. Museu de Cerâmica de Sacavém, 2000 ou o blog do nosso amigo Memórias e Arquivos da Fábrica de Loiça de Sacavém

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Colocação de mais azulejos em casa do Manel


Estas férias o Manel e eu decidimos lançarmo-nos na empreitada de colocar mais um painel de azulejos na sua casa. A ideia era fazer um cenário para o canapé estilo D. Maria, que recebi de herança do solar de Outeiro Seco.


O Manuel começou por montar o painel no chão, que já tinha sido previamente numerado, pois este motivo com os enrolamentos nem sempre é simples de se acertar, além de que alguns do azulejos não são exactamente do mesmo padrão.

Alguns dos azulejos não são exactamente do mesmo padrão
Depois houve a preocupação de acertar os azulejos marmoreados com a cercadura dos enrolados, o que também não foi simples, pois os marmoreados estavam alguns deles partidos e outros tinham sido cortados no passado, para caberem em algum canto.

Muitos dos azulejos marmoreados não apresentam as mesmas dimensões. Uns partiram-se e outros foram em tempos cortados para serem afeiçoados a algum canto
Aliás, cada um destes azulejos tem uma história própria, que o Manel e eu conseguimos contar para cada um deles. Alguns azulejos da cercadura foram achados na minha rua, nos mesmos sacos em que encontrei o Dragão. Uns poucos dos marmoreados encontrei-os em contentores das obras ao longo da rua dos Remédios, em Alfama, e também aqui na Baixa, e todos os outros foram comprados pacientemente pelo Manel, ao longo de mais de dois anos.

O roço já aberto. Antes de colocação, molha-se a parede e os azulejos 

Mas voltando à colocação, de seguida o Manel desenhou na parede a superfície onde o painel iria encaixar. Estendemos um grande saco preto no chão e então veio a melhor parte para mim, com o martelo e o escopro começamos a partir o reboco e pude dar largas ao meu instinto destruidor de skin head, abafado por anos de silêncio, passados em bibliotecas e arquivos.


Feito o roço e limpos os escombros, começou a colocação. O Manel fez a massa e como é mais habilidoso tratou da colocação os azulejos. Eu fazia de trolha, assistente dele, molhando os azulejos antes de lhos dar. Depois dos trabalhos concluídos, já a noite tinha caído, houve que lavar os instrumentos todos lá fora com um frio de rachar.

Os azulejos após a lavagem com água
Deixamos secar tudo e no dia seguinte, lavei os azulejos para retirar os restos de massa e o brilho de toda a tradição da azulejaria portuguesa apareceu de imediato. Quando colocámos o canapé, este ganhou um cenário perfeitamente palaciano, o que só evidencia a capacidade, que um material muito barato, pintado de uma forma rápida e apressada tem de transformar um espaço.

A cercadura será talvez da primeira metade do séc. XVIII
 
No canto esquerdo do painel alguns azulejos são diferentes, provavelmente ainda do séc. XVII