Julgo que à semelhança de muita gente da minha geração sempre embirrei com as últimas ceias, que as pessoas antigamente colocavam nas salas de jantar. Normalmente eram umas cópias do célebre fresco do Leonardo da Vinci e imitavam uma tapeçaria ou então eram feitas em estanho, a dar ideia que seriam de prata. Enfim, aquelas coisas pirosas, que se colocavam nas casas, tal como as galinhas de loiça em cima do frigorífico e os naperons sobre a TV e que foram reconstituídas com tanto rigor nos interiores daquela série Conta-me como foi.
Só mais tarde, em casa de uma senhora que me dava explicações vi uma última ceia bonita, uma placa em pedra, meia partida onde estavam talhados de uma forma tosca os Apóstolos e o Cristo e achei que talvez um dia gostasse de ter uma coisa semelhante na sala de jantar.
Os anos foram passando e fui vivendo sem nenhuma última ceia na sala de jantar., até que há uns tempos descobri uma estampa do século XVIII ou XVII no chão de uma feira e aproveitei para a comprar imediatamente. Emoldurei-a, mas como é muito grande não lhe consegui arranjar espaço na sala de jantar. Ficou pendurado no quarto dos meus filhos à espera de melhores dias.
Missale sacri ordinis praedicatorum, auct: apost: approbatum r.mi P.F. Ioan. Thomae de Boxadors ejusdem ordinis generalis magistri jussu editum. - Romae : in typographia Octavii Puccinelli, 1768 Biblioteca do Museu Nacional de Arte Antiga |
Contudo, noutro dia, quando desfolhava o catálogo da Biblioteca do Museu Nacional de Arte Antiga, descobri perfeitamente por acaso um missal do século XVIII, com uma estampa, igual à minha, com a única diferença que o desenho foi invertido na impressão. A obra em causa intitula-se Missale sacri ordinis praedicatorum e foi editada em Roma, na oficina de Octávio Pucinelli, em 1768. Duas conclusões tirei logo com esta descoberta, a minha estampa é uma página arrancada de um missal e foi impressa pelo menos no Século XVIII.
As iniciais de François Poilly no canto inferior da estampa |
Depois desta descoberta, fui olhar com a mais cuidado a minha gravura e no cantinho inferior direito, descobri as iniciais do gravador, F. Poilly. Fiz uma série de pesquisas na Internet e também no Dictionnaire critique et documentaire des peintres, sculpteurs, dessinateurs et graveurs / E. Bénézit. Paris: Gründ, 1976 e descobri que houve em França uma verdadeira dinastia de gravadores Poilly, originários de Abbeville, que trabalharam e viveram entre os séculos XVII e XVIII. Como sabem, no passado, as profissões passavam de pais para filhos, durante gerações e gerações e os gravadores não escapavam a esta forma de organização corporativa do trabalho. Entre os vários membros da família Poilly, houve pelos menos três François, mas normalmente os trabalhos com as iniciais F. Poilly, costumam ser atribuídos a Francois Poilly, o Velho (1622-1693). Este senhor, que fez uma aprendizagem em Roma foi o mais fecundo dos gravadores da sua época, deixando pelo menos 400 obras assinadas por si. Especializou-se em temas religiosos, executados a partir das obras de grandes mestres italianos e franceses, tais como Raphaël, Guido Reni, Annibale Carracci, Pierre Mignard, Charles Le Brun, Nicolas Poussin, Sébastien Bourdon e Eustache Lesueur.
Apesar da maioria dos suas estampas serem de temática religiosa, Francois Poilly executou também bonitos frontispícios de livros como esta Thèse de Théologie de Charles Maurice Le Tellier, que se encontra na Biblioteca Nacional de França
Thèse de Théologie de Charles Maurice Le Tellier |
Em suma é provável, que esta Última ceia tenha sido executada por François Poilly (1622-1693), a partir da obra de um grande mestre da pintura, quiçá italiano. Terá sido destinada a um missal, publicado ainda no século XVII e foi depois reaproveitada em outras edições posteriores da mesma natureza, como este Missale sacri ordinis praedicatorum, de 1768, propriedade do Museu Nacional de Arte Antiga, que saiu sem já sem a assinatura de Poilly.
É provável, que esta Última ceia tenha sido executada por François Poilly (1622-1693), a partir da obra de um grande mestre da pintura, quiçá italiano |