Há mais de 15 ou 16 anos que tenho esta gravura comigo e estive sempre convencido que representava a Rainha D. Maria I (1734 -1816). Era evidente que se tratava de uma soberana e portuguesa, como se podia ver pelo escudo e como no século XVIII só houve uma mulher a ocupar o trono em Portugal, só poderia tratar-se de D. Maria. Assim durante todo este tempo vivi convicto que tinha uma estampa original dos finais do XVIII, em casa representando a rainha D. Maria I.
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A lisonja |
Mais recentemente, achei que esta estampa merecia um post e procurei informar-me sobre ela. Contudo, por muitas pesquisas que fizesse os resultados eram sempre nulos, A única coisa que adiantei foi sobre o brasão, na parte inferior da gravura, que se apresenta em forma de losango, com o lado esquerdo preenchido com as armas de Portugal e o lado direito vazio. Esta forma de brasão é designada por lisonja e é apanágio das mulheres. Como as senhoras não iam a guerra, os seus brasões não eram em forma de escudos. Usavam então estas lisonjas, que quando tinham a metade esquerda em branco, significava que ainda não eram casadas. Quando arranjassem um marido, as insígnias heráldicas dele ocupariam o lado esquerdo.
Persuadi-me então que se tratava de um retrato de D. Maria I, ainda solteira, talvez ainda como princesa herdeira do trono.
E continuei neste convencimento, até que segunda-feira, descobri na secretaria de um dos colegas de trabalho, um livrinho intitulado Princesas e infantas de Portugal: 1640-1736/ Ana Cristina Duarte Pereira. – Lisboa: Colibri, 2008 e qual não foi o meu espanto quando encontrei a imagem da minha gravura na capa. Abri logo para ler a ficha técnica e descobri que estampa representava a afinal Isabel Luisa Josefa, Princesa da Beira!
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Isabel Luisa Josefa por Dupra |
Esta senhora, cujo nome para a maioria dos portugueses não diz nada era a filha única de Pedro II e de D. Maria Francisca de Sabóia, que protagonizaram um dos episódios mais rocambolescos da história portuguesa. Depois da Restauração da Independência em 1640, a coroa portuguesa procurou estabelecer a paz com os países inimigos da Espanha, que continuavam a atacar as nossas caravelas e colónias, e para esse efeito nada melhor do que resolver os conflitos com casamentos. A filha de João IV, Catarina foi despachada para o rei de Inglaterra e por consequência os navios corsários ingleses deixaram em paz os nossos navios e o primogénito, Afonso VI casado com uma princesa da corte de Luís XIV, Francisca de Sabóia, conseguindo assim o apoio da França contra a Espanha.
Ora acontece que Afonso VI era um incapaz e a Maria Francisca uma mulher ambiciosa, educada na corte sofisticada de Luís XIV, cujos costumes não primavam pelo rigor e não tardou em envolver-se com o cunhado, D. Pedro e a intrigar abertamente contra o 1 º ministro, o Conde Castelo Melhor. Juntamente com o cunhado, acabaram por levar os seus projectos a bom porto, o rei foi interditado, o casamento anulado e os dois, conseguiram-se finalmente tornar reis de Portugal, após a morte de Afonso VI.
O casal só teve esta filha, que, ao que consta foi muito bem-educada. Falava francês, italiano e espanhol, sabia latim e dedicava-se ao estudo da história. Além destes predicados era bonita, pelo menos a julgar pelos retratos. Sendo filha única era a herdeira do trono português e portanto usava o título de princesa da Beira. O seu pai tentou arranjar-lhe vezes sem conta marido por toda a Europa, mas os projectos abortaram sempre e a pobre rapariga ficou maliciosamente conhecida pela sempre noiva. Acabou por morrer cedo, com 21 anos, em 1690, sem nunca casar e sem poder usar os seus predicados culturais e físicos. O trono será ocupado, pelo seu meio meio-irmão, o futuro D, João V, nascido do segundo casamento do pai.
Quanto à estampa, sabendo já quem representava, descobri facilmente uma igual na Biblioteca Nacional. O exemplar deles não tem os dados de impressão tapados pelo passe partout como o meu e contem assim a seguinte legenda:
Halé delin. ; H. Trudon Effigiem pinx ; G. Edelinck... sculp., Parisiis
A gravura foi impressa em Paris, entre 1690 e 1705, data baseada no período de actividade do gravador, que foi um tal Gérard Edelinck, (1649-1707). Flamengo estabelecido em Paris, este gravador alcançou um enorme prestígio em França. Foi nomeado por Colbert professor na manufactura de Gobelins e admitido na Academia em 1677. Realizou gravuras de retratos das mais conhecidas pessoas em França no tempo de Luís XIV, como Descartes, Colbert, Lebrun, Rigaud, Champaigne, Santeuil, Nicolas Feuillet e do próprio Rei e ainda da sua amante preferida na época, Louise de La Vallière.
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Louise de La Vallière, a maîtresse-en-titre de Luís XIV |
Fiz mais umas pesquisas e descobri a mesma gravura no British Museu e mais informações sobre os artistas que executaram o desenho. O pintor Claude Guy Hallé executou o desenho da composição geral e Jerome Trudon o retrato da princesa propriamente dita a partir de um quadro anteriormente pintado por si. Claude Guy Hallé (1652-1736) pertencia uma dinastia de pintores e foi um artista conhecido no seu tempo. Algumas das suas obras serviram de cartão para tapeçarias de Gobelins.
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Réparation faite au roi par le doge de Gênes por Hallé. Obra que serviu para cartão de uma tapeçaria |
Trudon foi um pintor que caiu completamente no esquecimento.
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A alegoria da Igreja |
A descrição do British Museum forneceu-me também a chave dos elementos iconográficos da estampa. Ao centro vemos a Princesa da Beira, rodeadas de três figuras femininas, que representam as três virtudes teologais, a Fé (com o cálice), a Caridade (chama) e a Esperança (a âncora). A figura do alto, envergando a coroa de S. Pedro, representa a Igreja.
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A Fé
A Caridade |
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A esperança |
Talvez esta estampa tenha sido encomendada por D. Pedro II, em Paris, a um dos melhores gravadores da época, Gérard Edelinck, como forma de propagandear pelas cortes europeias, a beleza e as virtudes da princesa católica, que se queria casar a todo custo, e por essa razão julgo que a data da sua execução seja anterior à morte da Princesa, em 1690.