quinta-feira, 26 de abril de 2018

O almocreve numa paisagem romântica ou o padrão Muleteer da Davenport

 
No mercado de velharias e coisas de segunda mão, a faiança inglesa do século XIX é vendida quase sempre por preços interessantes e é complicado conseguir resistir à tentação de comprar mais um prato, uma travessa ou uma simples azeitoneira, com aquelas paisagens e vistas tão características da produção britânica.
 


Desta vez comprei uma travessa do padrão Muleteer, uma das séries decorativas mais populares da fábrica inglesa Davenport, produzida mais ou menos entre 1830 e 1850. Representa um almocreve, a sua companheira e um burrinho atravessando uma ponte, tendo por fundo uma catedral gótica, uma cascata, um lago, sendo toda a cena enquadrada por arvoredo. Enfim, tem todos os elementos que caracterizam o romantismo, o gosto pela Idade Média e pela paisagem e o ainda elogio da vida simples do campo.
 

Contudo, o que é mais engraçado é que esta decoração do Muletteer apresentava pequenas diferenças, consoante se era aplicada numa travessa, numa terrina, num prato ou numa caneca, ou ainda numa molheira. Ao todo conhecem-se 12 versões diferentes deste padrão.
 
Uma das dozes variantes da série Muleteer

Este caso da série Muleteer da Davenport não foi único na faiança inglesa. Já na década de 70 do século XVIII, Catarina Grande da Rússia encomendou um gigantesco serviço de jantar em faiança à Wedgwood, para 50 pessoas, representando um total de 1222 paisagens inglesas, que ficou conhecido por La grenouille. Porém, nessa época, isto era um luxo só permitido à realeza. Mas logo nos primeiros anos do século XIX, com a produção em massa da louça em transfer-way, foi possível começar a vender a um preço acessível esses serviços de jantar com vistas ou variantes da mesma cena a uma burguesia cada vez mais numerosa, só que em vez de terem 1122 vistas como o serviço La grenouille, tinham apenas 15 ou 20 paisagens ou variantes da mesma cena. Normalmente nestes serviços, o desenho da bordadura era sempre igual, mas a cena central ia tendo variações consoante o tipo e a dimensão da peça.
 
Uma das 1122 vistas do serviço La grenouille. Foto Victoria And Albert Museum
Tenho apenas uma travessinha série Muleteer, mas imagino a beleza que seria ter um serviço de jantar completo, disposto numa mesa, com as doze variantes do padrão.
 
Links consultados:
 
 
Catálogo on line da exposição Printed British Pottery and Porcelain
 
 

sexta-feira, 13 de abril de 2018

Sopeira em faiança dos finais do século XVIII atribuível a Miragaia

 
O Manel comprou há pouco tempo na feira de Estremoz uma terrina em faiança em muito mau estado de conservação, mas por essa razão, com um preço irrecusável. Com efeito, em tempos partiu-se em mil pedaços, foi posteriormente colada e acrescentaram-lhe uma massa a substituir as inúmeras falhas, mas perdeu irremediavelmente as pegas. Enfim, tal como a letra do fado, o tempo cravou-lhe as garras e hoje esta terrina é apenas uma sombra do que foi no passado.

Apresenta uma decoração ruanesca típica de toda a faiança portuguesa dos finais do século XVIII e como para variar não está marcada o Manel e eu não tínhamos qualquer esperança em identificar o fabricante. Achávamos que seria qualquer coisa fabricada algures no Porto ou em Gaia no fim do século XVIII e a mais não nos arriscávamos.
 
A terrina não apresenta qualquer marca
Contudo, como tenho este hábito de estar sempre à procura de novas peças e novos temas para mostrar no blog, resolvi lançar-me sobre esta terrina cheia de mazelas, mas ainda assim como muito encanto e comecei a vasculhar tudo o que era livro de de faiança. Consultei os catálogos das colecções Pereira Sampaio, do António Capucho, da exposição de Massarelos, o livro do Sven Stapf, a tese da Laura Cristina Peixoto de Sousa sobre Santo António de Vale da Piedade, até que cheguei ao catálogo da exposição Fábrica de Louça de Miragaia. - Porto : Museu Nacional do Azulejo, 2008 e encontrei uma série de peças daquela marca exctamente com a mesma bordadura da terrina do Manel e lembrei-me, que tinha lido algures, que a faixa de Rouen de Miragaia era diferente de todas as outras fábricas e de facto confirmei essa informação na página 105 do referido catálogo.
 
Fábrica de Louça de Miragaia. - Porto : Museu Nacional do Azulejo, 2008. Pág. 105
 
Contudo, havia uma coisa que não batia certo, todas as terrinas constantes no catálogo, que apresentavam esta interpretação tão própria de Miragaia da faixa de Rouen eram oblongas e a do Manel é redonda, aquilo a que se chama uma sopeira. Lembrei-me então que o catálogo Miragaia podia não mostrar tudo aquilo, que a fábrica produziu, até porque quando se faz uma exposição não se pode pôr tudo e mais alguma coisa nas salas. Há que fazer uma selecção, para não que o visitante não se enfastie, escolher as peças em melhor estado de conservação e também as mais apelativas. Resolvi então consultar o roteiro de faiança do Museu Nacional de Arte Antiga, do Rafael Calado e bingo! Na página 162 estava reproduzida uma terrina Miragaia com formato circular, decorada com a típica interpretação da faixa de Rouen feita por aquela fábrica nortenha.
 
Faiança portuguesa : roteiro : Museu Nacional de Arte Antiga / Rafael Salinas Calado. - Lisboa : Instituto Português de Museus, 2005. P. 162
 
De seguida, desloquei-me ao piso intermédio do Museu Nacional de Arte Antiga e fotografei a dita sopeira, que é de tamanho inferior à do Manel e tem uma ou outra diferença na base.
 
Terrina do Museu Nacional de Arte Antiga
 
Terrina do Museu Nacional de Arte Antiga
 
Em suma, é muito possível que esta terrina do Manel tenha sido fabricada em Miragaia nos finais do século XVIII, no entanto como não está marcada nunca podemos nunca ter a certeza.

Alguma bibliografia:

CALADO, Rafael Salinas
Faiança portuguesa : roteiro : Museu Nacional de Arte Antiga / Rafael Salinas Calado. - Lisboa : Instituto Português de Museus, 2005.

Fábrica de Louça de Miragaia
Fábrica de Louça de Miragaia. - Porto : Museu Nacional do Azulejo, 2008.
 
 

segunda-feira, 9 de abril de 2018

A traição de Madame Bovary ou uma estampa de moda de 1860

Já aqui escrevi sobre Jules Davis, (1808-1892), um dos mais prolixos ilustradores franceses do século XIX, que dedicou a sua arte a realizar desenhos de moda para revistas femininas. Terá sido autor de mais de 2.600 desenhos, publicados sobretudo no Le Moniteur de la Mode, mas que foram depois reimpressos noutras publicações femininas ou em suplementos dedicados à mulher na imprensa periódica europeia ou americana. É o caso desta estampa que o meu amigo Manel comprou recentemente e que originalmente fazia parte do nº 604, de Julho de 1860, da edição belga de Le Journal des Dames et des Demoiselles, conforme pude apurar no site do Rijksmuseum.
 
 

Como já escrevi em anteriores posts, Jules David foi o primeiro ilustrador de moda a dar um cenário às suas figuras, que se visitam em salas decoradas com grandes espelhos, ora são convidadas para grandes bailes em salões imponentes ou passeiam-se no jardim das suas mansões ou ainda mostram às suas toilettes num parque público. Por vezes, o ilustrador vai ainda mais além do cenário e os seus conjuntos de damas e cavalheiros elegantes parecem contar uma história.
 
 
Nesta estampa, cuja acção decorre talvez no Bois de Boulogne ou no passeio público de uma qualquer cidade europeia, uma dama elegante passeia-se a cavalo e dirige-se a outras duas senhoras para as cumprimentar, certamente gente do seu meio. Porém do lado esquerdo, há uma figura misteriosa, vestida de escuro, com um chapéu ornado com um véu de tule ou mousseline, que lhe esconde praticamente o rosto. Dir-se-ia que está ali e não quer ser reconhecida e caminha apressadamente, mas não deixa de olhar para a direita, talvez para o cavalheiro janota, discretamente colocado atrás da escadaria.
 
 
 
Possivelmente a mulher com o elegante chapéu, que lhe tapa rosto, espera que as três senhoras da boa sociedade parem de trocar larachas umas com as outras e desapareçam dali, para que ela possa encontrar-se com o amante, o tal cavaleiro janota. Estará nervosa e ansiosa, pois sente alguma culpa, lembrando-se da filha pequena, que deixou em casa com a ama, ou ainda do marido, um bom homem, mas que sexualmente a deixa indiferente. Pensará também como irá pagar ao agiota, que lhe emprestou dinheiro para o vestido e sobretudo para aquele chapéu, cujo preço foi absolutamente extravagante. Mas o desejo de paixão e de evasão de um quotidiano enfadonho são maiores que o remorso e a razão e esta espécie de Ema de Bovary, de chapéu com véu preto de tule, acabará por internar-se no bosque com o homem janota e entregar-se-á a ele, ainda que tenha consciência, que tudo aquilo vai terminar mal.
 
 
Claro que ver nesta elegante de rosto velado a personagem de Flaubert, Madame de Bovary é um mero produto da minha imaginação. Mas como este impressionante romance sobre a traição foi publicado em 1857 e esta estampa data de 1860, não será um anacronismo muito grande pensar, que Ema Bovary se encantaria com este chapéu, tão adequado a encontros fortuitos.