sábado, 24 de dezembro de 2016

A adoração dos magos de Joaquim Carneiro da Silva ou votos de boas festas


Confesso-vos que tenho um certo horror a escrever sobre efemérides, estações do ano ou quadras festivas. Recordo-me sempre das redacções que era obrigado a fazer na instrução primária e do medo que sentia em apanhar reguadas por causa dos erros de ortografia. Mas, tinha esta estampa da Adoração dos magos em casa assinada por Joaquim Carneiro da Silva e achei que era boa altura para mostra-la aqui no blog e desejar assim umas boas festas aos que tem pachorra para me ler.

J. Silva será a assinatura de Joaquim Carneiro da Silva

Esta estampa será  de Joaquim Carneiro da Silva (1727-1818) e terá sido retirada provavelmente de um breviário. Sou dessa opinião pois fiz a pesquisa por um dos termos do verso da gravura in vigilia epiphaniae ad nonam antiphona, ecce Maria e fui ter a um breviário integralmente digitalizado do século XVIIII. Aliás já tinha mostrado outra estampa deste gravador, comprada na mesma banca da feira de alfarrabistas, da Rua Anchieta e que terá saído do mesmo livro que esta, um breviário impresso em Lisboa, na Régia Oficina Tipográfica nos últimos anos do século XVIII ou inícios do XIX.

O verso da estampa indica-nos que ela foi retirada de um livro, provavelmente um breviário ou de um outro livro litúrgico

O mais curioso é que encontrei duas estampas praticamente iguais a esta, uma da colecção do Museu dos Coches e outra à venda no Cabral Moncada, assinadas por Bartolozzi e datadas de 1811. Tal como Joaquim Carneiro da Silva, Francesco Bartolozzi (1725-1815) executou várias estampas para missais e breviários da Régia Oficina Tipográfica, livros que na altura eram muitíssimos vendidos, pois todas as paróquias, conventos tinham que ter pelo menos um exemplar.

A adoração dos magos de Bartolozzi, 1811. Cabral Moncada Leilões, lote 579, 2008
Recordei-me imediatamente de um texto de Pedro Queiroz Leite, intitulado O Missal da Regia Officina Typographica e seu legado na pintura rococó mineira: uma refutação à influência de Bartolozzi, de 2011, em que afirma que o célebre gravador italiano radicado em Portugal usou estampas de Joaquim Carneiro da Silva, sem sequer lhe prestar os devidos créditos. Seguindo o raciocínio de Pedro Queiroz Leite esta Adoração dos Magos terá sido primeiro gravada por Joaquim Carneiro da Silva num breviário e mais tarde reutilizada por Bartolozzi, numa edição posterior dessa mesma obra.

A Adoração dos magos de Carlo Maratta será o modelo das estampas de Joaquim Carneiro da Silva e Bartolozzi
Em todo o caso o modelo que inspirou as gravuras  de Joaquim Carneiro da Silva e Francesco Bartolozzi foi uma adoração dos magos de do pintor italiano Carlo Maratta, cujo desenho encontrei à venda na net.

Enfim, estamos numa época em que os conceitos de plágio e direito de autor não estavam ainda formados e as cópias faziam-se da forma mais natural possível. Por mais incrível que pareça à nossa sensibilidade actual, que valoriza a originalidade dos artistas ao ponto de admirar indivíduos que espalham livremente tinta numa tela posta no chão, na época, a cópia fazia parte do processo de criação da obra de arte.


terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Santa Sofia e as suas três filhas: fé, esperança e caridade



Sofia é uma santa lendária, que nem consta do Martirológio Romano. Terá vivido em Roma, no tempo do Imperador Adriano e elas e as suas filhas, Fé, Caridade e Esperança foram martirizadas no ano de 137. A sua história é semelhante a de muitas outras mártires cristãos que viveram em Roma no tempo das perseguições. As quatro andavam pelas ruas de Roma tentando atrair pessoas para a nova fé cristã e foram presas. Sofia, que em grego quer dizer sabedoria, assistiu ao martírio das filhas e incentivou-as sempre a resistirem e a não abjurarem da sua verdadeira fé. Depois de suplícios terríveis, acabaram as três por ser mortas à vista da sua mãe, que morreu de desgosto. Há uma metáfora evidente nesta história. É a sabedoria divina que engendra no coração dos cristãos a três virtudes teologais, que são a fé, a esperança e a caridade.
O Imperador Justiniano dedicou-lhe a mais bela e grandiosa igreja de Constantinopla, a Hagia Sophia. Foto de https://www.khanacademy.org/

O culto de Sofia de Roma cresceu rapidamente no Oriente, nos territórios do Antigo Império Bizantino, como a personificação da sabedoria divina. O Imperador Justiniano dedicou-lhe a mais bela e grandiosa igreja de Constantinopla, a Hagia Sophia e mais tarde em todas as nações que abraçaram o cristianismo ortodoxo, levantaram-se templos monumentais a Santa Sofia e ainda hoje, apesar de cerca de 80 anos de comunismo, Sofia (sabedoria), Vera (fé), Nadejda (esperança) e Lioubov (caridade) continuam a ser nomes próprios extremamente populares na Rússia.
Quem rezasse um Padre Nosso e uma Avé Maria à imagem de Santa Sofia, que estaria no altar de uma igreja que nós hoje desconhecemos, além da protecção contra o paludismo obteria 40 dias de indulgência

Se bem que o culto a Santa Sofia e às suas 3 filhas nunca tenham alcançado a dimensão, que teve no cristianismo ortodoxo, também foi praticado no catolicismo romano e esta estampa popular, provavelmente dos finais do século XVIII, é bem prova disso. Muito mais prosaicamente, aqui em Portugal,  S. Sofia tornou-se advogada das sezões, uma designação popular que se dá ao paludismo. Talvez esta relação com o paludismo tenha a ver com os suplícios infligidos às filhas, que foram martirizadas com matérias ardentes, estendidas em grelhas, passadas sobre carvão em brasa e regadas com cera e resinas quentes, tendo sobrevivido sempre. Só conseguiram acabar com a vida delas decapitando-as. Portanto, se as santas sobreviveram aos ardores do carvão ou da resina a escaldar, então elas protegeriam o crente dos calores da febre do paludismo, se fossem efectuadas as correctas orações.
 
 
Alguma bibliografia:


La légende dorée / Jacques de Voragine. - Paris : Perrin et Cie., Libraires-Éditeurs, 1910.

Iconographie de l'art chrétien / Louis Réau. - Paris : Presses Universitaires de France, 1955.

https://fr.wikipedia.org/wiki/Sophie_de_Rome 

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

O atlas quinhentista da biblioteca do solar dos montalvões em Outeiro Seco, Chaves

Frontispício de Theatrum orbis terrarum. - Antverpiae : apud C. Plantinum, 1579. Biblioteca Nacional de França

Já falei aqui da biblioteca do Solar de Outeiro Seco, com os seus quase dois mil títulos, datados dos séculos XIX, XVIII, XVII e mesmo do XVI. Tal como a casa, a biblioteca já não está na posse da família e foi vendida a um alfarrabista de Lisboa e dispersa pelos quatro cantos do mundo. Dela, resta apenas um catálogo elaborado pelos meus avós paternos, Maria do Espírito Santo Montalvão da Cunha e Silvino da Cunha.

 
Imagem da biblioteca do Solar dos Montalvões, Outeiro Seco, Chaves

Sabia através das histórias do meu pai e da minha avó que um dos tesouros dessa biblioteca era um atlas quinhentista e conhecia até algumas imagens desse livro, através de um filme feito pelo meu pai do interior da casa, em meados dos anos 60. No entanto, no catálogo que os meus avós fizeram dessa biblioteca, a informação sobre o atlas era muito escassa. Limitaram-se a indicar, Atlas para o título e apontaram o local de edição, Antuérpia e o ano de publicação, 1584. No fundo, não sabíamos mais nada da obra

Catálogo da biblioteca do Solar dos Montalvões. O Atlas é descrito de forma muito incompleta 

Como já fui referindo aqui e ali nos textos do blog sou bibliotecário e ao longo da vida já cataloguei muito livro antigo, isto é, edições impressas entre 1500 e 1800. Mas, nesta profissão, muitas vezes limitamo-nos a identificar os elementos que descrevem um livro, autor, título, publicação, descrição física e assuntos, mas não estudamos as obras. Esse trabalho é deixado aos investigadores. Mas recentemente, houve umas quantas edições antigas da biblioteca que saíram para uma exposição no Museu Nacional de Arte Antiga e tive necessidade de ler um pouco mais sobre a história de cada uma delas. Uma das obras era precisamente um atlas quinhentista, o célebre Theatrum orbis terrarum de Abrahamus Ortelius (1527-1598), publicada em Antuérpia em 1579. Esta obra de Ortelius é o primeiro atlas da história. Até 1570, data da sua edição, imprimiam-se cartas geográficas soltas, normalmente em forma de rolo e de difícil consulta. Ortelius teve então a ideia de reunir num único livro, num formato facilmente manuseável todas as cartas geográficas existentes, ordenadas por continente. Por essas razões o atlas de Ortelius conheceu desde logo um grande sucesso e entre 1570 e 1612 teve 31 edições.
Uma imagem da carta de Portugal e Espanha do Theatrum orbis terrarum, edição de 1579 da  Biblioteca Nacional de França

Acrescente-se que o facto do primeiro atlas moderno ter sido publicado em Antuérpia e não em Paris, ou Londres tem a ver com o intenso comércio marítimo internacional que passava pela aquela cidade e da necessidade que os riquíssimos mercadores flamengos experimentavam de estarem informados sobre as 4 partes do mundo.

Um pormenor da carta de Portugal e Espanha do Theatrum orbis terrarum, edição de 1579 da  Biblioteca Nacional de França


Enquanto fazia este pequeno estudo sobre a obra e folheava o Theatrum orbis terrarum de Ortelius do Museu Nacional de Arte Antiga, fez-se uma luz qualquer na minha cabeça e lembrei-me que talvez o atlas que existia na biblioteca do Solar de Outeiro Seco fosse o do Ortelius. Era muito provável, pois na centúria de quinhentos não existiriam muito mais atlas além do Theatrum orbis terrarum.
 
 
Um pormenor do atlas que existiu no Solar de Outeiro Seco, extraída de um filme que o meu pai fez nos anos 60. Por aqui, percebe-se desde logo que este atlas é o Theatrum orbis terrarum de Abrahamus Ortelius.
 
Vi novamente o filme que o meu pai fez, revi várias vezes a mesma cena, comparei as plantas filmadas com as da edição do Museu Nacional de Arte Antiga e tudo coincidia. O atlas que existiu na biblioteca do Solar de Outeiro Seco era de facto o célebre Theatrum orbis terrarum, que em português quer dizer Teatro do Globo Terrestre.
 
O colofon do atlas que existiu na biblioteca do Solar de Outeiro Seco. O atlas de desta biblioteca foi impresso em Antuérpia, na oficina de Christophe Plantin em 1584. Imagem extraída do filme feito pelo meu pai em meados dos anos 60
 
Como o meu pai sempre foi um homem de minúcias fez o favor de filmar o colofon, palavrão que designa o que hoje chamaríamos a ficha técnica do livro e que costuma aparecer na última página do livro e atráves dessas imagens consegui identificar com toda a segurança os dados da edição da obra. O atlas  que esteve em Outeiro Seco foi impresso em Antuérpia, na oficina de Christophe Plantin em 1584. A Biblioteca Nacional de Portugal guarda uma edição exactamente igual, com a cota C.A. 148 V, que está assim catalogada:

Theatrum orbis terrarum [ Material cartográfico] / Abrahamus Ortelius Antuerpianus. Antuerpiae: Christophorum Plantinum,1584.
O colofon do Theatrum orbis terrarum, edição de 1579. Biblioteca Nacional de França

Fiquei muito contente com esta minha pequena descoberta. Mas mais importante do que este sentimento de vaidade com a minha esperteza foi a percepção que alguém numa determinada época, que eu desconheço, talvez pelo meu trisavô, Liberal Sampaio durante o final do século XIX e inícios do XX, ou mais provavelmente, por um grupo de antepassados meus, que ao longo de dois ou três séculos, formaram numa casa no extremo Norte de Portugal, uma biblioteca que reunia obras fundamentais da cultura europeia.
 
Uma imagem do atlas que existiu na biblioteca do Solar dos Montalvões extraída de um filme feito pelo meu pai em meados dos anos 60
  
Uma imagem da carta de Portugal do Teatrum orbis terrarum, edição de1579. Biblioteca Nacional de França
 

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Castanheiros de Vinhais: um paraíso intocado


Há uns anos prometi a mim mesmo fazer um álbum com fotografias dos castanheiros de Vinhais, terra da minha família materna e de facto todos os anos, nas férias, tento capturar com a minha câmara a beleza de algumas árvores centenárias, que vejo ao passar na estrada. Claro, não é nada de sistemático. Não faço nenhum levantamento, nem consulto nenhum estudo e nem sei se já alguém se deu ao trabalho de fazer um inventário dos castanheiros com duzentos, trezentos, quatrocentos ou quinhentos anos desta terra fria de Vinhais. Recentemente li num jornal que há uma bióloga, Raquel Lopes, que se propõe fazer um inventário das árvores centenárias em Portugal. Pois bem, a senhora que visite Vinhais e percorra as estradas do Concelho e a única dificuldade que encontrará é escolher o que fotografar.



O Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas tem um inventário nacional do Arvoredo de Interesse Público, mas para o Concelho de Vinhais só encontrei 4 ocorrências, uma nogueira, em Quintela, que já aqui mostrei imagem e três castanheiros, em Paçô, Lagarelhos (também já aqui mostrado) e Vilarinho de Lomba. Mas, existem muito mais árvores centenárias que estas aqui classificadas. Eu que não vivo em Vinhais e só lá vou no Verão já vi mais que uma centena de castanheiros seculares. Aliás o interesse desta região é que não encontramos aqui ou acolá um ou outro castanheiro centenário, que sobreviveu por mero acaso à fúria do desenvolvimento selvagem, como em outras regiões do país. Aqui, no concelho de Vinhais deparamos com manchas de castanheiros à medida que nos aproximamos de cada povoação e muitos desses soutos são centenários e bem que mereciam uma classificação global.



Esses maciços de castanheiros tornam-se ainda mais interessantes para nós, os portugueses, se pensarmos que vivemos num país cuja paisagem está quase inteiramente desfigurada pelo Eucalipto e pelo Pinheiro bravo. Viajando pela auto-estrada de Lisboa ao Porto, ou de Lisboa a Viseu, ao longo de quilómetros e quilómetros, somos capazes de ver de um e o outro lado da estrada eucaliptos e pinheiros ininterruptamente, florestas essas que nos Verões muito quentes ardem invariavelmente, para grande excitação dos media, que fazem imensos debates, reportagens e mesas redondas e depois no final da estação, toda a gente se volta a esquecer dos incêndios e volta tudo ao mesmo e plantam-se mais e mais eucaliptos e pinheiros bravos. Pois aqui em Vinhais, vive-se ainda no paraíso perdido sem o pecado original do eucalipto, com a floresta tradicional de carvalhos e as grandes manchas de soutos em volta das povoações. Só para admirar árvores vale a pena visitar Vinhais.
 
 

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

O Bom Deus: azulejos do Museu Regional de Beja

Pormenor da vida de S. João Baptista. Azulejos atribuídos a Policarpo de Oliveira Bernardes

Recentemente voltei Beja com o Manel para mostrarmos a um amigo nosso brasileiro, o Fábio, aquilo que é uma espécie de capela Sistina do azulejo português, o Museu Regional de Beja, Rainha D. Leonor. É um daqueles monumentos únicos e nem sei como é que nenhuma autoridade local se lembrou ainda de candidatar aquele antigo convento a património mundial da UNESCO. Talvez as autoridades andem demasiado distraídas a procurar classificar chocalhos e bonecos de barro para se lembrarem do Museu Regional de Beja. Mas, enfim, não vou prosseguir com este assunto, pois não pretendo ensinar a ninguém as opções a tomar numa política de defesa do património.
O claustro
Na verdade, no meio de toda aquela azulejaria fantástica, de todas as épocas e estilos, que invade o interior do antigo Convento da Conceição, houve uma imagem de Deus Pai surgindo do alto das nuvens, que me chamou a atenção. A figura correspondia exactamente a ideia que eu tinha de Deus na minha infância, um senhor mais idoso, que via tudo e que saia lá do alto, para corrigir os erros dos homens, ou castigar meninos que mentissem. Cheguei a perguntar a minha tia Lalai se Deus conseguia realmente ver tudo lá do alto, mesmo as formiguinhas, e ela claro, respondeu-me sem quaisquer dúvidas que sim. Foi este Deus que acompanhou a minha infância, a quem pedia para fazer que eu não tivesse muitos erros no ditado, pois tinha medo das reguadas (os professores primários costumavam dar uma reguada por cada erro de ortografia). Foi também a este Deus que na minha adolescência eu pedia inutilmente que me fizesse igual a todos os outros. Claro, na altura não tinha estudado filosofia ou religião para saber que os negócios com o bom Deus não se fazem na base do toma lá, dá cá, isto é, uma troca de orações por favores, mas a ideia que existia alguém lá acima a quem se podiam fazer as mais íntimas confissões era reconfortante.

Azulejos do interior claustro
Depois no final da juventude, apercebi-me que só eu próprio poderia fazer alguma coisa por mim e que o Deus Católico não estava muito pelos ajustes com rapazes com os meus gostos sexuais. Deixei de contar com Deus na minha vida, não voltei a falar com ele e esqueci-o. O Senhor com barbas brancas lá no alto das nuvens passou a ser uma figura da história da arte, uma parte da composição de uma tela do século XVII, de um painel de azulejos ou uma figura de uma escultura da Santíssima Trindade.
Pormenor da vida de S. João Baptista.Azulejos atribuídos a Policarpo de Oliveira Bernardes
 

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Uma bondieuserie: Nossa Senhora em espuma de mar

Meerschaum

Não devia ter comprado a peça que hoje vos apresento. Não preciso dela para nada. Mas como podia eu resistir a esta pequena escultura em espuma de mar, tão requintadamente trabalhada e que cabe nos dedos de uma mão?
Foto retirada de Pinterest
Como já expliquei em outros posts estas pequenas esculturas foram fabricadas ao longo da segunda metade do século XIX em França e eram compradas pelos peregrinos nos santuários e centros de peregrinação, como por exemplo Lourdes.

A espuma de mar costuma ser conhecida pelo nome alemão Meerschaum.  Contudo, nem todas estas peças são feitas em espuma de mar, algumas são feitas numa argila muito fina semelhante ao caulino, que os franceses designam por terre  de pipe
Vendidas nas lojas de souvenirs religiosos, estas peças, bem como as pagelas, os terços, as imagens do Sagrado Coração de Jesus e de Maria, são conhecidas em França pelo termo pejorativo bondieuseries, isto é, as traquitanas do Bom Deus.


Hoje, passados 150 anos algumas destas bondieuseries ganharam com o tempo um encanto especial, sobretudo para quem se fascina pelo que passou de moda. É certo que estão longe de serem obras de arte de museu, mas quem esculpiu as pregas do véu de Nossa Senhora deste medalhão em espuma de mar conhecia o seu ofício. O trabalho é tão delicado que evoca de alguma forma as figuras veladas do escultor italiano Antonio Corradini (1688-1752).

Busto de mulher velada (Puritas), Museo del Settecento Veneziano, Ca’ Rezzonico, Veneza, Antonio Corradini, 1725
Claro, estes medalhões eram feitos em série, pois encontrei uns quanto iguais a este à venda on-line, em França e nos Estados Unidos. Mas apesar disso, eram executados com mestria e permitiam ao cidadão comum ter em casa alguma da beleza da grande escultura clássica.

O medalhão estava muito sujo quando o comprei. Dourada de origem, a moldura tinha sido escurecida com betume judaico e por dentro a escultura estava cheia de restos de pó preto do referido produto. Com muito cuidado, o meu amigo Manel fez o favor de retirar a moldura e o vidro, limpou a escultura e devolveu o dourado à moldura. Além de a peça ter ficado linda, esta operação permitiu-me fotografar a escultura em toda a sua beleza, sem os reflexos do vidro.


Alguns links:


segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Uma estampa de uma obra licenciosa: La Pucelle d'Orléans


Ao longo sete anos deste blog, tenho quase sempre apresentado estampas religiosas, isto é, anunciações, madonas com os meninos, ressurreições, cristos, meninos jesus, santos de quase todo o martirológio romano e ainda muitos outros temas cristãos ditos edificantes. Certamente que alguns dos meus leitores devem achar que eu ando sempre com o credo na boca.
 

Hoje apresento uma estampa, descoberta na Feira de Estremoz, cujo tema me pareceu desde logo insólito. Havia ali qualquer coisa que não jogava bem. Um jovem montado num burro alado salvava uma linda donzela de uma fogueira da inquisição. Ora, os jovens garbosos não montam jumentos, mesmo na mitologia os burros não tem asas e as donzelas comme il faut não ardem nas fogueiras da Santo Ofício.



Fotografei a estampa e cheguei a casa e fiz uma pesquisa no Google pelos versos que lhe servem de legenda Il perce à l'un le sternum et le bras, Il atteint l'autre à l'os qu'on nomme atlas e qual não foi o meu espanto quando descobri que esta gravura foi retirada de um dos livros mais escandalosos do século XVIII, La Pucelle d'Orléans, escrita nada menos nada mais que pelo célebre filosofo e escritor francês Voltaire.
 
Ilustração de edição de 1781
La Pucelle d'Orléans é uma poema heróico cómico que satiriza um dos mitos nacionais da França, Joana d’Arc, explorando todas as ambiguidades da donzela vestida de homem. Foi primeiramente impressa em 1755 como obra anónima, pois Voltaire sabia que estava a mexer com um mito intocável da França, tanto para os crentes como para os não crentes e provocou desde logo um enorme escândalo, ao mesmo tempo que conhecia também um estrondoso sucesso editorial. Só no primeiro ano saíram 6 edições diferentes da Pucelle d'Orléans e no catálogo da Biblioteca Nacional de França contei 41 edições entre 1755 e 1800. Há aliás quem pense que a La Pucelle d'Orléans foi das obras mais lidas na segunda metade do século XVIII. A extraordinária popularidade desta obra teve também a ver com as gravuras que ilustravam o poema, que em algumas das edições eram pura e simplesmente pornográficas. A obra foi rapidamente condenada pela Igreja e remetida para o Index Librorum Prohibitorum, mas avidez pelo público não diminuía e a Pucelle foi traduzida para inglês e italiano e circulavam ainda pela Europa fora muitas cópias manuscritas. Voltaire só reconheceu a paternidade da obra em 1762.
Ilustração de edição de Londres de 1780
Quanto à estampa que o Manel comprou foi desenhada por Nicolas André Monsiau e gravada por Jean Louis Delignon e provavelmente pertencerá a uma edição da última década do século XVIII, feita em Paris por Didot le Jeune. Encontrei referências a duas edições da Pucelle d'Orléans por Firmim Didot, com gravuras dos referidos artistas, uma de 1795, que está em linha  na Biblioteca Real Holandesa, cujas gravuras são iguais, mas que lhe falta as legendas e outra de 1797 que não encontrei digitalizada. Por exclusão de partes,  presumo que esta estampa terá sido retirada da edição de Paris, de Firmin Didot, de 1797, mas posso-me estar a enganar-me. 
Ilustração da edição de Paris, de Firmin Didot de 1795. Os artistas da gravura são os mesmo, a moldura também, mas não apresentam a legenda em verso da gravura do Manel. 
A reputação de obra licenciosa da Pucelle d'Orléans permaneceu intacta no século XIX e ainda durante século XX. Durante essa época, na Biblioteca Nacional de França, as várias edições da A Donzela de Orléans de Voltaire estavam depositadas numa secção à parte, conhecida pelo inferno, juntamente com muitos outros livros considerados pornográficos. Era necessária uma autorização especial para os consultar e quando vinham à sala de leitura era colocado uma espécie de biombo na mesa do leitor, para que as imagens licenciosas não chocassem os restantes leitores.

Hoje, esta estampa, que ilustrava o canto VII da Pucelle d'Orléans evocará na parede da casa do Manel todo o universo da literatura licenciosa do séc. XVIII.
 

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

O mercado de Chaves, a Aninhas Vitorino e a minha avó Mimi: algumas memórias

A minha avó Maria do Espírito Santo Montalvão Cunha
Há pouco tempo enviaram-me por e-mail um link para o blog de um fotografo francês, Gérald Bloncourt, que nos anos 60 e 70 esteve em Portugal, a fazer uma série de fotografias sobre Trás-os-Montes, onde captou a miséria e a pobreza daquela região, com a beleza que só o preto e branco torna possível. Ao vaguear neste blog, descobri umas quantas imagens, tiradas no antigo mercado de Chaves, que me tocaram particularmente, pois parece que fixaram na película, as recordações que guardei desse espaço durante minha infância.

O mercado de Chaves, Foto de Gérald Bloncourt. Ali perto situava-se o estabelecimento da Aninhas Vitorino

A minha avó Mimi vivia num apartamento em Chaves, na Rua Cândido dos Reis, com vista para o mercado de Chaves. Nós, que éramos miúdos, adorámos ver da varanda todo aquele movimento do mercado, com as mulheres de grande buço a transportar à cabeça cântaros enormes, gente a carregar gaiolas com galinhas e toda aquela animação característica dos mercados. Muitas vezes, saíamos de casa e andávamos pelo mercado, atordoados por aquele barulho, formado a partir dos gritos das mulheres e dos homens, do grasnar dos gansos e cacarejar das galinhas e de muitas conversas em francês. Julgo que foi no mercado de Chaves que comi tremoços pela primeira vez. 

O mercado de Chaves, Foto de Gérald Bloncourt
A minha avó que era uma mulher chique, claro nunca ia ao mercado. Mandava a criada fazer as compras. Na sua opinião uma senhora com “S”, maiúsculo não deveria ser vista no mercado, no meio da hortaliça e das peixeiras. Claro, está a criada nem queria acreditar na sua sorte e para comprar meia dúzia de ovos, salsa, uma galinha e uns pêssegos passava a manhã inteira no mercado, na conversa com este e com aqueloutro, em vez de estar em casa, fechada a fazer limpezas ou a engomar.
A minha avó era uma mulher chique

Talvez a Mimi só passa-se pelo mercado quando este estivesse fechado, a caminho da Rua Longras, onde se situava o estabelecimento comercial da Aninhas Vitorino (1*), casa que abasteceu de tecidos, durante duas ou três gerações, as senhoras de Chaves. Mesmo assim, creio que preferia fazer uma volta maior, pelo largo do Arrabalde, para ir à Aninhas Vitorino, só para não ter de passar pelo mercado. Muito ouvia eu falar à minha avó e às minhas tias da Aninhas Vitorino e dos tecidos que tinha acabado de receber. Creio que a par das criadas, do tempo e das doenças, a Aninhas Vitorino era um dos principais temas de conversa das senhoras da boa sociedade flaviense. Lembro-me bem de acompanhar a Mimi até ao estabelecimento da Aninhas Vitorino, onde existia um grande balcão de madeira que separava os clientes das estantes onde eram arrumados metros e metros de sedas, algodões, chitas, crepes e eu sei lá que mais. Claro, a minha avó era uma chata, daquelas que mandava tirar os tecidos todos e depois não levava nada. Aliás, tenho ideia do meu pai me contar, que certa vez, foi a uma sapataria e experimentou tanto sapato, que no final voltou com dois sapatos do pé esquerdo. Mas também era um tempo em que não havia pressas e um vestido novo era uma coisa maturada, um processo longo. Primeiro consultava-se os figurinos, o nome que se dava então às revistas de moda, depois escolhia-se o tecido, mas sem ser ao primeiro impulso, pois trazia-se amostras da casa das fazendas e só depois de algum tempo tomava-se a decisão final e voltava-se novamente à loja, neste caso, à Aninhas Vitorino, onde a minha avô, que era muito sovina, comprava sempre o tecido com a medida à justinha. Depois, quando mandava fazer o casaco ou vestido, a modista deitava as mãos à cabeça porque a Mimi obrigava-a fazer bainhas com um centímetro de altura e por vezes ainda menos, pois a peça de fazenda ou algodão era muito pequena.

Não sei se hoje em dia essa instituição da elegância flaviense, o estabelecimento da Aninhas Vitorino ainda existe. O mercado foi destruído nos anos 80 e em seu lugar construíram uns blocos de apartamentos, tão altos quanto feios. A minha avó morreu nos anos 90, as criadas desapareceram, o Portugal miserável que Gérald Bloncourt fotografou no final dos anos 60 alterou-se profundamente, as desigualdades sociais diminuíram e hoje muito democraticamente todos fazem compras no hipermercado, independentemente do nível social a que pertencem.


1: Nota: O estabelecimento de Aninhas Vitorino já existia em 1915 na Rua das Longras, com o nome "Vitorino Teixeira", conforme se pode ler nas páginas 42 e 43, do "Guia-álbum de Chaves e seu concelho / Manuel António Rodrigues. - Chaves: Liga de Instrução e Beneficência, 1915". Portanto, nos anos 60 e 70 Vitorino era já uma casa comercial com tradição na cidade Chaves

sábado, 8 de outubro de 2016

Chávena de faiança com um casario usado pela fábrica de Vilar de Mouros.

Cada vez que sai um livro novo sobre faiança, nós, os amadores de faiança, corremos a compra-lo e a comparar tudo o que ali é reproduzido com as loiças antigas lá de casa, que há muito aguardam identificação. Para os menos familiarizados com a faiança portuguesa, há que explicar que raras são as peças marcadas, os fabricantes usavam decorações e moldes semelhantes, de modo que tentar atribuir uma terrina ou um prato do século XIX ou início do XX a um centro de fabrico, Porto, Lisboa, Coimbra ou Viana é um risco, que pode significar um erro grosseiro. Por essa razão, a publicação de novos catálogos ou monografias sobre faiança é tão importante para ajudar o coleccionador amador a identificar as suas peças.

Recentemente foi publicada a obra A fábrica de Vilar de Mouros/ Paulo Torres Bento [et al]. – Vilar de Mouros: CIRV; Câmara Municipal de Caminha, 2015, que teve o grande mérito de apresentar a história e a produção de uma fábrica de que ninguém sabia quase nada. Segundo palavras de Isabel Maria Fernandes no prefácio da obra, este estudo foi feito a partir de (…)algumas centenas de fragmentos recolhidos onde a fábrica funcionou, a que se juntou um conjunto de peças que se encontram na mão de alguns familiares dos antigos proprietários da fábrica ou de pessoas com eles relacionados. Portanto, este é um livro sério, que se baseia em fontes seguras e não numa mera análise de semelhanças de decorações.
No centro está um templete, um pagode ou um chalet, que a Fábrica de Vilar de Mouros usou nas suas produções
Porém, após a leitura do catálogo A fábrica de Vilar de Mouros ficamos ainda mais confusos. A produção de Vilar de Mouros entre 1855 e 1920 é muito semelhante a de outras fábricas do Porto e de Gaia. Algumas das peças ali mostradas nós juraríamos a pé juntos que eram Fervença, outras poderiam eventualmente ser inspiradas em Miragaia, manufacturadas por uma fábrica qualquer de uma das margens do Douro. Há também louça de Vilar de Mouros facilmente confundível com Viana e uma ou outra coisa semelhante às faianças de Coimbra. A Fábrica de Vilar de Mouros fabricou ainda o motivo cantão popular, que os consumidores portugueses do século XIX e da segunda metade do XX adoravam. No fundo, este livro reforçou a ideia que todas estas fábricas portuguesas se copiavam muito umas às outras, até porque precisavam de satisfazer o mesmo gosto dominante do Portugal de então.
Imagem retirada de  A fábrica de Vilar de Mouros/ Paulo Torres Bento [et al]. – Vilar de Mouros: CIRV; Câmara Municipal de Caminha, 2015


Tudo isto vem a propósito de uma chávena com pires que o meu amigo Manel comprou na Feira de Estremoz e que apresenta uma espécie de templo, chalet ou pagode, idêntico a uma terrina de Vilar de Mouros, cuja fotografia está reproduzida na página 107 do livro em causa. Essa terrina está atribuída ao segundo período da fábrica, que decorre entre 1900 e 1920.
 
Imagem retirada de  A fábrica de Vilar de Mouros/ Paulo Torres Bento [et al]. – Vilar de Mouros: CIRV; Câmara Municipal de Caminha, 2015



Claro, esta semelhança não significa que forçosamente a chávena do meu amigo Manel seja de Vilar de Mouros. Pode tratar-se de um motivo decorativo usado por mais que uma fábrica de faiança, como por exemplo, a decoração chinesa do cantão popular. Por outro lado, a faiança da chávena do meu amigo Manel parece de melhor qualidade, que a terrina mostrada no livro. Até tem no tardoz do prato um motivo em relevo feito com muita qualidade e a pasta é mais branca. Mas, pode dar-se o caso de as cores no catálogo não terem ficado bem resolvidas. Quem já trabalhou na edição de publicações de arte sabe que por vezes os gráficos não acertam com as cores e as imagens são publicadas com tons empastelados. A chávena e pires que pertencem ao meu amigo Manel parecem mais antigas, talvez do século XIX, e a terrina publicada no catálogo de Vilar de Mouros está datada do período entre 1900-1920. Enfim, pode dar-se o caso de este ser um motivo repetido ao longo de várias décadas de laboração da fábrica ou então a chávena parecer mais antiga, por causa da ingenuidade da composição. As obras ingénuas parecem sempre ancestrais, porque repetem fórmulas e decorações antigas.
No tardoz do pires há um filete picotado muito bonito

Enfim, não posso fazer muito mais do que afirmar que o motivo decorativo da chávena do Manel é idêntico ao de uma terrina fabricada por Vilar de Mouros. Juntei duas peças de um puzzle. O resto virá com o tempo.